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domingo, 9 de setembro de 2012

Bienal do Ibirapuera num dia de sol quente


São sete telas "pintadas". Com água do mar...
Vidro soprado. Cópia de cabeça. Fios elétricos. Aros de rodas de bicicletas. Fotografias.

Pedaços de pano velho. Pedaços de pau velho. Um penico de banheiro masculino. Fotografias.


Rolos de barbante pendurados. Vídeos. Salas performáticas. Cordas penduradas. Fotografias.

Pedaços de madeira usada. Restos de construção. Terra. Sacos de plástico. Fotografias.

Papeis canson mil-teintes enrolados na parede. Serpentinas. Portas velhas. Fotografias.

Tijolos enrolados em papel celofane. Roupas velhas. Vasos velhos. Fotografias.

Sete telas em branco “pintadas” com água do mar. Arcos com velas. Trouchas de pano. Fotografias.

Dois lados de uma cadeira. Rádio velho. Vídeos em salas escuras. Sucata. Caixas de madeira vagabunda. Fotografias. 

Trecos velhos. Usados. Roupas antigas, usadas. Vasos antigos. Desenhos de criança. Fotografias.

Duas salas com pinturas abstratas. Alguns desenhos experimentais. Fotografias.

Por que não chamar de Bienal Audiovisual?

E o imenso acervo cultural e histórico da humanidade?

Nada. Lixo. Alegria dos catadores, da reciclagem.

Uma sala inteira para um Artur Bispo, o Bispo da Arte Contemporânea... Ai de quem se atreve a falar mal de seus cacarecos, seus agrupamentos de botões de camisa, seus copos de alumínio pregados num saco de estopa! E ele nem tem culpa disso! Era um inocente, cuja percepção de mundo estava alterada. Vamos dizer em linguagem bem clara: sua visão de mundo estava embotada por uma esquizofrenia paranoica... Mas ai que medo de ser crucificada! Como assim, falar mal do Bispo???, diriam as mocinhas e moçoilos da FAAP-ECA....

Em 2010 fui a Berlim. Visitei a Bienal de Berlim. Dividida em cinco prédios diferentes em lugares diversos da cidade. O que vi aqui é o que vi lá: repetições de chavões duchampianos que devem fazer Duchamp se revolver em sua bem concreta tumba! Aliás, para ser coerente, Marcel Duchamp podia ter escolhido virar cinza, mas seu corpo deteriorou como qualquer corpo no cemitério de Rouen, na França. Bem concreta e realisticamente.


Mas voltando a Berlim: a Bienal de lá estava às moscas! Eu salvei a Bienal de Berlim 2010! Eu estava lá! Eu, uma brasileira, dei público e razão de ser à Bienal 2010 de Berlim! Não havia quase MAIS NINGUÉM! 


Em compensação, FILAS na região dos museus de Berlim: na Gëmaldgalerie, no Pergamon Museum, no Staatliche Museen, e até no DDR Museen, da ex- Alemã Oriental. Na Bienal de Berlim? Estava eu em quase todos os prédios onde o evento acontecia. E um ou outro gato pingado...

 

Hoje – 9 de setembro – havia uma fila enorme em frente ao MASP para ver “Caravaggio eseus seguidores”. Havia uma outra fila de quatro horas (!) de espera em frente ao CCBB para ver a exposição “Impressionistas do Museu d’Orsay”....

 

Amigos... não tinha fila alguma para entrar na Bienal, de graça!

 

Numa sala onde estavam penduradas sete telas em branco me deparei com uma senhora revoltada perguntando para outra: - você entendeu? A outra, coitada, gaguejava um pouco pra provar que entendeu o que não é para ser entendido. Me meti na conversa: vão ao Masp ver Caravaggio! A senhora que estava brava balançou a cabeça concordando imediatamente comigo.


Continuei meu périplo dentro do lindo prédio de Oscar Niemeyer.

 

Vidro soprado. Cópia de cabeça. Fios elétricos. Aros de rodas de bicicletas. Pedaços de pano velho. Pedaços de pau velho. Um penico de banheiro masculino. Rolos de barbante pendurados. Vídeos. Salas performáticas. Cordas penduradas. Pedaços de madeira usada. Restos de construção. Terra. Sacos de plástico. Portas velhas. Sucata. Caixas de madeira vagabunda. Fotografias...

Como diria o poeta "Devo seguir até o enjôo?"


Sem mais palavras, cada um que tire a sua conclusão... É só ver as imagens.


E ler o texto da apresentação. Assim, ó:

- Tema: A IMINÊNCIA DAS POÉTICAS
- ah, tá, intendi...
- Não, você não entendeu, deixa eu explicar. (leitura do texto do folheto):
   (preciso ler para poder te explicar, peraí). Mas presta muita atenção porque isso aí que é arte contemporânea: Assim (tipo aluno de certas faculdades lendo):
   "a Iminência é entendida como aquilo que está a ponto de acontecer..."
- ah sei sei (sinal de que não tá sabendo...)
- calma, deixa eu continuar: "... como o que está suspenso..."
- suspenso, intendi... Suspenso que nem corda, que nem fio de rede elétrica...
- Por aí, mas deixa eu terminar! Você não deixa!
- ...
- "... em vias de efetivação; a poética é entendida como discurso, aquilo que se expressa, que se cala..."
- oh!
- profundo, né?
- profundo! O quê mesmo?
- (volta a ler o texto) "... que se transforma e que ganha potência comunicativa por meio da linguagem das artes." (pronto, terminei)
- E o que isso quer dizer?
- Ah, meu, sei lá! Qualque coisa, intende?
- Intendo, intendo. Mas num intendi....
- É por aí mermo! Melhor assim: num intendê nada faiz parte...
- Beleza então....




Serviço:
30a. Bienal de São Paulo
De 7 de setembro a 9 de dezembro de 2012
Terças, quintas e sábados, domingos e feriados - das 9h às 19h
Quartas e sextas, das 9h às 22h
Fechado às segundas
Entrada: Grátis
Parque do Ibirapuera, portão 3

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Mandamentos e mistérios gozosos

Por que ninguém teve (ainda) a ideia de expor gavetas com restos mortais em pó de um Crematório?
(Foto do Crematório do cemitério Père Lachaise de Paris, outubro de 2011)
A revista Bravo do mês de outubro, publicou uma reportagem de capa cujo tema é a exposição que acontece na Fundação Bienal de São Paulo, "Em Nome dos Artistas – Arte Contemporânea Norte-Americana na Coleção Astrup Fearnley". Essa mostra reune 219 peças da coleção do Museu de Arte Moderna de Oslo, capital da Noruega. E traz "obras" de Damien Hirst, Jeff Koons e Cindy Sherman, entre outros.


