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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Uma homenagem a Eric Hobsbawm

Eric Hobsbawm
Morreu hoje, 1 de outubro, o historiador Eric Hobsbawn. Era uma figura das mais célebres do marxismo britânico, tendo produzido uma rica obra que ajudou na formação de dezenas de milhares de pessoas ao redor do mundo, dentro da visão marxista da história.

Sua história de vida é das mais ricas: era criança ainda em Viena quando Freud (o pai da psicanálise) já era famoso, estudou em Berlim nos últimos dias da República de Weimar, depois estudou em Londres e se tornou militante do Partido Comunista Britânico. Foi também crítico de Jazz, professor convidado em uma Universidade da Califórnia (EUA) justamente no período em que havido surgido o movimento hippie.

Hobsbawm era um marxista apaixonado. Em sua autobiografia "Franco-atirador", ele descreveu a última manifestação do Partido Comunista alemão na legalidade, da qual ele participou, em Berlim, no dia 25 de janeiro de 1933: "Assim como o sexo, a  única atividade que combina experiência corporal a uma emoção intensa elevada ao mais alto grau é a participação em uma manifestação de massas num momento de grande exaltação política". Ou seja, é essa sensação de se sentir um ser ativo, um agente da História.

Mas minha homenagem a este grande pensador da humanidade é a de traduzir aqui um pequeno trecho de seu artigo "Sexe, symboles, vêtements et socialisme", justamente no ponto em que ele analisa a grande figura feminina presente no centro do quadro de Eugène Delacroix, "A Liberdade guiando o povo".

Diz Hobsbawm: 


"Começaremos por esta que deve ser a mais famosa das pinturas revolucionárias, mesmo que seu autor não tenha sido tão famoso quanto sua obra: quero falar de "A Liberdade guiando o povo" de Delacroix (1831). O tema é conhecido de todos: uma moça com os seios à mostra, com um boné frígio na cabeça e, segurando uma bandeira, atravessa os corpos empilhados sobre a barricada enquanto que a seguem outros homens armados e vestidos de forma característica. 
Muito se explorou sobre este tema. Mas de qualquer maneira, a forma na qual os contemporâneos dele interpretaram este quadro não deixa dúvida: para eles, esta Liberdade não tinha nada de uma figura alegórica, mas se tratava de uma mulher bem real (provavelmente inspirada na heroína Marie Deschamps, cujas façanhas deram a Delacroix a ideia da pintura), uma mulher do povo, pertencente ao povo, orgulhosa de  pertencer ao povo:
"É uma mulher forte com poderosos seios,
com voz rouca, encantadoramente dura
Quem...
Ágil e marchando com passos largos
Gosta do grito do povo..."          
(Barbier, "A curadora")
Balzac a via como uma camponesa: "a pele sombria, ardente, a imagem mesma do povo". Orgulhosa e insolente (sempre segundo Balzac), ela representava a antítese exata da imagem da mulher burguesa. Por outro lado, como não deixam de sublinhar seus contemporâneos, ela era uma mulher sexualmente liberada. Barbier, cujo poema "A curadora" foi fonte de inspiração para Delacroix, vai até inventar toda a história de sua emancipação sexual. Ela:
"Que não possui amor senão pelo seu povo
que não cede seu largo flanco
a não ser às pessoas fortes como ela"
após ter, "criança da Bastilha", excitado o mundo inteiro, cansada de seus primeiros amantes, segue as bandeiras (de Napoleão) e uma "capitã de 20 anos", finalmente retorna,
"Sempre bela e nua
Com uma echarpe de três cores"
para ajudar seu povo a vencer os "Três Gloriosos".
(...)
A novidade da "Liberdade" de Delacroix é, portanto, esta identificação da imagem da mulher nua com uma verdadeira mulher do povo, emancipada, e que joga um papel ativo, como uma dirigente do movimento dos homens. De quando data precisamente essa nova imagem revolucionária? Esta é uma questão que compete aos historiadores da arte responder.  Para nós, observamos duas coisas. Primeiro, por sua natureza concreta ela rompe com o papel de simples alegoria que era ordinariamente atribuída às figuras femininas; agora ela conserva a nudez, nudez que o pintor não procura jamais dissimular e que os críticos perceberam. Esta mulher não está lá para inspirar nem para representar: ela AGE. 
Em seguida, ela se distingue claramente como uma mulher combatente da Liberdade, diferente daquela que a iconografia tradicional descrevia, onde o melhor exemplo é Judith que, assim como David, representava a luta do fraco contra o forte. Diferentemente desses dois heróis, a "Liberdade" de Delacroix não está só e não tem nada de fraca. Muito ao contrário, ela encarna toda a força concentrada do povo invencível. 
"O cerco de Saragossa", de David Wilkie, 1828
Mas ela, enquanto ser sexual, se separa da virginal Joana D'Arc, por exemplo. Se trata de uma mulher jovem, nem mãe nem esposa - pelo menos podemos supor isso. Podemos medir o contraste desta imagem revolucionária e seu equivalente não-revolucionário, comparando o quadro de Delacroix com uma outra obra que lhe é quase contemporânea, "Le siège de Saragosse" (O cerco de Saragossa), de David Wilkie (1828). Nesta, vemos uma heroína bem real, inteiramente vestida, mas numa postura alegórica, com um camponês de dorso nu agachado perto dela. O quadro é um episódio das guerras pré-napoleônicas. 
Ora, Byron que lhe descreve em "Childe Harold", exprimindo toda a sua admiração pelos combatentes espanhois, insiste no fato de que a "Fille de Saragosse" não está postada fora dos limites disso que os homens, do alto de sua superioridade, avaliam ser um comportamento convencional para uma mulher: "Portanto as moças da Espanha não são uma raça de Amazonas, mas mulheres experientes em todos os encantos do amor". E ele busca uma explicação para esse heroísmo pouco feminino: ela está sendo simplesmente leal a seu marido morto. Seus atos manifestam a "ferocidade de uma pomba". 
Estamos, então, bem longe da "Liberdade".
É a revolução de 1830 que constitue - parece - o ponto culminante dessa imagem da Liberdade como uma moça jovem ativa, emancipada e aceita como dirigente pelos homens, ressaltando-se que o tema ainda era popular em 1848, provavelmente por causa da influência de Delacroix sobre os outros pintores. Ela surge, assim, sempre nua em seu boné frígio, inclusive na "Liberdade sobre as barricadas" de Millet (Jean-François), apesar de que o contexto já tinha se modificado. Mesma coisa nos esboços de Daumier, "L'émeute" (O motim). Por outro lado, as raras representações da Comuna e da Liberdade que datam de 1871 são em geral mostradas nuas (como o desenho de Rops) ou os desenhos descobertos (depois). 
O papel notoriamente ativo cumprido pelas mulheres durante a Comuna de Paris, inspirou artistas de outros países que usaram como símbolo para ilustrar essa revolução os traços de uma mulher não-alegórica (ou seja, nua) e manifestadamente militante. A tendência a representar o conceito revolucionário de liberdade ou de república através de uma mulher nua ou, mais frequentemente, com os seios descobertos, continuou a existir. Desta forma, a famosa estátua da República, do communard (membro da Comuna) Dalou, na Place de la Nation (em Paris), apresenta o seio nu. Deveria haver uma pesquisa mais vigorosa para verificar se a exposição dos dois seios (ou de um só) se associava sempre à revolta ou, em sua falta, à polêmica, como pode ser o caso de um desenho feito na época do "Caso Dreyfus" (janeiro de 1898) onde vemos uma Marianne jovem e virginal, com um seio nu, protegida de um monstro por uma matrona Justiça com armas na mão, com esta legenda: "A Justiça: Não tenha medo da besta. Eu estou aqui!"
Emblema da Sociedade dos Carpinteiros
londrinos
Mas, por outro lado, Marianne, a República institucionalizada, aparece, doravante, normalmente vestida, mesmo que ligeiramente, apesar de suas origens revolucionárias. É de novo o reino da decência. E pode ser também o da mentira, na medida em que a nudez caracteriza em princípio a figura alegórica e feminina da Verdade - sempre frequente, notadamente nas caricaturas que foram feitas sobre o "Caso Dreyfus". 
Nua ela permanece na iconografia do respeitável movimento trabalhista britânico, como vemos no emblema da "Amalgamated Society of Carpenters and Joiners" (sociedade dos carpinteiros e marceneiros unidos) de 1860, antes que a moral vitoriana se impusesse.
(...)
Tais imagens são particularmente significativas na medida em que, de um lado, elas têm um lugar evidente em todo o então jovem movimento socialista que elabora sua própria iconografia e, por outro, (...) se inspira na imagerie revolucionária francesa, onde a Liberdade de Delacroix procede igualmente".
"A Liberdade guiando o povo", de Eugène Delacroix, 1831, Museu do Louvre, Paris, França

