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segunda-feira, 27 de novembro de 2017

A arte russa do século XX - o Realismo Socialista - FINAL

"Pomar em flor", Alexandr Gerasimov, 1935
óleo sobre tela, 124 x 133cm, Coleção privada
Há ainda hoje um profundo desconhecimento sobre a arte russa do século XX a partir de 1930, eivado de observações com viés ideológico de forte caráter emocional. Desde a Guerra Fria, tudo o que diz respeito à arte da URSS tem sido estereotipado, rejeitado, subestimado… Estas são observações do crítico e pesquisador inglês Matthew Bown, autor do livro “Realism Socialist Painting”.

Há anos esta questão me intrigava: por que se diz - inclusive entre a esquerda - que era tão ruim a arte russa do Realismo Socialista?

- “Porque foi imposta... arte doutrinária... dirigismo”... são críticas bem comuns de se ouvir.

Mas... isso não é uma novidade no mundo da arte! A arte bizantina foi uma estética imposta; boa parte da arte do Renascimento foi dirigida pela Igreja, que contratara os melhores artistas para produzirem arte de propaganda religiosa; a arte acadêmica francesa era tão imposta que Gustave Courbet e depois os pintores Impressionistas tiveram que enfrentar seus teóricos e militantes para ter liberdade de pintar outros temas e de outra maneira; o maior dirigismo artístico aconteceu nos EUA que impôs a arte abstrata como estética desde o final da década de 1940; o sistema da arte contemporânea - na atualidade - impõe a arte que interessa ao mercado, que lucra bilhões de dólares com ela, escolhendo aqueles artistas que se enquadram em seu sistema e se curvam à sua estética… Então!

Então a crítica à arte russa pós-1930 usando esses argumentos, é, no mínimo, desconhecimento da história da arte, e da manipulação da arte feita pelo próprio capitalismo…

Capa do livro
Em 2008, 2010 e 2017 pude ver de perto - em viagens a Berlim, Varsóvia e Londres - exposições sobre arte soviética. E o que vi, vai muito além do conceito de “arte de propaganda”, reforçando minha convicção de que até mesmo a esquerda se deixa influenciar pela propaganda ideológica iniciada na Guerra Fria...

Nesse meio tempo, tive acesso ao livro “Realism Socialist Painting” publicado em 1998 por um professor da Yale University de Londres, nada comunista, nada marxista… O livro, além de um texto denso, possui 544 ilustrações. Matthew Cullerne Bown tem se dedicado à pesquisa sobre a arte russa, sendo considerado uma autoridade atual no assunto. É autor de mais dois livros: “Contemporary Russian Art” e “Art under Stalin”.

Em “Realism Socialist Painting”, logo nos primeiros parágrafos, dei com os olhos na seguinte afirmação do autor: “a história do Realismo Socialista é a história de um extraordinário movimento de arte do século XX”.

Ele propõe uma visão sobre a arte soviética que vá além da arena político-ideológica, criticando o fato de que todos os que se debruçaram sobre o tema, sempre foram muito mais guiados pelo viés político. A começar pela publicação, já em plena Guerra Fria, de um livro de autoria de Konstantin Umanski, a partir do qual foram se criando narrativas homogêneas “a fim de dar a impressão de que a arte da Vanguarda tinha sido a única contribuição russa para a arte do século XX” (Bown). Esta posição foi reforçada pelo livro da inglesa Camilla Gray, “Experimento. Arte russa” publicado em 1962, que gerou grande quantidade de publicações, onde se admirava a Vanguarda Russa como baluarte da arte do século XX. Ele analisa detalhadamente a opinião de vários desses autores, discordando de todos.

"Moça com camiseta de futebol"
Alexandr Samokhvalov, 1932
óleo e têmpera sobre tela
102 x 64cm, Museu Estatal
Russo de São Petersburgo 
Diz Matthew: “É correto e razoável ligar a vanguarda russa com a ocidental. Mas a exclusão da arte soviética de depois de 1922 por um número enorme de ‘histórias da arte’ do século XX, equivale a uma significativa deformação da nossa história da arte”.

Mas Bown cita também a tese do filósofo Boris Grois, segundo o qual a arte russa, sob Stalin, “foi, em última análise, responsabilidade dos artistas da vanguarda” que tinham um discurso artístico-político dentro do qual cada decisão concernente à construção estética do trabalho artístico era avaliado como uma decisão política e vice-versa. Grois afirmou que “a estetização da política, no que diz respeito às lideranças do Partido, era apenas uma reação à politização da estética”. Os futuristas soviéticos, assim como os outros artistas de vanguarda, se inspiravam nas ideias de revolucionários como Anatole Lunacharsky. “Não o contrário”, diz Bown. Lembre-se de que as ideias de Lunacharsky sobre arte incluía a defesa de uma arte de classe, plenamente identificada com o proletariado em processo revolucionário.

Mas até o final da II Guerra havia um certo flerte dos norte-americanos em relação à URSS, incluindo o Realismo Socialista. Clement Greenberg, influente crítico de arte que depois se tornaria agente da CIA, no começo dos anos 1930 nutria simpatias pelo Socialismo. Também como ecos do coletivismo pregado na URSS que dava apoio estatal para os artistas, o governo dos EUA criou também o “Federal Art Project”, que passou a dar apoio financeiro a milhares de artistas norte-americanos. Diego Rivera, artista mexicano e comunista declarado, recebeu apoio nos EUA para criar uma série de murais onde apareciam Lenin e outros líderes marxistas. “Apesar disso ser tão surpreendente…”, observa Bown.