A revista organizou sua apresentação, elencando 7 mandamentos "daquilo que se convencionou chamar de “arte contemporânea”". Continua o texto: "É interessante notar que uma exposição reunindo Van Gogh, Renoir e Degas em todo o seu esplendor e glória não seria possível. Simplesmente porque tais artistas não experimentaram, em vida, esplendor e glória comparáveis aos de Damien Hirst e Jeff Koons, para ficar nos dois mais ricos da constelação (...). Ricos no sentido monetário mesmo. Hirst é, sem sombra de dúvida, o ser humano que mais ganhou dinheiro com criação artística na história ocidental." (!)


"A arte contemporânea não é uma linguagem acessível às massas. Ela se escora em uma série de teorias e procedimentos tão complexos quanto o teatro experimental, o cinema alternativo e a música contemporânea. Só que, diferentemente do teatro experimental, do cinema alternativo ou da música contemporânea – que sobrevivem em ambientes restritos ou financiados por universidades –, ela gerou um circuito milionário. Entender essa relação estreita e amigável entre arte e mercado é essencial para compreender a produção atual. Daí a razão do primeiro mandamento." 


"Escultura" de Jeff Koons,
mas você pode achar algo
assim numa lojinha de
souvenirs...
1 - AMARÁS O MERCADO SOBRE TODAS AS COISAS - o norte-americano Jeff Koons, entre 1991 e 1992, foi casado com a atriz de filme pornô italiana Cicciolina, e fez uma série de pinturas, com cenas do casal tendo relações sexuais. Depois, resolveu ir para o mundo da escultura, quando sua peça ("isso" aí ao lado) foi vendida por 23,5 milhões de dólares na casa de leilões Sotheby’s de Nova York, tornando-o o artista mais valorizado do mundo. Em julho de 2008, outra obra dele foi vendida na casa de leilão Christie’s de Londres por 25,7 milhões de dólares.


Na arte contemporânea, o mercado é uma poderosa fonte de validação artística de um trabalho. Calcula-se que no Brasil o montante de dinheiro que circula no mundo da arte seja da ordem de 300 milhões de reais por ano." Mas no mundo, segundo "levantamento da Tefaf (The European Fine Art Foundation), só em 2008, o total de vendas no mercado internacional atingiu 68,5 bilhões de dólares, sendo que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha são responsáveis por dois terços desse montante."


O inglês Damien Hirst, em 2008, por exemplo, colocou à venda na Sotheby’s, em Londres, 223 trabalhos recém-saídos do ateliê. Vendeu 97% (!) para, em sua maioria, investidores particulares, um total de 198 milhões de dólares. Dois anos mais tarde, o valor das peças vendidas despencou para 10% do total. "É óbvio que Damien Hirst criou uma bolha com a própria produção, usando um procedimento clássico do mercado de ações: vender o máximo possível na alta – e provocar uma baixa logo depois por causa da inundação do mercado com um mesmo tipo de produto. É como se Hirst dissesse que, num ambiente cada vez mais dominado pelo mercado, entender seu funcionamento é essencial para um artista. É como se sua bolha fosse, por si só, uma performance."


Serre um boi no meio e isso é arte,
como fez Damien Hirst, um dos
alunos da escola de Duchamp
2 - NÃO PRECISARÁS DOMINAR A TÉCNICA - Depois que o francês Marcel Duchamp (1887-1968) expôs um urinol como obra de arte, em 1917 (A Fonte), a concepção de que um artista precisa saber pintar, esculpir ou fotografar ficou definitivamente para trás." Muitos das "obras" desses artistas-para-o-mercado aí nem foram produzidas por eles. Mas o que importa é a "ideia". "Desde Duchamp, o que faz de alguém um artista são suas ideias, e não suas habilidades manuais", diz a revista Bravo.


E dá um exemplo local, como do artista paulistano Nelson Leirner, que foi tema de um documentário deste ano (Assim É Se Lhe Parece). Ele nunca pintou um quadro na vida. O que faz é se apropriar de objetos existentes e dar-lhes novo significado".


3 - APRENDERÁS A FALAR SOBRE SEU TRABALHO - "num mundo em que a ideia é tão ou mais importante do que a execução, dominar a palavra é tudo. Tanto que os artistas aprendem isso desde a faculdade. No departamento de artes plásticas da Universidade de São Paulo, os alunos passam pelas aulas ministradas por Ana Maria Tavares e Mario Ramiro, em que são incentivados justamente a falar sobre o próprio trabalho." (grifo meu)


4 - PERTENCERÁS A UMA GALERIA - Absolutamente necessário. Como quase todos os artistas de renome hoje passaram por uma faculdade de Belas Artes (o que evidencia que vivemos o tempo da Nova Academia - ou seja, isso daí é arte acadêmica), "imediatamente passam a integrar o elenco de alguma galeria. Muitos deles assinam contratos com endereços comerciais antes mesmo da formatura". Continua o texto: "A carreira de artista tem atualmente etapas tão bem definidas, e encontra-se tão escorada por marchands, colecionadores, leilões e exposições, que até perdeu um pouco do caráter aventureiro e um tanto arriscado que sempre a acompanhou".


"O diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Tadeu Chiarelli, vê no entanto essa presença forte das galerias no circuito como algo incômodo: “Pertencer a uma galeria virou sinônimo de ser bem-sucedido”. Porém o número de endereços que abrem a cada ano e o volume de dinheiro que negociam é tanto que foi criada em 2007 no Brasil a Abact (Associação Brasileira de Arte Contemporânea), uma iniciativa das próprias galerias para mapear esse setor. A presidente da instituição é Alessandra d’Aloia, também sócia-diretora da prestigiada galeria Fortes Vilaça, em São Paulo."


5 - PARTICIPARÁS DE FEIRAS DE ARTE - São umas 30 feiras internacionais de arte contemporânea no mundo, mais de duas por mês. Negócios muito rentáveis rolam por lá.