quinta-feira, 26 de abril de 2012

A liberdade expressiva de Eugène Delacroix

A barca de Dante, de Eugène Delacroix, óleo sobre tela, 189 x 242 cm, 1822, Museu do Louvre, Paris
          No dia de hoje, há 214 anos atrás, nasceu o pintor francês Eugène Delacroix, em 1798, em Saint-Maurice, nos arredores de Paris. Ele era o quarto filho de Victoire Oeben e Charles-François Delacroix, um político bastante ativo, e que era ministro das Relações Exteriores da França na Holanda, quando o menino nasceu. Seu pai era um revolucionário que acreditava profundamente nos ideais que moviam seu país em direção ao futuro. Além disso, era um homem culto e de formação iluminista.
Eugène Delacroix,
fotografia de Félix Nadar, 1858
          Era um período tumultuado da história francesa, que passava por mudanças bastante importantes, levando-se em conta que dez anos antes, em 1789, havia acontecido a Revolução Francesa. Por isso, Delacroix cresceu num tempo de muita instabilidade política, com notícias frequentes de decapitações, delações, castigos. Pessoas, inclusive e sua família, eram presas e até decapitadas. A monarquia e o clero vinham perdendo seus privilégios, enquanto a República se fortalecia.
          Delacroix tinha um tio materno, Henri Riesener, que foi aluno do pintor Jacques-Louis David. Riesener tinha perdido seus bens no período da Revolução, mas, graças à pintura, conseguiu garantir sua subsistência e até recuperar sua fortuna. Enquanto isso, o sobrinho Eugène Delacroix, desde muito cedo, demonstrava ser possuidor de muito talento para a pintura.
          Charles-François Delacroix, seu pai, foi nomeado prefeito da cidade de Bordéus, mas morreu pouco tempos depois, em 1805. Eugène e sua mãe foram para Paris, onde ele foi estudar no Liceu Imperial (hoje Liceu Louis-le-Grand), tendo recebido uma formação humanista. Em Paris, Eugène Delacroix deu asas à sua atração pelas artes plásticas e passou a frequentar os museus, especialmente o Louvre, onde descobriu e se encantou com a obra de Ticiano, Veronese, Rafel, Tintoretto e Rubens, além de outros. No museu, fazia cópias das obras. E frequentava os ateliês dos pintores que conhecia.
Autorretrato presumido,
Museu de Belas Artes de Rouen, França
          Quando tinha 13 anos de idade, morreu sua mãe, deixando-o em grave crise, não só emocional, como material e física. O menino foi morar com a irmã Henriette e seu marido, pois a saúde dele era frágil e tinha febres intermitentes. Depois, foi morar com seu tio pintor, Henri Riesener. Graças a ele, Delacroix ingressou no ateliê do pintor Pierre Guérin. Em 1816, se matriculou na Escola de Belas Artes de Paris.
          No ateliê de Guérin, Delacroix teve uma formação neoclássica, dentro do estilo dominante na época. Lá também estudava Théodore Géricault, que tinha então 25 anos de idade e seguia uma linha diferente da utilizada pelo mestre Guérin, que não se importava que seus alunos ousassem expressões próprias. Tornaram-se amigos, Delacroix e Géricault. Eugène chegou a posar como modelo para Géricault pintar sua famosa tela “A balsa da medusa”, já em ateliê próprio do pintor. Ter visto o amigo Géricault pintando essa tela, influenciou bastante várias das pinturas de Delacroix. Com isso, ele se via dividido entre a escola neoclássica do mestre Guérin e o romantismo de Théodore Géricault.
          A partir de 1819, Delacroix começou a receber encomendas, mas passou também a pintar retratos de amigos. Fazia também ilustrações e caricaturas políticas e literárias. Porque ele também tinha muito interesse em literatura, tanto a clássica, quanto a dos séculos XVII e XVIII. Lia também Lord Byron, Dante Alighieri e Shakespeare. Gostava muito também de ir ao teatro e chegou até a estudar música, uma vez que seu interesse pelas artes de uma forma geral era muito grande e ele tinha interesse em buscar as relações entre as diversas formas artísticas.
Cavalete de Delacroix em seu Museu em Paris (foto: Mazé Leite)
          Também aprendeu a técnica da aquarela com seu amigo Raymond Soulier, pintor e gravador. Eles trabalharam juntos no desenho de peças para máquinas industriais, com o que ganhou seu primeiro dinheiro a partir de seu talento de artista.
          No Salão de Outono de Paris de 1822, Delacroix inscreveu sua tela “A barca de Dante”, que dividiu especialistas e público. Uns o criticavam violentamente, outros reconheciam no quadro o talento do artista. O pintor Antoine-Jean Gros, um dos membros do júri do Salão de Outono, definiu o autor de “A barca de Dante” como um “Rubens atormentado”. Delacroix recebeu o elogio com mais satisfação ainda, por ter sido comparado a um de seus mestres preferidos. No período em que pintou esse quadro, Delacroix vivia tão precariamente que a moldura da tela era muito precária e se quebrou no transporte entre seu atelier e o local da exposição. Foi Gros quem financiou uma nova moldura para o quadro. Depois, o artista registrou em seu diário que com essa obra havia encontrado o seu estilo, inspirado na “Divina Comédia” de Dante.
Palheta de Delacroix (foto: Mazé Leite)