No mundo das histórias em quadrinhos surge nos EUA, em 1930, a figura do Superman, que compartilha com as imagens do Realismo Socialista as ideias sobre o “Novo homem”, o Super Homem, másculo, ativo, que apontava para o alto e para além, o defensor dos fracos… e que possui uma capa… vermelha!

O embaixador dos EUA em Moscou, na década de 1930, Joseph Davies, se tornou - segundo Bown - o maior colecionador individual de pinturas do Realismo Socialista. Através dele e de outros, como o artista ex-futurista David Burlyuk, a arte soviética se tornou conhecida nos salões de Nova Iorque, onde convidados apresentavam essa arte para amplas audiências norte-americanas.

Mas Greenberg publicou um ensaio em 1939 intitulado “Vanguarda e kitsch”, onde define a cultura dominante na URSS - o Realismo Socialista - como kitsch, assim como o cinema de Hollywood da época. Mas Greenberg, diz Bown, “parece ter reconhecido que tal arte foi capaz de alcançar um alto grau técnico”, uma arte que falava às massas, com quem tinha “empatia”.

É preciso lembrar que até o começo da Guerra Fria, os artistas norte-americanos tinham liberdade de expressão. Após a II Guerra, em solo norte-americano “arte realista era arte comunista”; e eram perseguidos, no período do macartismo, os artistas que se identificassem com isto. Acrescenta Matthew Bown: “Na América e Europa Ocidental predomina a Abstração, promovida pelos críticos (e pela CIA, pelo Conselho Britânico e por outros órgãos governamentais) como metáfora de liberdade e de predomínio da individualidade. Enquanto na URSS, o Realismo Socialista reivindicava o predomínio da coletividade e da responsabilidade social”.

A campanha anti-soviética se espalhou no final dos anos 1940 e “moldou as atitudes ocidentais em relação ao Realismo Socialista desde então.”

"Amigas", Fedor Sychkov, 1930,
81 x 68cm, coleção privada
O consenso criado entre os críticos de arte era o de que a arte contemporânea "importante" é aquela cujas características estão intimamente associadas ao Modernismo, que possuiria, este sim, uma visão "original”. Esse consenso incluiu artistas e intelectuais de esquerda.

Em 1990, Igor Golomstock, um russo emigrado, publicou o livro “Arte totalitária” que inaugurou a moda de ligar a arte russa e a imagem de Stalin ao totalitarismo, informa Matthew Bown. “Mas”, diz ele, “dispenso o modelo totalitário, porque é pouco útil para desvendar a arte soviética”. Falar de “totalitarismo” em relação à arte soviética, segundo ele, reduz a pesquisa e restringe a investigação, simplificando “demais os debates sobre a forma artística que permaneceu em atividade durante todo o período soviético”, de 1930 até o final de 1980.

O professor Bown se diz contrário a avaliar o Realismo Socialista como um monolito imutável. A arte pictórica produzida na URSS não estava restrita àquela que depois ficou conhecida no Ocidente: punhos erguidos para o alto, retratos de Stalin. Ele afirma que o controle maior sobre a arte, por parte do Estado soviético, estava mais restrito às grandes cidades como Moscou e São Petersburgo. No país inteiro artistas produziam fertilmente. “A pintura do Realismo Socialista, amplamente definida, compreende um excelente movimento do nosso século na pintura realista”, diz Bown, que segue: “Ela envolve o patrocínio da pintura realista numa escala incomparável em qualquer lugar do mundo e engaja, por décadas, o talento de milhares de artistas através de um vasto e multiracial império”. 


“Dia de sol”, Mai Dantsing, 1965, óleo sobre tela, 188x208 cm, Coleção privada
Como surgiu o Realismo Socialista

A Rússia do começo da década de 1930 era um país em reconstrução. Havia passado por anos de guerra civil, por períodos de fome generalizada. Stalin defendia a necessidade urgente da industrialização do país e da construção de instrumentos sólidos de defesa militar contra os ataques que viriam.  A produção industrial e agrícola aumentou ao longo do período. O racionamento de alimentos básicos foi revogado em 1935. Em discurso ao I Congresso de Todos os Sindicatos Stakhanovitas em novembro, Stalin estabeleceu o tom oficial da década, pronunciando a notória frase: "A vida melhorou, camaradas, a vida ficou mais alegre". 

O termo “Realismo Socialista” apareceu pela primeira vez em maio de 1932 na revista “Novo Mundo”, principal fórum de discussão teórica. Em 26 de outubro, em um encontro entre escritores e Stalin realizado na casa de Maximo Gorki, os princípios do Realismo Socialista foram expostos com algum detalhe. Bown diz que entre 1932 e 1934 foram publicados 64 artigos sobre o tema, o que mostra o amadurecimento do debate sobre o assunto. Em 1933, o próprio Gorki publicou o ensaio "Sobre o Realismo Socialista". 


"A Mãe", Alexandr Deineka, 1932,
óleo sobre tela, 20 x 159 cm,
Galeria Tretyakov
Em 1934, no I Congresso dos Escritores Soviéticos, realizado em Moscou, Andrei Zdanov, Gorki e Igor Grabar apresentaram o Realismo Socialista a uma audiência internacional. A composição dos delegados a este Congresso, segundo Bown, era: 27% de operários; 43% de camponeses; 13% de intelectuais; outros grupos sociais e convidados estrangeiros, completavam os outros 17%.