6 - CONHECERÁS CURADORES - ah.... os curadores! Não é possível viver sem eles! Enquanto o tradicional papel da crítica teve seu papel diminuído, "os curadores são os novos críticos". Continua Bravo: "São eles que selecionam artistas e suas obras para exposições que pretendem oferecer um panorama da produção atual e, dessa forma, atribuem leituras para esses conjuntos. Os curadores apresentam temas, sugerem relações entre criadores e apontam também revelações da área. Inclusive para galeristas e colecionadores. “Hoje até as feiras de arte têm curadores. O que antes era Igreja e Estado agora se mistura. Bienais e feiras têm muitas vezes conceitos tão próximos que ficam muito parecidas”, diz um deles, Cauê Alves.


7 - VIVERÁS COMO UMA CELEBRIDADE - Como já dizia o pop Andy Wahrol,cada um deve buscar seus 15 minutos de fama. Os "artistas deixaram de ser figuras por trás de suas obras e estão cada vez mais à frente delas. O público quer saber como se vestem, com quem circulam, o que bebem, como bebem".

Então junte-se uma boa faculdade que ensine a nova forma de fazer arte, renda-se às regras do mercado, tenha-se uma boa ideia ("boa" no sentido disso daí), circule-se por esses circuitos sociais onde impera a futilidade (e muita grana!), dê-se um jeito de ser celebridade (mesmo que por 5 minutos), e pronto! Seu reino individual está garantido!


Cemitério Père Lahaise, Paris, outubro de 2011

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Meia noite em Paris


Neste domingo tive um encontro inusitado, mas bastante satisfatório. Estava passeando entre os corredores de um lugar arborizado, quando resolvi aproveitar a oportunidade das presenças importantes ao meu redor e convocar certas pessoas para uma importante reunião.

Camille Corot, auto-retrato
O primeiro que chamei foi Camille Corot e ele me ajudou a chamar todos os outros: Jacques Louis David, Georges Seurat, Jean-Auguste Dominique Ingres e Eugène Delacroix. Marx Ernst estava ali por perto, mas como não tenho interesse nas ideias dele, deixei de fora. Estávamos todos no cemitério Père Lachaise, com mais dezenas de outras figuras importantes da história francesa.

O encontro foi no Jardim do Crematório, um lugar tranquilo, cheio de flores coloridas bem arrumadas nos canteiros. Achei que era um bom lugar para esse encontro, um lugar fértil, adubado com as cinzas de milhares que já foram incinerados neste forno, cuja chaminé escura paira poderosa ao lado da abóboda do prédio.

Ingres, auto-retrato
Tive muito trabalho, no começo, para acalmar a verdadeira balbúrdia que se instalou entre meus convidados. Ingres queria partir para cima de Delacroix, macambúzio, no seu canto, enquanto Corot queria entender porque David nunca teve coragem de abandonar o atelier e ir pintar ao ar livre, ao que David respondeu que preferia as sombras projetadas dentro de um quarto fechado do que a luz chapada do sol nos campos. "Para isso você bem podia ter sido Barroco, mas faltava arrojo e você preferiu ser o queridinho dos salões!" Deixamos os dois e encontramos Pissarro que, por sua vez, tentava convencer Modigliani de que as figuras não precisavam ser tão esguias assim, nem tão chapadas. Modigliani berrava e gesticulava em italiano, sem ouvir uma palavra do pintor francês.

Georges Seurat tentava estudar os pequenos pontos luminosos que atravessavam as folhas das árvores, dizendo a Corot que ele não precisava ter sido tão literal assim, que bastava olhar para a luz, como ela se comportava em pequenos pontos, mas Seurat, indignado, gritou com ele que esse negócio de pontilhismo é para quem não sabe nem a sombra de como se usa um pincel!

Delacroix, auto-retrato
Enquanto Ingres se inflamava cada vez mais com Delacroix, David também se achou no direito de cobrar deste uma posição política mais definida. "Como assim?", perguntou Delacroix. "Você não viu que eu pintei a maior obra prima da Revolução, A Liberdade guiando o povo?" - Sim, respondeu David, mas eu falo de ação, camarada, de ação! Ao que Delacroix respondeu: você foi tão bonapartista quanto eu! Voilà!

Bom, como vi que a coisa estava cada vez mais fora de controle, dei um berro muito alto, usando da minha autoridade de idealizadora da reunião:

- ARRÊTEZ-VOUS, S'IL VOUS PLAÎT!!! Parem já!

Assustados com meu grito feminino quase histérico, eles me olharam. Continuei:

- Chamei vocês aqui porque tenho coisas importantes a discutir, então esqueçam suas desavenças e gostos pessoais. Esta aqui é uma reunião de trabalho!

Pissarro, auto-retrato
Ingres resmungou, David que já estava mais animado por uma briga, parou estático. Os outros ficaram ali, me olhando; Pissarro com um sorriso debochado. Não liguei.

De longe, à esquerda, ouvia-se a voz de Edith Piaf cantando "Je ne regrette rien", enquanto no lado oposto, mais ao fundo, Mozart solfejava uma sinfonia... O corvo preto que tinha pousado no jardim à nossa frente, levantou vôo, pousou num galho e deu um grito. Os communards (combatentes da Comuna de Paris), aglomerados no canto direito, próximo ao muro, faziam alguma algazarra, enquanto se ouvia a Marselhesa. Também dava para se ouvir berros violentos que vinham do lado onde estava Balzac. Ele gritava à queima roupa no ouvido de Marcel Proust: - Vai conhecer a vida lá fora, irmão! Você não sabe de nada! Rien de rien!

David, auto-retrato
Paul Éluard, abraçado a Apollinaire, cambaleava, bêbado, recitando um poema.

Voltei aos meus amigos e falei:

- É o seguinte, amigos! Estamos vivendo tempos sórdidos, tempos estranhos. Eu sei que o tempo em que cada um de vocês viveram não era lá grande coisa, mas mesmo com as desavenças que havia entre os seus pares não chegava nem aos pés do isolamento em que uma grande parte dos artistas vive hoje.