          Mas foi qualificado, pela Academia francesa, como “perturbador da ordem pública”. Sua afinidade com o estilo da nova geração de pintores o afastava cada vez mais da escola neoclássica. Gostava das ideias de Victor Hugo, de Cassiano Delavigne e de Lord Byron. Expôs o quadro “Os Massacres de Scio”, sobre a guerra de independência dos gregos, no Salão de 1824. Ele terminou de dar os últimos retoques no próprio local da exposição, inspirado nos céus das telas do pintor inglês John Constable. Ao lado da pintura “O voto de Luís XIII” de Jean-Auguste-Dominique Ingres, o quadro de Delacroix se destacava, como mais dinâmico e mais vivo.
          Em 1824, morreu seu grande amigo Géricault. Delacroix gastou todo o dinheiro que tinha comprando os desenhos e estudos do amigo falecido, e os guardou consigo.
A Grécia sobre as ruínas de Missolonghi, 1826,
Museu de Belas Artes de Bordeaux, França
          Com 27 anos de idade, em 1824, foi para Londres para estudar as técnicas de pintura dos ingleses, como Constable, Thomas Laurence, entre outros. Quando voltou a seu ateliê em Paris trouxe a experiência vivida em Londres e começou a trabalhar intensamente, iniciando uma fase muito produtiva. Dizia-se ser capaz de encher a cidade com pinturas. Pintava a óleo, fazia litogravuras, águas-tintas, estudos, aquarelas. Ganhava algum dinheiro fazendo ilustrações também, como as que fez para o livro “Fausto” de Goethe. Desenhou os figurinos para uma peça de teatro de autoria de Victor Hugo que ia estrear no Teatro Odéon. E enviava trabalhos para os salões anuais.
          Mas era o tempo em que imperava o estilo neoclássico em Paris. E isso o deixava sozinho em seu meio. Mesmo assim estreitou relações com os círculos intelectuais românticos, enquanto seu talento era reconhecido. Frequentava também salões literários, convivia com Victor Hugo, Alexandre Dumas, Prosper Mérimée e Stendhal.
          Em 1830 estourou em Paris a chamada Revolução de Julho. O povo e os trabalhadores franceses, guiados por ideais republicanos e com o apoio da burguesia mais liberal, se levantaram contra o rei Carlos X, que vinha se mostrando um déspota, cortando direitos, inclusive anulando as eleições. Carlos X foi deposto, mas uma monarquia burguesa ocupou seu lugar, com a posse de Luís Felipe, que era ligado ao setor financeiro da burguesia. O povo ficou de mãos vazias.
Jardim interno da casa onde viveu Delacroix até sua morte. Nessa espécie
de edícula com três janelas estava localizado o seu atelier (foto Mazé Leite)
          Eugène Delacroix, inspirado nesses e em outros fatos da história da França, pintou seu célebre quadro “A Liberdade guiando o povo”. Com ele, ganhou a medalha da Legião de Honra.
No mesmo ano, o embaixador francês Charles de Mornay convidou o pintor para acompanhá-lo numa viagem ao Marrocos. Essa viagem deixou Delacroix deslumbrado com o que viu. Desde o primeiro dia foi registrando suas impressões no famosos carnets de Marrocos. Da viagem ao norte da África e Espanha, Delacroix trouxe uma quantidade muito grande de desenhos, aquarelas, esboços, notas. Alguns dos quais eu puder ver em minha visita ao Museu Delacroix de Paris, em 2011.
          Em 1846, o poeta Charles Baudelaire, que também era crítico de arte, elogiou a obra de Eugène Delacroix, num momento em que toda a crítica estava contra ele. Baudelaire, em um artigo, dava a definição do Romantismo e destacava o papel de destaque que tinha Delacroix: “excelente desenhista, colorista prodigioso, compositor apaixonado e fertilíssimo”; “era capaz de expressar a intimidade do espírito e o aspecto assombroso das coisas” e terminava dizendo que Delacroix pintava “a alma em suas horas mais belas”.
          A partir de 1850, Delacroix se dedicou às grandes encomendas recebidas: as pinturas da capela de Santa Inês, em Saint Sulpice, da Galeria de Apolo no Museu do Louvre, e do Salão da Paz, no Hotel da Ville de Paris. Mas ao longo do tempo, começou a ter sérios problemas de saúde que o ritmo intenso de trabalho só piorava. Além de tudo, escrevia textos sobre estética. E em 1855, foi escolhido o representante da pintura francesa na Exposição Universal, ao lado de Ingres, que era então seu desafeto. Lembre-se que Ingres era um pintor radicalmente acadêmico e não suportava a liberdade expressiva de Delacroix.
          Em 28 de dezembro de 1855 mudou-se para a casa da Rua de Furstenberg, em Paris, que visitei no ano passado, pois lá funciona hoje o Museu Delacroix. Estava perto da igreja de Saint-Sulpice, já que era muito difícil, para ele, se deslocar diariamente vindo de longe para trabalhar na decoração da igreja. Por diversas vezes, por motivos de saúde, teve que sair de Paris para descansar em sua casa de campo ou na praia, o que aliviava um pouco o sofrimento com a laringite tuberculosa que o incomodava há anos.
          Eugène Delacroix morreu no dia 13 de agosto de 1863, em sua casa em Paris, com 65 anos de idade.
A Liberdade guiando o povo, óleo sobre tela, 260 x 325 cm, 1830, Museu do Louvre, Paris