Mas enquanto isso ocorria, a vida artística fervilhava. 

Em abril de 1932, um Decreto do CC do PCUS havia fundado a União Nacional dos Artistas Soviéticos. Também foram criados comitês municipais de artistas em Moscou e Leningrado inicialmente e, nos anos seguintes, em outras regiões do país. Nesse novo contexto, encerrava-se o antagonismo entre os diversos grupos e se criava uma força dominante no mundo da arte. O comitê municipal dos artistas de Moscou, o mais importante, reunia artistas de várias categorias, não só pintores. Era um verdadeiro “corpo de elite” - observa Bown - e durante a década de 1930 havia mais artistas deixados de fora dele do que aceitos, tal era o nível artístico dos membros da União Nacional. Em 1933, esta entidade já contava com cerca de 600 membros. Em 1937, as uniões municipais chegavam a abrigar cerca de 2.500 artistas.
Detalhe de “Trabalhador
do setor energértico”, Isaac Brodsky,
1932, óleo sobre tela, 98x125 cm,
Museu Brodsky de São Petersburgo

A União Nacional dos Artistas Soviéticos era também um fórum de debates, onde as orientações da direção do Partido eram transmitidas. Seu conselho era eleito por uma reunião geral de membros, mas a lista dos candidatos ao comando principal era elaborada pela fração partidária dos artistas. Durante a década de 1930, esses nomes eram confirmados pelo Politburo, o Comitê Central. Pela sua importância, o comitê municipal de Moscou seguia as mesmas regras. 


Quinzenalmente realizava-se em Moscou assembleias de artistas em que seus trabalhos eram avaliados. Eram um evento significativo na vida artística da capital que reunia pintores e críticos bem conhecidos. As pinturas eram exibidas num palco e ficavam sujeitas às críticas da assembleia. Vladimir Kostin, um dos artistas, descreveu o evento como extremamente popular e respeitado, verdadeiras aulas de pintura.

A reorganização da educação artística nacional começou em meados de 1932. Em um discurso para os diretores de escolas de arte no verão daquele ano, Arkadev, chefe do departamento de arte da União, pediu um retorno aos métodos tradicionais de educação artística e disse: "Nós não precisamos de artistas que não conseguem desenhar". 

Em outubro do mesmo ano, foi reorganizada a Academia de Artes, que incluía: um Instituto de História da Arte, um Museu, uma Biblioteca e diversos laboratórios. Um decreto de abril de 1933 definiu a nova Academia como "uma instituição de pesquisa científica e científico-consultiva no campo das artes visuais e espaciais, e também uma instituição para a preparação de quadros artísticos com maior qualificação."

Os métodos soviéticos de ensino de arte foram moldados para produzir pintores com alta formação técnica, o que deveria também “elevar a criação da mais brilhante escola de pintura realista do século XX”, completa Matthew Bown.

Realismo Socialista?


"União em Sebastopol", Georgi Nisski, 1935,
óleo sobre tela, 77 x 101 cm,
Museu de Arte de Nizhni-Novgorod
O próprio termo é contraditório. Segundo seus teóricos, seria uma arte "realista em forma e socialista em conteúdo". Realista significa fidelidade à verdade, ao real. Socialista significava com “conteúdo de classe” e em convergência com as ideias do Partido. O objetivo era influenciar o pensamento, o sentimento e o comportamento das massas numa remodelação e reeducação do povo no espírito do Socialismo. As palavras Pravda - Verdade - e Pravdivost - Verdadeiro - se tornaram temas de amplos debates. Muitos deles referindo-se aos princípios do grupo “Os Itinerantes” do século XIX, e pintores realistas, entre eles Ilya Repin. 

Mas o conceito em si era pleno de idealismo!

Logo se viu que havia uma contradição no termo “realismo socialista”, pois a orientação era mostrar o futuro brilhante que o Socialismo traria. Mantinha a visão utópica, eivada de "romantismo revolucionário" e de um otimismo obrigatório. Gorki, Jdanov, Brodsky e Lunacharsky faziam esforços conceituais para dar coerência ao termo. Defendiam que Realismo, no caso, era ter uma visão "dinâmica" do mundo. Não era a busca da documentação da realidade como ela era, mas pintar a verdade sobre um país em mudança, ou seja, uma “verdade em movimento”.

Dinamov, em seu discurso para artistas de Moscou em 1932, disse: "Precisamos de realismo, mas não na compreensão pedante da palavra. Queremos que o artista retrate não só o que é, mas o que será”. Na tentativa de resolver essa contradição, Gorki defendia a necessidade de olhar para a vida atual "desde o auge dos grandes objetivos do futuro". E Jdanov: a realidade "em seu desenvolvimento revolucionário". E Lunacharsky: “Uma pessoa que não entende o desenvolvimento nunca verá a verdade, porque a verdade não se parece a si mesma, ela não fica quieta; a verdade flutua, a verdade é desenvolvimento, a verdade é conflito, a verdade é luta, a verdade é amanhã e assim deve ser vista. Quem não vê isso assim é um realista burguês”...

O romantismo revolucionário - também ressuscitando as ideias românticas do século XIX - se tornou um componente natural: a arte deveria inculcar amor pela vida e inspirar o sentimento da espera apaixonada pelo futuro.

