segunda-feira, 1 de junho de 2015

Anotações finais

Final da Calle de Alcalá quando encontra com a Gran Vía, Madrid
Aos domingos, por aqui em Madrid, tem a famosa Feria del Rastro, uma feirinha enorme onde se vende de tudo o que se possa imaginar, principalmente de coisas usadas e antigas. E o preço é muito bom! Nada a ver com os altos preços da feira da Praça Benedito Calixto em São Paulo ou a do Bexiga. Aqui dá pra comprar muita coisa legal, e histórica, pagando um preço honesto. E tem de tudo mesmo!

Uma das ruas onde ocorre a
Feria del Rastro
Nestes dois dias em Madrid, depois que voltei da Andaluzia, tenho observado as pessoas. E tenho visto muitos negros de origem africana por aqui vendendo as mesmas bugigangas chinesas que eles vendem no Brasil. Muitos andando pela rua, olhar perdido, como se fossem turistas. Mas os turistas, como eu, voltarão para suas casas, para seu país. Eles não tem para onde voltar. Talvez nem por aqui, a não ser os albergues públicos. Ou las calles...

Hoje cruzei com um deles quando eu ia para o Museu do Prado. Era um homem alto, bonito, pele bem escura, e me disse, como deve ter dito para outros que passaram, arranhando seu espanhol, que precisava de algum dinheiro para comer, que estava desesperado de hambre! Dei-lhe dois euros, o pobre coitado nem conseguia me agradecer em espanhol, respondeu em francês, em seu francês africano...

Lembrei das inúmeras fotos que salvei em meu computador sobre a tragédia da travessia do mar mediterrâneo pelos africanos que fogem das guerras, da fome, das perseguições políticas em seus países do norte da África. Centenas já morreram tentando alcançar a Itália. Os que conseguem chegar ao continente europeu se espalham por aí, tentando buscar um recomeço de vida... Num lugar diferente, com gente tão diferente da sua, com culturas tão distintas. Quero tentar pintar isto.

Músicos de rua na Feria del Rastro
Olho para os que encontro aqui em Madrid e não consigo ver neles nada mais do que sobreviventes. Alguns olham para dentro de lojas, vendo os produtos. Só olhando, porque comprar por enquanto não dá... Os europeus estão reagindo a essas hordas de negros africanos invadindo seu continente. O preconceito aumenta, em especial no norte, mas também dá pra perceber, pelo menos aqui em Madrid, que o povo espanhol convive com esta situação. Compra as bugigangas chinesas, ajuda com esmolas, ajuda de algum jeito. Ou eles não estariam aqui. Ninguém melhor que os espanhóis para saber o que é contar com a ajuda dos estrangeiros, pois eles fugiram daqui, muitos para o Brasil, na época da ditadura franquista assassina.

Por falar em mendigos, só aqui eu vejo um tipo de mendigo que não vi ainda em lugar algum. Em primeiro lugar, toda igreja tem o seu mendigo na porta, esmolando, homem ou mulher. Em segundo lugar, há mendigos aqui que nunca em sua vida você identificaria como tal, não fosse o fato de eles estarem na rua e com um cartaz explicando sua situação. Como uma senhora bem vestida, alta e branca, que portava um cartaz dizendo que precisava de ajuda porque não tinha como sobreviver. Passei por vários jovens também, bonitos até, explicando que não há trabalho e eles precisam de ajuda. Já falei daquele que encontrei no primeiro dia aqui, na rua do hotel onde estou, que pedia dinheiro para wisky, cerveza ou marijuana...

Autorretrato de Anton Raphael Mengs,
uma das pinturas do Museu do Prado que me
chamou muito a atenção desta vez
Mas passei o dia hoje no Museu do Prado. Fui ver e rever as pinturas daquele lugar, que tanto encantam todos que vão lá. Ticianos, Rubens, Tintoretos, Carracis, Riberas, Goyas, Grecos, Mengs, Zurbaráns, Murillos, Fortunys, Sorollas, Velázquez... De encher os olhos!

Para minha sorte, hoje tinham vários artistas lá estudando os mestres, com seus cavaletes, pintando. Um fazia uma cópia de um José Ribera, outro de El Greco, outro de Rubens, outra de Velazquez, outro ainda de Rubens, "As três Graças". Lembrei das Três Graças que Alexandre Greghi está pintando lá em nosso Ateliê Contraponto em São Paulo, junto com um cara do grafite de rua. 

O artista daqui, que está fazendo uma cópia desta pintura de Rubens, se chama José. É jovem. Fiquei um tempão vendo ele pintar, ainda na fase da grisalha, que é uma primeira parte da pintura feita apenas com uma ou duas cores. Ele está fazendo com siena natural, sombra natural e branco. O desenho está perfeito. Quando ele parou um pouco, fui até ele conversar. Me disse que Rubens fez esta grisalha mesmo, e que ele já estava quase começando a colocar as cores. Quantos dias de trabalho até agora? Uns oito, dez dias. Mais quantos para acabar? No lo sé, me respondeu sorrindo.

Ontem dei andamento à uma pintura que comecei a fazer aqui, já dentro da busca pelos valores altos, pela luz. O quadro está ainda inacabado, mas está aqui no meu quarto, me olhando brilhantemente e eu satisfeita com ele. Fase nova... Vamos ver... Não posso dar continuidade aqui, vou acabá-lo em casa, porque a tinta não seca a tempo de eu viajar. Ou talvez nem termine, deixe como está, para registrar uma viagem que foi tão importante para mim, de tantas descobertas!

E a saudade do Brasil só cresce! Mais dois dias e chego. E começa uma nova etapa da minha vida.

Comecei a pintar este quadro em Madrid, para terminar no Brasil.
Com o foco nos valores mais próximos da luz.
 

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