terça-feira, 24 de abril de 2012

Os Faróis do tempo, de Baudelaire

O poeta Charles Baudelaire
             Charles Baudelaire foi um poeta francês nascido em Paris no dia 9 de abril de 1821. Deixou como obra principal a coletânea de poemas intitulada As Flores do Mal. Nascido dentro do romantismo, ele também passou pela poesia parnasiana e pelo simbolismo, mas é principalmente o cantor da modernidade. Amigo dos pintores mais importantes de seu tempo, ele aparece retratado nas telas de quase todos eles.
              Baudelaire, além de poeta e dos melhores críticos de arte de seu tempo, também desenhava e fez diversos autorretratos. Revelou-se um grande retratista dele mesmo, com seus desenhos na maioria traçados com caneta-tinteiro. Ele tinha mania de escrever comentários ao lado dos desenhos, do tipo: “Esse aqui é feito com elegância, mas bom para dar boas risadas... A pose é boa. Sempre com muitas hachuras. Obter o efeito de sombreamento com o mínimo de hachuras bem colocadas.”
Autorretrato, Baudelaire
                Mas ele adorava mesmo era a pintura e os pintores. Frequentava os ateliês dos diversos amigos que tinha em Paris, como Courbet, Fantin-Latour, Moureau e especialmente o de Eugène Delacroix. Gustave Courbet, em sua famosa e enorme tela “O atelier do artista” retrata diversos amigos, incluindo o poeta Charles Baudelaire, que aparece no canto direito do quadro, sobre uma mesa lendo um livro.
                Mas era Delacroix o seu pintor preferido e o considerava o mais sugestivo de todos os pintores. Quando Eugène Delacroix morreu, Baudelaire ficou inconsolável: “Eu não o verei jamais, jamais, jamais, a ele que eu tanto amei e que se dignou me amar e com quem tanto aprendi”. Delacroix tinha dado aulas de pintura a Baudelaire. Com pincel ou com caneta, ele fez mais do que autorretratos, mas foi com a pena que ele trabalho os melhores retratos do seu tempo, do pensamento do seu tempo, do seu modo de ver um mundo que mudava profundamente.


Folha de rosto do livro As Flores do Mal
rabiscada pelos censores da época
               Em seu livro As Flores do Mal, destacamos este poema, intitulado Os Faróis, onde ele pinça alguns dos grandes mestres pintores e os inclui em sua verve densa, dolorosa, profunda, como todos os poemas do seu maior livro.
                Esse livro foi publicado em junho de 1857 e é considerado uma das mais importantes obras da poesia moderna. Todo estudante de literatura que se preze, passa por Baudelaire. Ele inovou a poesia não somente com uma nova estética da Beleza, mas com uma visão sobre a realidade que vai muito além das aparências. Amigo de Victor Hugo e Gustave Flaubert, Baudelaire não perdoava seu tempo, nem poupava palavras e nem escolhia as formas mais bonitas para descrever o que quisesse sobre a realidade a mais trivial que fosse.
                Por isso As Flores do Mal foram acusadas de ir contra a moral pública e religiosa. O livro foi recolhido, sob acusação de obscenidade e seu autor e editor condenados a pagar uma multa. Para ser reeditado, seis poemas foram suprimidos do original, condição imposta pela justiça.
               No poema "Os Faróis", que faz parte de As Flores do Mal,  Rubens, Da Vinci, Rembrandt, Michelangelo, Goya, Watteau e Delacroix são apresentados como uns dos grandes faróis do mundo da pintura, dentro da escolha de Charles Baudelaire. São esses os faróis que brilham acima do tempo e que continuarão eternamente sendo objeto de admiração, de estudo e de inspiração para todos os artistas.


Ao poema:



Os Faróis

Rubens, rio do olvido, jardim da preguiça,
Divã de carne tenra onde amar é proibido,
Mas onde a vida aflui e eternamente viça,
Como o ar no céu e o mar dentro contido;

Da Vinci, espelho tão sombrio quão profundo,
Onde os anjos cândidos, sorrindo com carinho
Submersos em mistério, irradiam-se ao fundo
Dos gelos e pinhais que lhes selam o ninho;

Rembrandt, triste hospital repleto de lamentos,
Por um só crucifixo imenso decorado,
Onde a oração é um pranto em meio aos excrementos,
E por um sol de inverno súbito cruzado;

Michelangelo, espaço ambíguo em que vagueiam
Cristos e Hércules, e onde se erguem dos ossários
Fantasmas colossais que à tíbia luz se arqueiam
E cujos dedos hirtos rasgam seus sudários;