“Embora fosse, é claro, um meio de justificar e fortalecer a propaganda partidária, o poder desse Utopismo - tanto seu poder sobre os artistas quanto seu poder sobre o público - decorreu do fato de que também era um reflexo dos sonhos e dos esforços das pessoas, que sofreram e aguentariam enormes privações na esperança de um amanhã melhor”, explica Matthew Bown.
“Marusia – uma mulher dos anos 1920”, Geli Korzhev, 1983,
óleo sobre tela, 97x226 cm, Coleção privada

Desenvolvimento da arte soviética


Em 1932, a retomada do funcionamento da Academia de Artes de Leningrado (São Petersburgo) e do Instituto de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou serviram, por si sós, a dar um tremendo fôlego à formação artística de jovens russos. Duas outras grandes cidades também criaram suas próprias escolas de arte, como Kiev e Tbilisi. Estes estudantes tornaram-se objeto de especial atenção no mundo da arte, inclusive fora do país. Havia exposições públicas anuais de suas obras, em museus, fábricas, galerias, lojas. O Museu Pushkin e a Galeria Tretyakov receberam essas mostras; em uma delas participaram cerca de 500 artistas.

Além disso, nas maiores cidades também surgiam escolas de arte destinadas a crianças maiores de 12 anos, preparatórias para entrar nos grandes institutos de Moscou e Leningrado. “Igor Grabar observou em um artigo de 1940 que estudantes destas escolas já estavam realizando composições profissionais aos 14 anos de idade”, observa Bown.

Emissários eram enviados para descobrir talentos jovens em todo o país. Um dos exemplos mais notáveis ​​foi o do jovem Stepan Dudnik, um órfão que, na década de 1930, estava fazendo trabalho pesado na construção do Canal do Mar Branco. Sua aptidão para o desenho foi notada e, com a ajuda de Gorki, ele foi enviado para fazer o curso de pintura no Instituto de Moscou. 

Matthew Bown destaca que a origem social desses artistas estudantes era 80 a 90% feita de trabalhadores e camponeses. A presença camponesa ainda era preponderante e, por causa disso - aponta o professor - nota-se a grande quantidade de pinturas de paisagens ou cenas da vida no campo.

"Um camponês", Vassili Yakolev, 1942,
óleo sobre tela, 65 x 50 cm,
Galeria Tretyakov
Sob direção do pintor Isaac Brodsky, em 1934, a Academia de Leningrado mantinha o método de instrução acadêmica bastante rigoroso, com particular ênfase no desenho. O sistema de ensino era baseado na observação da natureza e também nos estudos com modelo-vivo, considerado elemento central no processo educacional. A mesma diferença de abordagem na formação entre a Academia de Leningrado e  o Instituto de Pintura de Moscou, que se iniciara no século anterior, permaneceu: a Academia enfatizava a disciplina do desenho acima de tudo, enquanto Moscou enfatizava as qualidades pictóricas, com ênfase na pintura tonal e na prática da "pincelada ampla".

Em dezembro de 1939, por ocasião do 60º aniversário de Stalin, foi criado o Prêmio Stalin, que pagava até 100 mil rublos por trabalhos destacados nas ciências e nas artes. Isso era um incentivo excepcional para os artistas, que também já recebiam inúmeros pequenos outros prêmios e até mesmo bolsas de estudo para sua formação nas grandes escolas de arte.

Com tanto incentivo, alguns artistas mais premiados, montaram seus estúdios, muitos com aquecimento central e acessíveis por elevador, nos prédios da rua Maslovka, que aglutinava muitos desses ateliês e era uma verdadeira colônia de artistas em Moscou. Claro que havia escassez de material de arte, coisa que mereceu um artigo no jornal Pravda...

Grandes exposições de arte ocorreram entre 1932 e 1939, incluindo duas internacionais: em Paris (1937) e Nova Iorque (1939). A grande exposição da década, intitulada "A indústria do Socialismo", inaugurada em Moscou em 1939 atraiu dezenas de milhares de pessoas. Foi um enorme evento de arte, onde os artistas apresentaram também imensos paineis e murais, além de centenas de pinturas de todos os formatos. Em 1942 havia sido marcada uma exposição organizada por todos os sindicatos intitulada "Nossa terra nativa" destinada a marcar o 25º aniversário da Revolução. Nela, os artistas tinham livre escolha dos temas. Mas a II Guerra impediu sua realização.

Matthew Bown faz um profundo estudo sobre a arte soviética que alcança até o final dos anos 1980. Mas nos focamos em sua pesquisa sobre os anos 1930, com o intuito de informar que, muito além da imposição de uma estética para as artes, as políticas culturais do governo soviético naquele período causariam inveja a qualquer artista de país capitalista!


O tremendo movimento de arte pictórica realizado na URSS até 1989 é um evento a ser resgatado por historiadores de arte, pesquisadores e artistas. Inclusive para rever o que foi a verdadeira campanha internacional de degradação da arte do Realismo Socialista que atingiu até mesmo os comunistas. Não é possível incluir no mesmo caldo, de forma monolítica, toda a arte produzida naqueles país durante 70 anos! Enterrar o empreendimento criativo de artistas individuais e rebaixá-los dentro do mesmo edifício crítico e curatorial desta visão reducionista é, no mínimo, leviandade acadêmica.