David, para você ter uma ideia, desde que o conterrâneo de vocês, Marcel Duchamp, decretou que tudo é arte ("- que você tá falando?" berrou ele) Isso que você ouviu. Duchamp, que nunca ia a museu algum e que dizia que detestava pintura, acreditem, é hoje a musa principal que inspira a nova academia: a que cria dezenas de alunos que não precisam aprender a desenhar, mas vão aprendendo que uma boa ideia vale mais do que mil palavras! (- "Não estou entendendo nada", resmunga Ingres).  Pois é, amigo, nem você, nem eu, nem ninguém. E para eles quanto menos gente entender melhor. ( - "Mas como não se aprende a desenhar se o desenho é a base de tudo?", insistiu Ingres) Simplesmente porque hoje em dia se você tiver uma formação conceitual dessa academia aí, não precisa mais desenhar. Desenhar o que? Desenhar pra que, se não é preciso criar nada daí? Hoje, artista e designer é tudo a mesma coisa. Se duvidarem de mim, podemos ir agora ao Museu George Pompidou e ver as salas separadas para apresentar a arte dos anos atuais: cadeiras, móveis, enfeites, badulaques de todo tipo, penduricalhos espalhados, mais parece um grande parque de diversões! E na tal da FIAC, então? (- "Que diabo é FIAC?", perguntou Pissarro) A tal da Feira Internacional de Arte Contemporânea. Vocês vão e lá e verão: penduricalhos, badulaques, trastes, trecos pendurados... É isso, hoje a arte é para ser divertida, tocada, brincada, manipulada, ultrapassada... (- "Principalmente ultrapassada", disse Seurat) Voilà, Seurat, isso mesmo!

Túmulo de Ingres, no Père Lachaise
Agora, não para por aí não. Os quadros que vocês fizeram e que nem venderam tanto enquanto vocês estavam vivos, hoje em dia não valem nada, quase nada perto de um tubarão envidraçado ou uma caveira de diamantes! (-"Que conversa é essa?" perguntou Delacroix. "Uma pintura de um tubarão e de uma caveira, o que isso tem de valor?") Não, meu caro Delacroix. Muito pior do que você pensa: o cara pegou um tubarão morto, jogou dentro de litros de formol, fechou num aquário de vidro e vendeu por milhões de dólares! (Os pobres coitados pintores me olhavam abismados) Porque hoje sabe quem manda no que se chama de arte contemporânea? O mercado. No tempo de vocês a igreja, a nobreza ou o Estado eram grandes compradores de arte. Hoje os grandes compradores são uns caras que ganham bilhões na Bolsa de Valores e, se compram alguma pintura de valor, é para ela ficar bem guardada esperando que valorize mais... Corot, ainda bem que seu amigo Gustave Courbet não está aqui hoje. Ele ia querer fazer outra revolução!

Mas meus amigos foram murchando, se movimentando lentos, cabisbaixos. Olharam para mim com pena. Corot ainda me perguntou se valia mesmo a pena ser pintora hoje. Vale, mesmo que seja por mim, respondi. Mas eles foram voltando quietos cada um pro seu canto. Minha reunião acabou sem ter acabado.

Gritei para eles:

- Mas há os que ainda resistem!

Delacroix fez um gesto amigo com as mãos. Ingres me desejou "bonnes chances, allez-y!", boa sorte, vá em frente.

Fui embora pra Bastilha.

Praça da Bastilha, Paris

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Voilà, Marcel Duchamp!

O mais novo projeto de arte conceitual não poderia ser mais coerente com seu próprio umbigo. Foi criado em Manhattan, EUA, um “Museu” (pasme-se!) de Arte Invisível! E não é brincadeira! O MONA ( Museum on Non-Visible Art) “apresenta” (a quem quiser arriscar de pagar esse mico) uma série de “obras” que não existem e só podem ser imaginadas quando o visitante lê o texto onde o “artista” descreve sua “obra”.


Acredite: dentro desta moldura tem uma obra de arte! Tenha fé!
Nesses arrazoados espalhados em espaços vazios pode-se ler que aquilo que não está lá e nem existe é uma escultura ou uma imagem qualquer. O corajoso visitante desse “Museu”,ao ler o texto, imagina que ideia estaria por ali, num “espaço” que deve pertencer ao mundo dos espíritos. Vejam que para este tipo de arte, até mesmo a psicografia já está superada! Nem o espírito de Van Gogh precisa mais “baixar” num médium de pincel na mão. Neste “museu”, tudo só é possível de existir na mente do incauto visitante…

Nem Marcel Duchamp seria capaz
de imaginar uma Fonte invisível!
Parece muito ridículo? Pois tem gente que acha que não! Algumas pessoas gostam tanto da imagem que suas mentes produziram que COMPRAM isso! Uma abastada senhora “investiu” nessa asneira a cifra de U$ 10.000,00!

Quem teve a brilhante ideia de criar esse “museu” foi um ator chamado James Franco, porque queria elevar a arte conceitual a um patamar mais alto (ou o que isso queira dizer). Ou ele é a reencarnação de Marcel Duchamp – o rei da arte conceitual – ou nem Marcel Duchamp seria capaz de ir tão longe e ganhar dinheiro com… nada!

Pois é, mas o comprador das subjetividades do “museu” recebe um “certificado de autenticidade” e isso lhe transfere a propriedade sobre a “criação”, mesmo que ela não exista! (nunca usei tantas aspas e pontos de exclamação antes!) E o que o comprador leva para casa, além do certificado? Uma arenga escrita sobre a “grande ideia” do “artista” e uma moldura sem nada dentro. Então emoldura o que? Nada, meu amigo!

Mas essa iludida senhora, que tem por nome Aimee Davidson, é uma “produtora de novas mídias”. Vejam o que ela disse sobre sua compra:

“Como produtora de novas mídias, me identifiquei com a ideologia do projeto e fui particularmente inspirada na frase “Nós trocamos ideias e sonhos como moeda na Nova Economia”. Os meios de comunicação social, que são parte integrante da ”Nova Economia” da Internet, pós Web 2.0, revolucionou o modo como artistas criam, promovem e vendem as suas obras de arte. Senti que o ato de comprar “ar fresco” apoiou a minha tese sobre um conceito que denomino de “você-commerce”, que é o marketing e a monetização da própria persona, habilidades e produtos através do uso das mídias sociais e das plataformas de auto-difusão, como o uso da plataforma de financiamento público para financiar o Museu de Arte Não-Visível. Basicamente, eu queria colocar meu dinheiro onde minha boca está.”

Só para os desavisados:
isto daqui é uma obra de arte!
Entenderam?