Impudências de fauno, iras de boxeador,
Tu que de graças aureolaste os desgraçados,
Coração orgulhoso, homem fraco e sem cor,
Puget, imperador soturno dos forçados;

Watteau, um carnaval de corações ilustres,
Quais borboletas a pulsar por entre os lírios,
Cenários leves inflamados pelos lustres
Que à insânia incitam este baile de delírios;

Goya, lúgubre sonho de obscuras vertigens,
De fetos cuja carne cresta nos sabás,
De velhas ao espelho e seminuas virgens,
Que a meia ajustam e seduzem Satanás;

Delacroix, lago onde anjos maus banham-se em sangue,
Na orla de um bosque cujas cores não se apagam
E onde estranhas fanfarras, sob um céu exangue,
Como um sopro de Weber entre os ramos vagam;

Eugène Delacroix, autorretrato
Essas blasfêmias e lamentos indistintos,
Esses Te Deum, essas desgraças, esses ais
São como um eco a percorrer mil labirintos,
E um ópio sacrossanto aos corações mortais!

É um grito expresso por milhões de sentinelas,
Uma ordem dada por milhões de porta-vozes;
É um farol a clarear milhões de cidadelas,
Um caçador a uivar entre animais ferozes!

Sem dúvida, Senhor, jamais o homem vos dera
Testemunho melhor de sua dignidade
Do que esse atroz soluço que erra de era em era
E vem morrer aos pés de vossa eternidade!


Livro: As Flores do Mal
Charles Baudelaire
Tradução de Ivan Junqueira
Editora Nova Fronteira
Rio de Janeiro
1985

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Meia noite em Paris


Neste domingo tive um encontro inusitado, mas bastante satisfatório. Estava passeando entre os corredores de um lugar arborizado, quando resolvi aproveitar a oportunidade das presenças importantes ao meu redor e convocar certas pessoas para uma importante reunião.

Camille Corot, auto-retrato
O primeiro que chamei foi Camille Corot e ele me ajudou a chamar todos os outros: Jacques Louis David, Georges Seurat, Jean-Auguste Dominique Ingres e Eugène Delacroix. Marx Ernst estava ali por perto, mas como não tenho interesse nas ideias dele, deixei de fora. Estávamos todos no cemitério Père Lachaise, com mais dezenas de outras figuras importantes da história francesa.

O encontro foi no Jardim do Crematório, um lugar tranquilo, cheio de flores coloridas bem arrumadas nos canteiros. Achei que era um bom lugar para esse encontro, um lugar fértil, adubado com as cinzas de milhares que já foram incinerados neste forno, cuja chaminé escura paira poderosa ao lado da abóboda do prédio.

Ingres, auto-retrato
Tive muito trabalho, no começo, para acalmar a verdadeira balbúrdia que se instalou entre meus convidados. Ingres queria partir para cima de Delacroix, macambúzio, no seu canto, enquanto Corot queria entender porque David nunca teve coragem de abandonar o atelier e ir pintar ao ar livre, ao que David respondeu que preferia as sombras projetadas dentro de um quarto fechado do que a luz chapada do sol nos campos. "Para isso você bem podia ter sido Barroco, mas faltava arrojo e você preferiu ser o queridinho dos salões!" Deixamos os dois e encontramos Pissarro que, por sua vez, tentava convencer Modigliani de que as figuras não precisavam ser tão esguias assim, nem tão chapadas. Modigliani berrava e gesticulava em italiano, sem ouvir uma palavra do pintor francês.

Georges Seurat tentava estudar os pequenos pontos luminosos que atravessavam as folhas das árvores, dizendo a Corot que ele não precisava ter sido tão literal assim, que bastava olhar para a luz, como ela se comportava em pequenos pontos, mas Seurat, indignado, gritou com ele que esse negócio de pontilhismo é para quem não sabe nem a sombra de como se usa um pincel!

Delacroix, auto-retrato
Enquanto Ingres se inflamava cada vez mais com Delacroix, David também se achou no direito de cobrar deste uma posição política mais definida. "Como assim?", perguntou Delacroix. "Você não viu que eu pintei a maior obra prima da Revolução, A Liberdade guiando o povo?" - Sim, respondeu David, mas eu falo de ação, camarada, de ação! Ao que Delacroix respondeu: você foi tão bonapartista quanto eu! Voilà!

Bom, como vi que a coisa estava cada vez mais fora de controle, dei um berro muito alto, usando da minha autoridade de idealizadora da reunião:

- ARRÊTEZ-VOUS, S'IL VOUS PLAÎT!!! Parem já!

Assustados com meu grito feminino quase histérico, eles me olharam. Continuei:

- Chamei vocês aqui porque tenho coisas importantes a discutir, então esqueçam suas desavenças e gostos pessoais. Esta aqui é uma reunião de trabalho!

Pissarro, auto-retrato
Ingres resmungou, David que já estava mais animado por uma briga, parou estático. Os outros ficaram ali, me olhando; Pissarro com um sorriso debochado. Não liguei.

De longe, à esquerda, ouvia-se a voz de Edith Piaf cantando "Je ne regrette rien", enquanto no lado oposto, mais ao fundo, Mozart solfejava uma sinfonia... O corvo preto que tinha pousado no jardim à nossa frente, levantou vôo, pousou num galho e deu um grito. Os communards (combatentes da Comuna de Paris), aglomerados no canto direito, próximo ao muro, faziam alguma algazarra, enquanto se ouvia a Marselhesa. Também dava para se ouvir berros violentos que vinham do lado onde estava Balzac. Ele gritava à queima roupa no ouvido de Marcel Proust: - Vai conhecer a vida lá fora, irmão! Você não sabe de nada! Rien de rien!

David, auto-retrato
Paul Éluard, abraçado a Apollinaire, cambaleava, bêbado, recitando um poema.

Voltei aos meus amigos e falei:

- É o seguinte, amigos! Estamos vivendo tempos sórdidos, tempos estranhos. Eu sei que o tempo em que cada um de vocês viveram não era lá grande coisa, mas mesmo com as desavenças que havia entre os seus pares não chegava nem aos pés do isolamento em que uma grande parte dos artistas vive hoje.