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Referências bibliográficas:
BOWN, Matthew Cullerne. Realist Socialist Painting. Londres: Yale University Press. New Haven & London. 1998.

GRAY, Camilla. O Grande Experimento. Arte Russa 1863-1922. São Paulo: Worldwhitewall Editora Ltda. 2004.
FERNANDES, Luís. Revolução Bipolar. São Paulo: Editora Anita Garibaldi. 2017.
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ABAIXO, MAIS ALGUMAS IMAGENS DE OBRAS DO REALISMO SOCIALISTA:


Dom Quixote e Sancho Pança, Geli M. Korzhev, 1984, ost, 108 x 226 cm, Coleção privada

A compositora, Nicolai Leventsev, 1969, ost, 89 x 130 cm, Coleção privada


"Campos em paz", Andrei Mylnikov, 1950, óleo sobre tela, 200x400 cm,
Museu Estatal Russo de São Petersburg
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Banho, Maiya Kopyttseva, 1960, ost, 119 x 135 cm, Coleção privada


“À janela”, Alexandr Romanychev, 1968, óleo sobre tela,
119x99 cm, Coleção privada
O vale de Ararat”, Martiros Saryan, 1945, óleo sobre tela, 96x128 cm,
Museu Estatal de Artes dos Povos do Leste, Moscou

"Moça de bicicleta em uma fazenda coletiva", Alexandr Deineka, 1935, óleo sobre tela, 120 x 220 cm, Museu Estatal Russo de São Petersburgo
"Maternidade", Vasili Pochitalov, 1939
39,5 x 48,5cm, Museu de Artes Visuais de Kostroma
"O aeroplano ANT-20 Maximo Gorki", Vasili Kuptsov, 1934, óleo sobre tela,
110x121 cm, Museu Estatal Russo de São Petersburgo

"Um trator para trabalho na floresta", Arkadi Rylov, 1934,
135x187 cm, Galeria Tretyakov de Moscou

"Nana", Petr Vilvams, 1934, óleo sobre tela, 163x130 cm,Galeria Tretyakov de Moscou

"Um gigante na construção de máquinas agrícolas", Ekaterina Zernova, 1931
"Abril na casa materna de Lenin", Nikolai Abramov,
1969, óleo sobre tela, 239x198 cm, Coleção provada
"Milho", Alexandr Bubnov, 1948, óleo sobre tela,
180x390 cm, Museu Estatal Russo de São Petersburgo
"Colhedoras de chá", Mikhail Gabuniya, óleo sobre tela, 152x310 cm, Coleção privada

"Retornando do mercado de Novgorod", Petr Konchalovsky, 1926,
óleo sobre tela, 180x330 cm, Museu Estatal Russo de São Petersburgo

"Ataque a um abrigo inglês no Front do Norte", Yuri Pimenov, 1928
óleo sobre tela, 199x289 cm, Galeria de Pintura de Lvov
"Operária da fábrica de cigarros",
Alexandr Samokhvalov, 1928,
óleo sobre tela, 73 x 71 cm, Museu Estatal Russo de São Petersburgo

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A arte russa do século XX - PARTE II

"Jardinagem", pintura de Natalia Goncharova, 1908
Na virada do novo século, em meio aos fervilhantes processos revolucionários, começaram a pipocar movimentos ligados às artes plásticas, à música, ao teatro, à literatura e à poesia, à arquitetura e ao cinema. 


"Sem título", Vassily Kandinsky, 1910
Até os primórdios dos anos 1930, a Rússia assistiu a explosões de movimentos artísticos de diversos matizes plenamente integrados às transformações que a sociedade russa ia tomando.  Experimentos artísticos de diversas nuances apareciam por todo lado: Vassili Kandinsky fez a primeira pintura abstrata do século; Mikhail Lariónov, Natalia Gontchárova, Vladimir Tatlin, Kuzma Petrov-Vodkin, Pavel Filónov, Kasimir Malevitch, Alexandr Rodtchenko, Vladimir Maiakovsky, entre outros, trouxeram inovações imensas não só à pintura, como à fotografia e à criação de cartazes e objetos utilitários. Sergei Eisenstein começava a produzir filmes que se tornaram referência para a indústria cinematográfica mundial.

Era uma época de experimentações, de busca de novos conteúdos, de novas formas, de novas cores e de um novo mundo. O espírito da época – o zeitgeist, como se diz em alemão – atravessava o clima social, político, intelectual e cultural desse período: espírito de rebeldia, de contestação, de revolução. Grupos se formavam, movimentos novos nasciam a cada dia.

Cartaz de agitação e propaganda
desenhado por Maiakovsky
Como os pintores realistas do século XIX, notava-se entre estes um profundo envolvimento entre vida e arte. 
- “A Revolução deu um senso de realidade às suas atividades e uma direção, longamente aguardada (...) – uma vez que não havia, em suas mentes, nenhuma dúvida que os impedisse de identificar suas descobertas revolucionárias no campo artístico com essa revolução econômica e política” diz a pesquisadora inglesa Camilla Grey, no começo dos anos 1960. 
O próprio Maliévitch afirmava: 
- “o cubismo e o futurismo foram as formas revolucionárias da arte que prenunciaram a revolução na vida política e econômica de 1917”.
A Revolução de 1917 acendeu verdadeiras fogueiras no coração dos artistas. Muitos deles tomaram em suas próprias mãos a reorganização da vida artística russa. Nos quatro primeiros anos pós-revolucionários conseguiram montar museus e escolas de arte por todo o país, assim como salas de teatro e de concerto. Enquanto criavam suas obras e redigiam seus manifestos, além de discutir suas teorias em longas e calorosas reuniões, os artistas da chamada Vanguarda Russa iam montando o arcabouço teórico que defendia - como Vladimir Maiakovski, Tatlin e mesmo Kandinsky e Malevitch - que, para o novo tempo que surgia naquele país, havia que se criar a nova arte, formalmente também revolucionária.