Nem eu.

Mas o próprio “museu” explica…

“Como essas obras de arte invisíveis são compradas, trocadas e revendidas, elas abrem os nossos olhos para o universo invisível que existe em cada momento, e podemos compartilhar esse universo. Trocamos ideias e sonhos como moeda na Nova Economia.”

E os responsáveis por essa estúrdia ainda ameaçam fazer uma turnê pelo mundo apresentando… o que não existe!

Até que ponto o sistema capitalista é capaz de chegar: não satisfeito em transformar obras de arte em mercadoria agora é capaz até de transformar a nulidade, o não existente, o nonada em mercadoria! Isso nem Karl Marx seria capaz de prever! Este é o mundo dos espertos-expertos, de todo tipo de expertise possível! E para cada expertise, um/uma debilóide capaz de adquirir com cifras bem concretas a bobajada toda!

Mas isso também lembra o que Affonso Romano de Sant’Anna fala em seu livro “Desconstruir Duchamp”: a tal da arte contemporânea se aproxima do misticismo e da religião: “Na religião há que ter fé. Em relação às obras contemporâneas, há que “acreditar” nas intenções do artista”.

Ou você, que não é capaz de se emocionar com tanta criatividade, vai queimar no fogo do inferno conceitual cheio de diabinhos conceituais!

quarta-feira, 16 de março de 2011

A transgressão, na Arte, virou norma?

Affonso Romano de Sant’Anna, poeta e crítico de arte, fez uma palestra no dia 25 de fevereiro, na Escola de Magistrados da Justiça Federal de São Paulo, sobre as transgressões atuais da chamada Arte Contemporânea. No texto abaixo, uma síntese das idéias defendidas por ele, com as quais – em muito – comungo.
Primeiro, uma historinha ilustrativa...
A Fonte, Marcel Duchamp
Em 1917 houve em Nova Iorque uma exposição de vanguarda para a qual o artista francês Marcel Duchamp mandou um urinol de parede, sob o pseudônimo de R.Mutt. O júri dessa exposição ficou perdido sobre o que fazer com aquele urinol e, numa reunião onde estava presente o agente de Duchamp, o presidente do júri, George Bellows, questionou: “- Nós não podemos expor este urinol, porque este urinol é apenas aquilo que ele é”. Ao que o agente de Duchamp disse: “- Mas esse urinol, é mais do que um urinol, é uma ideia.” O presidente do júri respondeu: “Você quer dizer que se alguém enviar esterco de cavalo colado numa tela, nós vamos ter que aceitar?” O agente de Duchamp respondeu que infelizmente achava que sim.
Desde essa época, iniciando-se pelo próprio Duchamp, vem se falando que a Arte está morta, assim como o autor. Na década de 1980 Francis Fukuyama, pensador norte-americano afirmou, dentro da onda neoliberal, que a História também tinha morrido. Falou-se muito de morte no século XX, sem esquecer do banho de sangue provocado por duas guerras mortíferas. Um século onde a morte fez presença tão marcante, precisa ser analisado. Nesse sentido, diz Affonso, “habitamos um cemitério onde a teoria perambulou como um zumbi entre o sentido e o não sentido” e teorizar sobre a morte de certas categorias, e mesmo de ideias, parece que explica um pouco o caos contemporâneo.
Nesse contexto, dentro da Arte Contemporânea (que vamos chamar de AC neste texto) todos seriam artistas e qualquer coisa pode ser considerada arte. Tendo como base dois de seus livros, Desconstruir Duchamp e O enigma vazio Affonso Romano desnuda a situação atual das artes. Segundo ele, a AC tornou-se tão complexa que necessita ser avaliada através da intervenção de outras disciplinas – que não só a Estética – como a Antropologia e a Psicanálise, para tentar explicar o que é essa produção que segue à risca o que foi prescrito por Duchamp, um dos intocáveis ícones pós-modernos.
Como artista e como escritor que desde a juventude se envolveu com os movimentos de vanguarda dos anos 50 e 60 e, portanto, conhece por dentro o mecanismo da constituição desses movimentos, Affonso Romano, também como um teórico, tenta desvendar esses enigmas que cercam a questão da criação artística. Nesse sentido, depara-se com um certo tabu atual sobre se fazer uma revisão da história da Arte do século XX, apesar de atravessarmos uma situação histórica que deveria interessar a todos.
As apregoadas morte da arte e do autor são dois sofismas contemporâneos: se não existe arte não existe autor. Mas há um paradoxo tragicômico: por um lado a AC vive de matar-se a si mesma e, por outro, demonstra uma vitalidade econômica assombrosa, pois uma arte que se mata o tempo todo anda rendendo muito nas Bolsas de Valores!
No plano da autoria – continua Affonso Romano – embora alguns digam que o autor está morto, (esta afirmativa deve-se sobretudo a dois autores: Michel Foucault e Roland Barthes – dois autores dizendo que o autor está morto), pode-se dizer que nunca houve um festival de narcisismos como nesta época da chamada sociedade do espetáculo. “Aí os mortos – vivíssimos! – disputam seus 15 minutos de glória”, diz o poeta, que acrescenta: “estamos num cemitério originalíssimo, onde os artistas, embora zumbis, estão mais vivos do que nunca!”
Ele levanta também uma questão interessante sobre os famosos Manifestos lançados desde os princípios da Arte Moderna, que adiantavam que tipo de produto estava sendo colocado na praça. Deles, a arte do século XX caminhou radicalmente em outra direção: constituiu a Arte Conceitual, privilegiando o conceito em relação à obra, até chegar o momento, muito atual, de que o Conceito passou a dispensar a obra! “Como se a bula dispensasse o remédio”, reflete ele. A ideia da obra passou a ser a própria obra, instituiu-se que qualquer conceito lançado pelo artista é digno de ser observado e discutido, como se qualquer conceito fosse autosustentável ou tivesse uma dose de genialidade implícita.
Para empreender uma análise de todo esse processo, basta fazer o que ele chama de deslocamento de conceitos. Ele observa que todas as grandes transformações teóricas da história e da cultura foram deslocamentos de conceitos, como em Copérnico, Kepler, Einstein, Freud e Marx, pensadores que deslocaram conceitos, deslocaram o conhecimento e a perspectiva, instalando novos paradigmas.
Affonso Romano de Sant'Anna
Affonso Romano de Sant’Anna, refletindo sobre o urinol de Duchamp destaca um silogismo intrigante: se um urinol, como qualquer coisa, é obra de arte, então cocô de cavalo, como qualquer coisa, é obra de arte, e o mínimo que esse sofisma faz é acabar com a idéia de diferença e de identidade, o que traz conseqüências terríveis. Prega-se a mesmice. Hoje tanto na Arte quanto no Direito, há uma glamourização do culpado. Se Duchamp é o grande responsável pela morte da Arte (os livros de história da arte dizem isso) nunca o autor foi tão glamourizado, nunca se escreveram tantos livros interpretativos e elogiosos da sua obra. E assim como Duchamp, Andy Warhol e Joseph Beuys, quanto mais radical e mais “assassino” da arte for o artista, mais glorificado passa a ser.
A transgressão parece ter se tornado norma em nossa sociedade, entre os artistas, como se pode ver nas últimas Bienais de São Paulo. Mas quando um grupo de grafiteiros quiseram preencher o “vazio” da 28ª. Bienal, acabaram sendo presos a pedido dos organizadores da própria Bienal. De repente, diz Affonso, a Bienal não é mais um assunto de artista, mas um assunto de justiça!
Essa ideologia do tempo atual precisa de uma profunda revisão e de um profundo deslocamento, pois o pensamento pós-moderno envolucra tudo o que está acontecendo com a AC e impõe alguns comportamentos, o que leva à pergunta que ele fez em seu último artigo sobre a 29a Bienal de 2010: “é o artista um cidadão acima de qualquer suspeita?” E acrescenta: “o artista pode se comportar como um bebezão, que estraçalha brinquedos, que interrompe o que seja para chamar atenção?”
Há um traço da pós-modernidade que cria paradoxos que confundem a todos. O poeta cita um exemplo de um episódio recente da guerra de traficantes no Rio, quando um matou o outro e colocou sobre o cadáver da vítima um cartaz escrito assim: O lado certo da vida errada. “Isto é a síntese da pós-modernidade”, diz Affonso, e a AC nada mais é do que o sintoma de que algo mais grave está acontecendo em nossa época e que exige reflexão. A sociedade atual diz o tempo todo: transgrida! E aí surge o paradoxo: se a transgressão virou uma norma, não transgredir passou a ser a exceção. Se se diz atualmente “seja livre”, esta afirmativa é uma condenação.
O século XX trouxe grandes alterações nas formas da vida social mas nos jogou uma série de paradoxos que ainda não conseguimos resolver. E isso implica fazer uma profunda revisão na Arte de hoje, mesmo que seja para destronar os ícones que o pensamento atual protege como a uma religião, como Duchamp, por exemplo. Precisamos de um novo deslocamento teórico, portanto. E Affonso Romano convida a uma visão crítica, pois “só podemos avançar se tivermos nitidez sobre o que está acontecendo atualmente com o pensamento dominante, inclusive na AC”, criando um novo patamar onde possamos não só questionar a arte do nosso tempo quanto a ideologia vigente.
A maneira de resolver esse conflito é pensar isso pelo deslocamento, pela tentativa de um novo enfoque que agora privilegie, não mais a morte, mas a vida.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Alcântara do Maranhão e Marcel Duchamp