David, para você ter uma ideia, desde que o conterrâneo de vocês, Marcel Duchamp, decretou que tudo é arte ("- que você tá falando?" berrou ele) Isso que você ouviu. Duchamp, que nunca ia a museu algum e que dizia que detestava pintura, acreditem, é hoje a musa principal que inspira a nova academia: a que cria dezenas de alunos que não precisam aprender a desenhar, mas vão aprendendo que uma boa ideia vale mais do que mil palavras! (- "Não estou entendendo nada", resmunga Ingres).  Pois é, amigo, nem você, nem eu, nem ninguém. E para eles quanto menos gente entender melhor. ( - "Mas como não se aprende a desenhar se o desenho é a base de tudo?", insistiu Ingres) Simplesmente porque hoje em dia se você tiver uma formação conceitual dessa academia aí, não precisa mais desenhar. Desenhar o que? Desenhar pra que, se não é preciso criar nada daí? Hoje, artista e designer é tudo a mesma coisa. Se duvidarem de mim, podemos ir agora ao Museu George Pompidou e ver as salas separadas para apresentar a arte dos anos atuais: cadeiras, móveis, enfeites, badulaques de todo tipo, penduricalhos espalhados, mais parece um grande parque de diversões! E na tal da FIAC, então? (- "Que diabo é FIAC?", perguntou Pissarro) A tal da Feira Internacional de Arte Contemporânea. Vocês vão e lá e verão: penduricalhos, badulaques, trastes, trecos pendurados... É isso, hoje a arte é para ser divertida, tocada, brincada, manipulada, ultrapassada... (- "Principalmente ultrapassada", disse Seurat) Voilà, Seurat, isso mesmo!

Túmulo de Ingres, no Père Lachaise
Agora, não para por aí não. Os quadros que vocês fizeram e que nem venderam tanto enquanto vocês estavam vivos, hoje em dia não valem nada, quase nada perto de um tubarão envidraçado ou uma caveira de diamantes! (-"Que conversa é essa?" perguntou Delacroix. "Uma pintura de um tubarão e de uma caveira, o que isso tem de valor?") Não, meu caro Delacroix. Muito pior do que você pensa: o cara pegou um tubarão morto, jogou dentro de litros de formol, fechou num aquário de vidro e vendeu por milhões de dólares! (Os pobres coitados pintores me olhavam abismados) Porque hoje sabe quem manda no que se chama de arte contemporânea? O mercado. No tempo de vocês a igreja, a nobreza ou o Estado eram grandes compradores de arte. Hoje os grandes compradores são uns caras que ganham bilhões na Bolsa de Valores e, se compram alguma pintura de valor, é para ela ficar bem guardada esperando que valorize mais... Corot, ainda bem que seu amigo Gustave Courbet não está aqui hoje. Ele ia querer fazer outra revolução!

Mas meus amigos foram murchando, se movimentando lentos, cabisbaixos. Olharam para mim com pena. Corot ainda me perguntou se valia mesmo a pena ser pintora hoje. Vale, mesmo que seja por mim, respondi. Mas eles foram voltando quietos cada um pro seu canto. Minha reunião acabou sem ter acabado.

Gritei para eles:

- Mas há os que ainda resistem!

Delacroix fez um gesto amigo com as mãos. Ingres me desejou "bonnes chances, allez-y!", boa sorte, vá em frente.

Fui embora pra Bastilha.

Praça da Bastilha, Paris

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

As ideias e os artistas


Detalhe da pintura "Marat Assassinado", de David, 1793
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A força das ideias vai gerando a história, movimentando os povos, mudando os sistemas. Nas artes, vai alinhando ou desalinhando artistas. E ninguém fica incólume ao que acontece em seu próprio tempo. Assim foi, assim é. Mas essas ideias não surgem do nada; não surgem da mente de algum ser genial. Surgem dessa dialética entre a realidade concreta e a observação que o ser humano vai fazendo dela, enquanto constrói seu caminho no mundo.

Estou lendo o livro de Walter Friedlaender intitulado “De David a Delacroix” que faz um recorte  na história da arte francesa, onde podemos observar o quanto ideias e arte estão em consonância. Esse livro foi publicado pela primeira vez em 1930, na Alemanha, e era destinado ao uso em escolas e universidades. Aborda principalmente dois grandes pintores franceses – David e Delacroix – mas os localiza num período histórico dos mais importantes da história.

A França do século XVII era o país mais poderoso da Europa e o que possuía a maior população. German Bazin (em outro livro que acabei de ler, o “Barroco e Rococó”) mostra que a França era o país que assimilou “com maior êxito o espírito do Renascimento italiano”, que trouxera muitas novidades em todos os campos da vida humana, assim como as ideias de uma classe em ascensão, a burguesia. No século XVIII – onde vamos nos concentrar aqui – ideias contraditórias disputavam espaço numa sociedade onde “financistas conviviam com as velhas noblesse d’épée e noblesse de robe”, ou seja, burgueses e aristocratas disputando espaços políticos e econômicos, além de filosóficos, dentro de um sistema em evolução.


"Marat assassinado", de Jacques Louis David, 1793
Essas ideias que competiam entre si, movimentavam a história. Uns agarrados ferrenhamente ao passado; outros, onde os mais pobres foram incluídos, carregavam novas bandeiras que balançavam ao sopro dos ventos de um mundo novo.

A Revolução Francesa (um período que vai de 1789 até o golpe de estado conhecido como o 18º Brumário de Luís Bonaparte, 1799) marcou o fim do Ancien Régime e dos privilégios da realeza e do clero. Até então o rei era o centro de toda a vida política e social na França. Os impostos cobrados ao povo eram extorsivos. A imensa maioria vivia na miséria, enquanto os membros da corte e do clero se refestelavam nos palácios. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamou a igualdade dos direitos de todos diante da lei, além de defender direitos básicos dos cidadãos. Essa Revolução de 1789 marcou o início da era moderna e influenciou todos os recantos do mundo.