(Faço uma observação aqui: do começo do século XX e até por volta de 1925, o movimento que depois se tornou conhecido como Vanguarda Russa emergiu e se manteve em atividade artística, acompanhando todo o processo revolucionário de 1905 até à Revolução Socialista de 1917. Não me deterei, aqui neste texto, a falar sobre a Vanguarda, uma vez que já escrevi vários artigos sobre o tema que você pode ler, acessando os links abaixo).

Sendo assim, vamos diretamente a um movimento cultural que também foi muito importante naquele período:

O PROLETKULT

Anatole Lunacharsky
Em 1917, no processo revolucionário, oficializou-se o movimento pela cultura proletária, o Proletkult. Anatole Lunacharsky, teórico revolucionário e crítico de arte, havia sido nomeado Comissário do Povo para a Educação, cargo que exerceu até 1929. Juntamente com Alexandr Bogdanov e Mikhail Gerasimov havia participado da criação do Proletkult, movimento que vinha sendo gestado desde a Revolução de 1905. Eles defendiam a ideia da criação de uma nova cultura soviética, incluindo a defesa de uma estética marxista para as artes, uma estética de classe. Desejavam fundar uma arte verdadeiramente proletária, livre de todos os vestígios da cultura burguesa. Eles defendiam que a Revolução deveria ir além da criação de uma nova ordem político-social: ela deveria criar também uma nova ordem cultural. Discutia-se o significado da cultura e o poder da revolução em modificá-la, assim como as consequências que essa mudança teria para a nova ordem social.

O Proletkult foi o centro desses debates. Esta organização juntava clubes de trabalhadores, comitês de fábricas e sociedades educativas. No seu auge, em 1920, o Proletkult chegou a reunir 400 mil membros organizados em cerca de 300 grupos distribuídos em todo o território soviético.

Capa de um periódico do
Proletkult, 1922
Envolvidos em atividades culturais, os membros ligados ao Proletkult patrocinavam o surgimento de clubes de artistas proletários, promoviam séries de palestra, aulas artísticas e até encenavam pequenas peças de teatro. Também abriram bibliotecas abastecidas com os clássicos russos, fundaram jornais e revistas onde os aspirantes a escritores publicavam seus primeiros poemas cheios de imagens sobre a vida na fábrica. Além disso, davam cursos de alfabetização e palestras sobre ciências e artes nas fábricas. 

Anatole Lunacharsky, escolhido como Comissário do Povo para a Educação, ofereceu ao Proletkult orçamento estatal para realizar seu trabalho, inicialmente utilizado para a criação de uma estrutura para a entidade: uma sede própria na avenida principal de Moscou, a criação de um periódico intitulado “Cultura Proletária”, assim como a manutenção de sub-sedes nas províncias, onde os círculos locais ocuparam edifícios públicos e antigas casas senhoriais para suas operações.

Os defensores do Proletkult acreditavam que a transformação cultural rápida e radical era crucial para a sobrevivência da revolução. Eles insistiam com o novo Estado que apoiasse programas independentes de artistas e cientistas, assim como programas sociais que expressassem os valores e princípios da classe trabalhadora vitoriosa. Um dos valores fundamentais defendidos pela organização era o da criação autônoma: as ideias sobre arte, ciência e vida diária deveriam emergir dos próprios operários. Outro princípio defendido por eles era a autonomia do Proletkult em relação ao Partido Comunista. Mas Lenin não era favorável à criação nem dessa “nova cultura” e nem da autonomia dessa entidade. 

Cartaz de propaganda para o filme
"O Encouraçado Potenkim",
de Sergei Eisenstein
Entre 1918 e 1920 ocorreu a Guerra Civil, onde anti-revolucionários apoiados por países capitalistas contrários à Revolução, submeteram a Rússia a uma situação extremamente caótica. A fome era generalizada e o poder bolchevique ainda tênue. Ainda assim, o Proletkult não paralisou suas atividades, atuando no combate ao analfabetismo, oferecendo aulas e palestras em escolas, fábricas e universidades; artistas criavam cartazes para apoiar a causa bolchevique na Guerra Civil, enquanto outros se concentraram na teoria da cor; em muitas oficinas de literatura, os participantes aprendiam a escrever poemas e histórias centradas no trabalhador, relatando suas experiências na fábrica; outros aprendiam a recitar os clássicos russos; outros ainda criavam novas letras revolucionárias para melodias familiares do seu próprio folclore, enquanto artistas da área da música, da dança e das artes plásticas faziam experimentos estéticos… Tudo isso acontecia em movimentos heterogêneos - não somente organizados pelo Proletkult - que refletiam o mundo cultural dos primeiros anos soviéticos.