Passei 21 dias de férias pela Ilha Rebelde, São Luís do Maranhão, neste final de 2010. E dois dias caminhando entre ruínas históricas e estéticas da bela cidade de Alcântara, primeira capital do Estado do Maranhão. Nessas caminhadas, máquina fotográfica a postos, flagrei esta imagem que poderia ter sido transformada em obra de arte conceitual em qualquer museu de arte contemporânea! Como ninguém teve essa ideia antes??? Professores da FAAP e ECA, tremei! Deve ter um artista conceitual em processo de germinação no Maranhão... (tomara que não!)

E claro, ato contínuo, lembrei da famosa "obra de arte" (entre aspas mesmo!) "A Fonte", que ainda faz tremer os admiradores do criador da arte conceitual, o francês Marcel Duchamp.


Eis aqui a "obra" de Duchamp:
Qualquer semelhança é mera concidência? Claro! Ou pode ser que por uma dessas voltas que a vida dá, algum maranhense tenha achado (e eu concordo com ele) que é melhor uma "Fonte" com conteúdo do que uma "Fonte" vazia... E deu uma utilidade para o objeto: encheu-o de plantas que, vivas e alimentadas pela umidade permanente daquele pedaço do Brasil, falam de vida, de cor, de crescimento, de suavidade, de luminosidade, de embelezamento. Em meio à umidade da terra da Fonte alcantarense, microorganismos, minhocas, insetos e ocasionais borboletas movimentam aquele pequeno cosmos. Além de tudo, mostra a presença humana naquele arranjo em meio a flores e outras plantas que enfeitam a casa de um cidadão sensível à beleza do mundo! E que embeleza a vida dos outros!

A "Fonte" de Duchamp, em revanche, não tem nada. É vazia, descolorida, fria, acéptica... Não diz nada, não quer dizer nada, nunca quis. Quando espertamente Duchamp descobriu que havia gente que comprava aquilo, fez não sei quantas cópias de sua "Fontaine" e saiu vendendo por aí, ganhando seu dinheirinho honesto com a imbecilidade alheia...

Mas talvez a "Fontaine" diga mesmo algo, não sejamos sectários a ela: que o fato de ser tão endeusada ainda nos dias de hoje, talvez ela seja mesmo o reflexo vazio de uma sociedade pós-moderna desiludida com a Beleza do mundo e do homem. Sociedade que fica tentando criar discursos para tentar explicar porque é tão superficial, tão deprimida, tão consumista, tão massificada, e onde o indivíduo se encontra tristemente engolfado nessas malhas que o sistema atual (e sua mídia) pinta com aparências de liberdade... Liberdade? Que liberdade tem hoje o indivíduo, obrigado a pertencer ao status quo sob pena de alijamento e preconceito de todo tipo?

A "Fontaine" de Duchamp representa tudo isso, um penico elevado ao status de Arte, que nem mesmo serve - como diz a música de Zeca Baleiro - para guardar "água da última chuva"...

Acho que preferi aquela Fonte lá de Alcântara!