Dentro de tudo isso, correntes de pensamento influenciavam também a Pintura. Os ventos do Renascimento haviam trazido o pensamento racional, que predominou durante todo o século XVII e chegava ao século XVIII trazendo as ideias de influentes pensadores franceses, como Descartes e Corneille.

Mas uma corrente de pensamento “irracional”, mesmo que inconstante e com menos influência, “se manifesta de forma mais exuberante na primeira metade do século XVIII”, diz Walter Friedlaender. Essas duas formas de pensamento, conflitantes entre si, podem ser encontradas, segundo ele, “na complexa estrutura da pintura francesa do século XIX”. E posteriormente.

Os pastores da Arcadia, de Nicolas Poussin, 1638-1640

O pensamento racional dentro da obra de arte tinha, segundo o autor alemão, “um viés moralizante”. Estava preocupado com o conteúdo ético e didático da obra, muito influenciado pela visão de Nicolas Poussin (1594-1665), um pintor francês que se mudou para Roma, onde voltou seus estudos técnicos e teóricos para o classicismo de Rafael e dos pintores venezianos. Poussin, em seu metodismo e racionalismo, detestava a pintura de Caravaggio! Seu desejo era “reviver a antiguidade”, como afirma German Bazin. A pintura de Poussin que pode ser considerada um manifesto do que ele pensava é o “Os pastores da Arcádia”, pintado entre 1638-40.

As ideias estéticas predominantes em todo esse período pré-revolucionário vinham sendo construídas com base na razão e na moralidade, o bon sens. Eram ideias também de Pierre Corneille, o grande autor de peças como El Cid e Horácio, que se baseava também no classicismo. Corneille nasceu em 1606, numa família da nascente burguesia. Também se junta a esse campo do pensamento, o filósofo francês René Descartes, que morreu em 1650. Além de filósofo, o grande teórico racionalista era físico e matemático. Foi ele que desenvolveu o pensamento que ficou conhecido como o método cartesiano.

Mas, convivendo com essas ideias, havia uma corrente que se opunha àquela visão de mundo racional. Para ela mais valia o gosto pessoal do que a razão. Esse gosto podia ser traduzido para “fineza”, “delicadeza” e uma visão de mundo mais subjetiva. “Coeur e esprit eram as palavras de ordem dos salões literários que existiam por volta de 1720”, diz Friedlaender. Surgia “uma mentalidade artística, livre do peso da tradição acadêmica e moral”.

Mas tudo combinava com a alma francesa.


"A leitora", de Jean Honoré Fragonard, 1770-72
O refinamento e a elegância dos salões e da Corte de Paris ajudaram a desenvolver uma forma de pintura decorativa, de pintores como Watteau, Lancret, Pater, De Troy e outros. Mas nessas altas rodas aristocráticas, representando a burguesia, estavam sempre presentes os financistas. Os mesmos que mandam no mundo capitalista em crise de hoje.

Nas primeiras décadas do século XVIII houve um grande desenvolvimento das artes na França e muitos colecionavam pinturas. Era o tempo de Madame de Pompadour, amante do rei Luís XV e, em seguida, o tempo da rainha Maria Antonieta, a rainha fútil, que adorava moda e que foi guilhotinada pela Revolução Francesa.

Esse conflito de ideias que unia, de um lado, “a melodia jovial e espontânea” do povo francês e, do outro, a “predominante e persistente nota racional” fez com que se desenvolvesse a arte francesa. Aparentemente, diz Friedlaender, no meio dos artistas as discussões pareciam se resumir a questões técnicas e visuais: “desenho versus cor, placidez versus movimento, ação concentrada em poucas figuras versus dispersão das figuras”. Mas no fundo representavam a verdadeira luta de ideias entre disciplina e moral, de um lado, e, do outro, um certo amoralismo, rejeição a normas e irracionalismo subjetivo. Que evoluíram para as ideias defendidas mais tarde pelos Românticos.

No topo disso se desenvolveu a famosa inimizade entre dois grandes pintores franceses: Jean Auguste-Dominique Ingres (1780-1867) e Eugène Delacroix  (1798-1863). Ingres era neoclássico. Delacroix era romântico. Delacroix era colorista, Ingres encarnava a pintura linear e clássica. Conta-se que certa vez Ingres encontrou Delacroix em um salão e teria dito: “Tem cheiro de enxofre”…

Pois Friedlaender diz que a Pintura Linear no século XVIII encarnava “algo pleno de significado moral”. A pintura romântica, colorista era uma verdadeira “heresia” e até mesmo considerada uma “falha moral”.  Ingres era muito rígido em suas ideias. Delacroix também.

Era esse o nível dos debates ideológicos dentro da Pintura francesa do século pré e pós-revolucionário.
Mas bem antes deles, esses pensamentos se deixavam impregnar uns pelos outros. Friedlaender esclarece que o “mais subjetivo artista francês, tanto em seus aspectos técnicos, como de composição, deixou-se parcialmente subordinar pela razão e mesmo pela Academia”.

A visão mais subjetiva refletia-se no estilo mais livre nas artes, especialmente a partir dos primórdios do século XVIII. Artistas contrários ao pensamento racional dominante reagiam com uma pintura mais “colorista” e com pinturas de gênero. Mas havia muito de superficial na pintura do período que vai de Jean Antoine Watteau (1684-1721) – um dos criadores do estilo Rococó – a François Boucher (1703-1770).  No entanto, foi Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) quem melhor representou a arte decorativa desse período.

Após 50 anos de predomínio do estilo Rococó, onde reinava um certo amoralismo na vida social, o pensamento racionalista retorna em meados do século XVIII com toda sua força, no movimento neoclássico. A ideia era resgatar a “norma dos antigos”, ressalta Friedlaender.

No entanto, o período de domínio da irracionalidade Rococó tinha deixado sua marca e o Neoclassicismo surgia considerando a Antiguidade de uma forma mais relativizada. Já não se buscavam as soluções formais do período clássico (Grécia e Roma), mas sim seus valores éticos. “O heróico, agora, se associava ao virtuoso”, enfatiza o autor alemão. O herói deveria agora possuir, além de força, “todas as virtudes humanas”.