No final da Guerra Civil, com a vitória dos bolcheviques, o governo central precisava avaliar qual seria a melhor forma para gastar seus escassos fundos. O país todo passava fome. Os recursos eram escassos, o dinheiro curto. O Proletkult foi reorganizado, por esses motivos, mas também por causa das ideias de seus líderes de se manter independentes da direção do Partido, em um momento em que a Revolução exigia a mais completa vigilância de todas as atividades. Lenin resolveu assumir pessoalmente a organização, denunciando sua liderança e seus objetivos. Ele escolheu como foco do trabalho da organização aquele que tendia à experimentação e à vanguarda. O rumo que o Proletkult havia tomado anteriormente, Lenin classificou como “absurdo pequeno-burguês”. 

Arquitetura construtivista, 1926.
Arquiteto: Ilya Golosov.
Os operários ainda eram minoria na Rússia e o governo agora precisava alcançar a imensa maioria dos camponeses. Com a implantação, em 1921, da Nova Política Econômica - a NEP - organizações como o Proletkult que visavam (pelo menos teoricamente) servir apenas ao proletariado estavam defasados. O governo cortou o orçamento e todas as atividades que não juntassem grande número de pessoas foram suspensas. Mas alguns grupos de artistas se mantiveram em atividade, tendentes às experimentações de vanguarda, como é o exemplo do diretor de cinema Sergei Eisenstein, que liderava oficinas de teatro em Moscou. Também havia aqueles círculos onde se praticava experiências musicais, onde artistas projetavam cartazes, capas de livros e emblemas sindicais... Os artistas construtivistas, como Tatlin e outros, afirmavam o surgimento de uma nova arte, que estava seguindo em acordo com os ideais revolucionários. Foram muitas as associações artísticas e culturais reafirmando o papel de uma cultura revolucionária que surgiram durante a década de 1920. Alguns, inclusive, aludiam à crítica de Lenin aos antigos líderes do Proletkult.

De forma reduzida, o Proletkult durou até 1932, quando o governo soviético, agora sob a liderança de Joseph Stalin (Lenin morreu em 1924) dissolveu todas as organizações culturais independentes, particularmente aquelas que reivindicavam representar o proletariado. O novo governo planejava grandes associações culturais dirigidas pelo Partido Comunista. Na sequência, nasceria o "Realismo Socialista", uma tentativa de nova estética apresentada como expressão de um estado de desenvolvimento histórico mais avançado, um movimento em direção a uma sociedade sem classes. 

Os novos líderes voltaram a defender uma visão de cultura mais ligada às do Proletkult e à visão estética de Anatole Lunatcharski. O debate sobre o papel da arte estava de volta ao centro do poder soviético.

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CONTINUA..........
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SOBRE A VANGUARDA RUSSA, LEIA AQUI:
- Vanguarda russa, as raízes de um novo tempo
- Arte em construção, o sonho de Tatlin - Parte I e II

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Os Itinerantes

Tempo de colheita, Grigoriy Myasoyedov, óleo sobre tela, 1887
Em 1863, um grupo de quatorze alunos decidiu deixar a Academia Imperial de Belas-Artes de São Petersburgo. Eles consideravam as regras da Academia restritivas e os professores conservadores. Também não concordavam com a separação rigorosa entre alunos com mais talento e os com menos, nem com a competição que era muito incentivada pela direção e professores. Eles defendiam que a arte deveria ser levada ao povo e deveria refletir a sociedade russa e não os padrões acadêmicos de então.

Retrato de Fyodor Dostoyevsky,
Vasily Perov, óleo sobre tela, 1872
Esses princípios da Academia ainda se regiam pelas convenções do academismo neoclássico, em grande parte inspirado pela arte italiana, assim como pela academia francesa. Para a Academia de São Petersburgo, além disso, a "grande pintura" era a histórica, gênero mais prestigiado, com temas geralmente retirados da Bíblia, da mitologia greco-romana e dos grandes eventos da história antiga. Somente se mantendo dentro destes limites é que os alunos podiam concorrer à medalha de ouro na competição anual, que dava direito a uma bolsa de estudos no exterior. Outros temas, como a paisagem e natureza-morta eram considerados menores e impróprios para o artista educado lá.

Por exemplo, dois artistas - Mikhail Shibanov e Nikolai Argunov - já haviam tentado pintar outras temáticas, como cenas com camponeses e as vilas do interior, mas encontraram a oposição de professores e da direção da Academia. Em 1840 outro artista, Pavel Fedotov, realizou estudos satíricos sobre a vida burguesa, obtendo mais sucesso que seus colegas e obrigando a Academia a fazer algumas concessões. Algumas obras nesse gênero foram premiadas, o que incentivou outros alunos a se dedicar a uma pintura do cotidiano, mas com avanços mínimos.

Mas em 1861, Vladimir Stasov levantou sua voz em defesa de mais liberdade na Academia. Ele era um influente crítico de arte e não apenas apoiou as inovações que começaram a surgir como criticou diretamente o conservadorismo dos acadêmicos. Também passou a defender que a pintura se voltasse para a realidade nacional e para temas populares.