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A Bienal de Artes que se diz política

Foi inaugurada em São Paulo, no último dia 25 de setembro, a 29ª Bienal Internacional de Artes, no pavilhão do Ibirapuera. A mostra estará aberta ao público até o dia 12 de dezembro de 2010, com obras de 159 artistas de várias partes do mundo, sendo 52 brasileiros.


Neste domingo chuvoso e frio de 26 de setembro, fui visitar a 29ª Bienal de Artes de São Paulo. Como ainda estava cedo, uma meia dúzia de pessoas entrou no prédio, após uma revista rigorosa de seguranças postados na entrada. A moça que portava um scanner ameaçador, pediu: “pode abrir sua bolsa?” Eu perguntei: “por que? Para ver se eu não estou trazendo um spray comigo?” Enquanto examinava minha bolsa, respondeu: “Ordens da direção”. Entrei no prédio e fui refletindo, em estado de choque: Bienal da violência? Na noite anterior um rapaz tinha invadido uma instalação e deixado lá uma frase de protesto: “Liberte os urubu!” (sic)

Mas o tema escolhido para este ano é “Arte e Política”. Segundo os curadores Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, a ideia de fazer dessa Bienal de 2010 uma exposição que tenha essa conotação política, deve-se ao fato de ser importante “resgatar o entendimento tradicional na relação que sempre existiu entre Arte e Política.”

Arte e política?
Mas é necessário esclarecer que o entendimento que os curadores desta Bienal têm da relação arte-política está longe de ser tradicional. Diz Agnaldo Farias: “Nossa ideia é criar um conceito-arquipélago, sem bordas nítidas. Queremos escapar de uma noção literal do binômio “arte e política”, associada a uma tradição realista, e recuperar uma outra compreensão, de uma arte mais experimental, que ataca no âmbito da linguagem, levando a novas formas de sociabilidade e de compreensão do objeto artístico.” Então... como diz a música “Bienal” do Zeca Baleiro, “minha mãe não entendeu o subtexto/ da arte desmaterializada no presente contexto/ reciclando o lixo lá do cesto/ chego a um resultado estético bacana...” E fazemos um esforço honesto de compreensão dessa verborragia que mais parece ter sido construída com o intuito de atrair de novo as atenções para uma entidade que se esvazia ano a ano.

O “objeto artístico”, no caso desta Bienal, é basicamente centrado na fotografia. Andando-se pelo pavilhão entremeado de pequenos ambientes fechados, e do que os curadores chamam de “terreiros”, o público se depara com uma quantidade enorme de fotografias, isoladas, agrupadas, formando conjuntos grandes ou pequenos. Há também espalhados em espaços apropriados, os vídeos, que apresentam temas os mais variados, desde pequenos documentários e assuntos non-sense a um vídeo do cineasta francês Jean-Luc Godard. E instalações diversas espalhadas pelo prédio, de artistas nacionais e estrangeiros.

A representação internacional de artistas segue, basicamente, o mesmo perfil. Traz do norte-americano Joseph Kosuth, criador e teórico importante da arte conceitual, à fotógrafa Nan Goldim, também dos EUA, que influenciou toda a fotografia praticada a partir dos anos 1980 (inclusive a de moda), ao chinês Ai Weiwei.

No caso deste chinês, sua obra – um conjunto de cabeças de animais estranhos espetadas em suportes que lembram troncos estilizados – foi colocada estrategicamente no hall de entrada do prédio. No site da Fundação Bienal, ele é apresentado como um chinês nascido na China socialista, mas que se exilou “voluntariamente por um período em Nova York, o que alargou seu repertório conceitual, visual e histórico”, segundo a organização da Bienal que acrescenta que seu “Circle of Animals” lá exposto tem um “forte valor simbólico e material que apropriam e ressignificam objetos”. Pois é.

Além dos espaços destinados à apresentação das obras, a Bienal também conta com seis espaços, que estão sendo chamados de terreiros, usando os 30 mil metros quadrados de área disponíveis no Pavilhão do Ibirapuera. A ideia dos “Terreiros”, para os organizadores, é dar o tom de celebração da política, “uma vez que o terreiro, na cultura brasileira, é um espaço entre o sagrado e o profano, um espaço da troca, da festa, mas também da resistência”, disse Agnaldo Farias, o curador. Tentando examinar os tais “Terreiros”, cheguei à conclusão que mais uma vez o discurso se coloca na frente da arte: terreiros conceituais. Mãe Menininha do terreiro do Gantois jamais poderia reconhecer na megalomania conceitual desses gestores de arte atual, o bom e velho terreiro dos brasileiros.

Mas estão presentes também artistas da arte contemporânea nacional, como Cildo Meirelles, Hélio Oiticica, Artur Barrio, Antônio Dias e o performático Flávio de Carvalho. A presença das xilogravuras de Oswaldo Goeldi chega a ser uma dissonância em meio à monotonia do que se apresenta nesta mostra. O artista cearense Efrain Almeida também está presente, com uma instalação composta de cinco autorretratos esculpidos em madeira, postos em pedestais desproporcionais ao tamanho deles. Mesmo se mantendo dentro da tradição cultural nordestina, sua linguagem artística (como gostam de falar os arautos da arte contemporânea) se atualizou ao ponto de ele já ter participado de várias bienais internacionais. No corpo das figuras, com machetaria, fez tatuagens de carcarás, urubus, cactos e símbolos do cangaço. Mas ele diz uma frase que reflete bem como é a vida do artista da região nordeste, especialmente: “Nascendo onde nasci, em contexto de poucas possibilidades, fazer arte é atitude política”. Concordo.

Atitude política que tentou passar o Ministro Juca Ferreira no dia da inauguração da 29ª Bienal. O Ministro, cujo Ministério da Cultura foi um dos grandes patrocinadores da mostra deste ano de 2010 (o governo federal repassou À Fundação Bienal aproximadamente R$ 46 milhões), elogiou o esforço dos diretores da Bienal em recuperar administrativamente essa instituição, que foi deixada bastante endividada após o fracasso da 28ª Bienal, que ficou conhecida como a Bienal do Vazio. O Ministro, referindo-se ao tema “Arte e Política”, disse: “ouso dizer, que é impossível separar arte e política. Apesar de tantas interpretações possíveis para definir esta relação. (...) A Política entendida aqui como a arte da convivência coletiva com nossos impasses e virtudes, mas também a busca coletiva de soluções para os problemas de todos nós. A Política como campo privilegiado das negociações sociais e do exercício de poder compartilhado, como uma arte de exercício do conhecimento e revelação de possíveis mundos.”