E esses valores deveriam ser seguidos também pelos reis. O que Friedlaender chama de “classicismo ético” passou a ter um caráter “eminentemente político” que influenciou os debates da época e preparou o caminho da Revolução.
"O julgamento dos Horácios", de Jacques Louis David, 1784

Em meio a essas ideias, surge Jacques Louis David (1748-1825), como o representante da pintura clássica por excelência. David atinge seu auge com a pintura “O Juramento dos Horácios” pintado em 1784. Ele seguia a regra – neopoussinista, no dizer de Freadlaender – de focar sua pintura no essencial: a Ação, retirando qualquer elemento que distraísse a atenção da cena principal do quadro.

Mas David nunca teve uma atitude anticolorista, pois admirava demais o pintor flamengo Rubens. E também não se rendeu ao pensamento clássico. Teria dito: “A arte antiga não me seduzirá: falta-lhe ação, falta-lhe movimento”.  Estava apegado teoricamente ao passado, mas era homem do seu próprio tempo.

Envolvido totalmente com a Revolução Francesa de 1789, David pôs seu talento de pintor a serviço das causas revolucionárias, assim como foi fiel ao período napoleônico, declaradamente favorável a Napoleão Bonaparte. Mas na Revolução de 1789 alinhou-se aos jacobinos, a ala esquerda. Em 1793 apresentou o depois famoso quadro “Marat assassinado”, onde denunciava o assassinato do revolucionário e seu amigo Jean-Paul Marat.

"A barca de Dante", de Delacroix, 1822
Eugène Delacroix (1798-1863), que já nasceu numa França renovada pela Revolução, tomou outro caminho pictórico, mas também era plugado a seu tempo, até mesmo pelo romantismo que o inspirava.

Contemporâneo de Jean Auguste-Dominique Ingres, um abismo separava suas telas da deste grande pintor acadêmico. Seguidor da vertente artística aberta por Rubens, enquanto Ingres admirava Poussin, Delacroix voltava seus pinceis e tintas na direção que dava mais ênfase à cor e ao movimento. Friedlaender o posiciona no estilo do alto barroco.

Mesmo distante da pintura de Poussin, Delacroix se aproximava do seu antecessor e compatriota em termos do interesse pelo estudo da teoria “para tornar mais claras as próprias intenções”.  Ele escrevia sobre arte e até começou a escrever um Dicionário Filosófico de Belas-Artes, que não terminou.

Com apenas 24 anos de idade pintou seu primeiro grande quadro: “A barca de Dante”, inspirado no Inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri. Friedlaender diz que o arranjo temático derivava diretamente da pintura “A barca da medusa” de Theodore Géricault, outro pintor francês da época, e amigo de Delacroix. Mais tarde o poeta Charles Baudelaire teria dito de Delacroix que ele “fut grand dès as jeunesse, dès sés premières productions” (foi grande desde a juventude, desde seus primeiros trabalhos).

Delacroix participou dos movimentos revolucionários de seu tempo ao pintar “A Liberdade guiando o povo às barricadas”. Diferentemente de Ingres, ele não se isolou de seu tempo e quando a Revolução de julho de 1830 estourou, ele não ficou indiferente. A mulher que representa a Liberdade em sua tela é uma mulher do povo, com o peito nu e os cabelos ao vento. Friedlaender observa a respeito dessa pintura: “De todas as obras de Delacroix, foi a única em que um conceito original e um verdadeiro sentimento contemporâneo se completaram de forma vigorosa”.

Dois pintores de escolas diferentes resumem todo o caudal de ideias que iam se gestando desde o século XVI e o começo do capitalismo mercantilista.

Na Itália, muito antes da França, essa mesma luta de ideias já se passara. O Renascimento italiano tinha trazido as ideias greco-romanas também para as artes e foi lá onde primeiro se deu a passagem de uma arte severa para uma mais livre e informal. Foi contra a rigidez estética clássica que se insurgiram pintores como Caravaggio, um dos maiores representantes da pintura do Barroco.

"Joana d'Arc na Coroação de Carlos VII", de Jean Dominique Ingres, 1854

Naquele tempo, segundo o também estudioso de arte Heinrich Wölfflin, o Barroco não surgiu com uma teoria, mas logo causou diversos adjetivos, entre os quais “capriccioso” (bizarro, extravagante). Trazia em si o prazer pelo raro, queria ir além das regras. No começo era pesado, severo, contraído; com o tempo se torna mais leve, alegre. E ocupou cerca de 200 anos de história.

Foram as ideias barrocas de Caravaggio que o fizeram usar como modelos pessoas comuns, prostitutas, vagabundos. Num tempo em que a Igreja Católica era a dona do mundo e os artistas vendiam sua força de trabalho para produzirem a propaganda da Igreja, Caravaggio não foi diferente, não podia ser, ou morria de fome. Mas usava suas amigas e amantes como modelos para a Virgem Maria e para os santos. Como Delacroix usou uma mulher do povo para representar a força simbólica da Liberdade que o povo deveria conquistar na França revolucionária.

A Liberdade de Delacroix era uma mistura das ideias que vinham desde Caravaggio (e que tinham atingido também David), com os ideais clássicos: força, valentia, coragem, disposição de espírito. Esses ideais traziam da antiguidade a figura do Herói não somente como alguém que realizava grandes feitos, que possuía força muscular admirável. “Ele era, antes de mais nada alguém (…) cujo nobre corpo revestia alma resplandescente de virtude e cujas realizações podiam servir de exemplo como um ideal a ser atingido” (Friedlaender).

E esses aspectos foram enaltecidos pelo Romantismo dos séculos XVIII e XIX. Vem daí a ideia do revolucionário como o herói do povo. Vem daí a ideia do artista como aquele cara excêntrico. Dessa mistura de ideias que vicejavam na Europa a partir do século XVIII, especialmente pós-Revolução Francesa, foi que surgiu a Modernidade. Daí veio inspiração para todas as revoluções do século XX.

"A Liberdade guiando o povo às barricadas", Eugène Delacroix, 1830