Mas esses “possíveis mundos” – ou a probabilidade de todos os mundos e ideias artísticas possíveis – não estão presentes nesta Bienal. Com exceção de uma rara tela de pintura, das gravuras de Goeldi e dos desenhos de Gil Vicente, não se encontram presentes outras linguagens das artes plásticas, especialmente a figurativa, considerada pelo sistema de arte atual, como coisa do passado.

A Bienal e seus escândalos

Gil Vicente e FHC
Como não poderia deixar de ser, esta versão da mostra que ocorre a cada dois anos em São Paulo, está tendo seus momentos de polêmicas que tomam as páginas dos jornais e os programas televisivos.

A série de desenhos intitulada “Inimigos", do pernambucano Gil Vicente, causou polêmica antes mesmo de ser exposta. Nela, o artista retrata a si mesmo matando personagens famosos como Fernando Henrique Cardoso e Lula. Uma semana antes da abertura da Bienal, a OAB-SP divulgou uma nota em que se coloca contra a exposição da série, "por fazer apologia ao crime".

Em entrevista a estudantes uma semana depois, Gil Vicente disse que escolheu os personagens, de acordo com sua repulsa pessoal. Ele desenhou-se a si mesmo portando na mão um revólver apontado para figuras públicas, colocando Lula em pé de igualdade com FHC e George W. Bush. No caso de Lula, Gil Vicente aparece de pé atrás do Presidente, que se encontra amarrado a uma cadeira, indefeso, com uma faca contra seu pescoço. Vicente disse que os desenhou por compreender “muito intensamente a impossibilidade de mudança no mundo, e que, qualquer tentativa seria abafada.” Com toda a certeza, os torturadores do regime militar e os inimigos atuais do Presidente do Brasil teriam adorado ver Luís Inácio sendo torturado, mesmo que em efígie, e ameaçado de morte. Como isso pode contribuir para uma reflexão entre arte e política, a não ser incitando sentimentos de ódio e violência?

Violência também presente sutilmente numa outra obra, a instalação “Bandeira Branca” de Nuno Ramos. Movimentos em defesa dos animais e defensores dos direitos dos animais se puseram a postos para boicotar a bienal que aprisiona, em nome da “arte”, três urubus vivos. Mas o ato mais contundente contra essa instalação foi cometido pelo jovem pichador Rafael Augustaitiz, ou Rafael Pixobom, como é conhecido. Ele rasgou um lado da tela protetora da instalação e escreveu com spray: “Solte os urubu!” Foi preso. Entrevistado sobre o assunto, Nuno Ramos disse que não ia prestar queixa contra o rapaz, mas que achou um absurdo pois “a Bienal é um momento em que o público abre a cabeça” (sic!).

Obra de Roberto Jacoby
Outra obra que deu assunto para jornalistas de plantão foi a proibição, por parte do Tribunal Regional Eleitoral, da exposição da obra “A alma nunca pensa sem imagens”, do artista argentino Roberto Jacoby, declaradamente fã de Lula e do PT. A iniciativa de consultar o TRE partiu dos próprios curadores da Bienal, segundo Jacoby. Ele apresentava duas fotos gigantes, uma do José Serra num zoom carrancudo e outra da Dilma Roussef exultante com um chapéu de couro colorido com as cores da bandeira de Pernambuco. Além disso, o argentino trouxe uma equipe de auxiliares argentinos, todos vestidos com camisetas vermelhas com a inscrição “Brigada Argentina por Dilma”, estampada em amarelo. Pronto! A Bienal política não pode induzir pessoas a pensar em eleições presidenciais... Mas a mesma Bienal defende um quadro onde o autor quer matar o Presidente Lula...

Já no final da minha visita, resolvi entrevistar quatro pessoas, que me pediram para serem mantidas em segredo, porque são todas funcionárias terceirizadas da Fundação Bienal. Minha escolha por entrevistar trabalhadores da Bienal, e não o público presente, foi intencional. Elas não estão lá porque ouviram dizer que a Bienal está causando frisson pelas polêmicas do momento, mas porque lá trabalham. São eles: um bombeiro, uma segurança e duas monitoras.

Para os quatro, fiz a mesma pergunta: para você, isto que está exposto aqui é arte? A primeira reação de todos foi um sorriso de dúvida. Em seguida, palavras oscilantes tentando se posicionar. O bombeiro a princípio resistiu em responder, mas quando eu lhe dei minha opinião, ele disse: “olha, eles dizem que é arte. Mas eu não entendo isso. Não sei se é arte. Algumas coisas acho que são.” Enquanto a moça que fazia a segurança de um dos setores me disse: “Ah tem umas coisas bonitas, mas tem umas coisas feias... E esses urubus aí, eu não acho que é arte. Mas é que eu não entendo muito...”

Me dirigi às moças que fazem a monitoria e orientam o público sobre as obras. Minha pergunta as assustou um pouco, mas logo uma delas me respondeu: “Você sabe, né? Hoje em dia há um entrelaçamento muito grande entre as linguagens artísticas, que conversam entre si.” Questionei onde estava esse entrelaçamento, uma vez que o que eu via ali era tudo arte conceitual? É que hoje em dia, a arte visual está mais independente do desenho e da pintura. Ah, tá... respondi. Mas e você, me dê sua opinião pessoal, você realmente gosta disso que está aqui? Ela: “ah, eu não sei, assim, sabe, meu professor disse que a gente precisa abrir mão dos conceitos antigos para assimilar esse novo momento na arte”. E esse novo momento na arte não deixa mais ninguém ser desenhista e pintor? Ela me olhou, sorrindo, sem saber o que responder. Agradeci, saí.

Saí pensando o quanto seria bom se aquele prédio tão bonito, assinado por Oscar Niemeyer, fosse de fato pluralista e aberto a todas as linguagens das artes visuais. Um espaço, que é público, deveria ser mais democrático, mais aberto a artistas brasileiros e estrangeiros de todos os estilos. Quem sabe um dia poderíamos fazer uma grande Exposição de Artes realmente representativa de toda a arte que é feita neste país, em milhares de ateliês e por milhares de artistas solitários que lutam com muito esforço para sobreviver nesse mundo aí.