Pintura de Ivan Kramskoi
Em 1863, veio a gota d’água que faltava para o rompimento definitivo com a Academia. Treze artistas foram selecionados para concorrer à medalha de ouro, conforme as regras do concurso. Anualmente, os jurados sempre determinavam qual seria o tema sobre o qual os artistas deveriam trabalhar. Naquele ano, diferentemente dos anteriores, os jurados resolveram deixar flexível a escolha do tema por parte dos estudantes, mas que levassem em conta seus próprios sentimentos. Vendo que os jurados alargavam seus critérios, os treze artistas solicitaram que fosse dada liberdade completa de escolha do tema. Pedido rejeitado, os jurados resolveram reagir de forma contrária e voltaram às regras antigas do concurso, com tema único, como sempre acontecera. O assunto escolhido foi: "A festa de Odin no Valhala". Revoltados, os pintores, liderados por Ivan Kramskoi, abandonaram a competição e a Academia, formando a Associação dos Artistas Livres.

Mas eles não estavam apenas se insubordinando. Sua rebeldia era também reflexo de suas convicções de que o artista deveria poder escolher seus assuntos de acordo com suas preferências e sua visão de mundo, sem ter de prestar contas disso a instâncias superiores.

Em 1870, esta organização - já ampliada com a presença de outros artistas - foi denominada “Sociedade de Exposições Itinerantes de Obras de Artistas Russos” (Peredvizhniki) - ou simplesmente “Os Itinerantes”. Eles queriam dar às pessoas das províncias a chance de seguir de perto as conquistas da arte russa e ensinar as pessoas a apreciar a arte. A sociedade manteve-se independente de apoio oficial, mas recebeu incentivos da parte de industriais, como Pavel Tretyakov, um grande colecionador de obras de arte, que incentivou exposições dos trabalhos desses artistas e deu-lhes importante suporte material.

Os objetivos do grupo eram: educar o povo possibilitando que entrasse em contato com a nova arte russa, formar um novo gosto e conceito de arte, e formar um novo mercado para essa arte nova.

É bom lembrar que, em Paris, Gustave Courbet se revoltou contra a Academia Francesa e inaugurou sua exposição individual intitulada "Realismo"; que Anders Zorn, pintor realista sueco, já causava admiração por onde passava; que Mariano Fortuny, na Espanha, já implementava os conceitos realistas em sua pintura; que Giovanni Boldini, na Itália, se juntara aos Macchiaioli e era um dos líderes deste grupo; que Adolph Menzel também rompera com as regras da academia alemã e se voltava ao realismo; que John Singer Sargent, um dos maiores gênios realistas do século XIX, já encantava e intrigava a todos com sua grande qualidade técnica... Que o Realismo abria espaços amplos para as vanguardas europeias do século XX... E que exercia grande influência sobre os artistas russos, em especial Courbet, Zorn e Fortuny...

As lavadeiras, Abram Archipow,
óleo sobre tela,1901
A primeira exposição pública de "Os Itinerantes" aconteceu em 1871 na própria Academia, com grande repercussão. Foi bem recebida até mesmo por críticos contrários, como Mikhail Saltykov-Shchedrin, sensibilizado com a ideia de que esta mostra deveria não só ser apresentada em São Petersburgo e Moscou mas também deveria percorrer outras cidades do interior. Foi a primeira vez que uma exposição de arte pode ser vista por um público mais amplo, pois até então a maioria das pessoas somente conheciam as novidades da pintura vendo reproduções em jornais, catálogos e gravuras. Esta exposição também foi um sucesso comercial; a própria família imperial adquiriu muitas obras. O colecionador Pavel Tretyakov, que já apoiava o grupo, adquiriu muitas obras.

“Os Itinerantes” foram influenciados pelas ideias de intelectuais como Vissarion Belinsky e Nikolai Chernyshevsky, críticos literários que defendiam idéias liberais. Belinsky dizia que a literatura e a arte deveriam ter responsabilidade social e moral. Como a maioria dos eslavófilos - movimento que defendia a tradição e a cultura russa - Chernyshevsky apoiou ardentemente a emancipação dos servos realizada em 1861. Na época, haviam 20 milhões de pessoas vivendo como servos. Para ele, a servidão, a censura da imprensa e a pena de morte eram influências ocidentais. Ele mesmo tinha sido censurado em seus escritos, por causa de seu ativismo político. Chernyshevsky era considerado um socialista utópico. Escreveu bastante sobre o papel da arte, o que influenciou os artistas Itinerantes.

“Os Itinerantes” retrataram aspectos multifacetados da vida social, muitas vezes criticando as injustiças. Pintavam  não apenas os temas da pobreza, mas também a beleza do estilo de vida do povo; não só seu sofrimento, mas também a força de seus personagens. “Os Itinerantes” condenavam o poder aristocrático e o governo autocrático em sua arte humanista. Retrataram os movimentos de emancipação, a vida social-urbana e, mais tarde, usaram a arte histórica para retratar as pessoas comuns. Tiveram seu apogeu entre 1870 e 1880.

Em seu período de formação (1870-1890), “Os Itinerantes” desenvolveram um ponto de vista amplo para suas pinturas, com imagens realistas, mais naturais. Em contraste com a paleta escura tradicional de seus tempos de estudante da Academia, escolheram uma paleta mais leve, com uma maneira mais livre em sua técnica. “Os Itinerantes” eram a sociedade que unia os artistas mais talentosos do país, que incluía artistas da Ucrânia, Letônia e Armênia.

Numa rua de Moscou, Vasily Polenov,
óleo sobre tela, 1878
Entre os temas de “Os Itinerantes”, estava a pintura de paisagem, que floresceu nos anos 1870 e 1880. “Os Itinerantes” pintavam paisagens próximas; alguns entre eles, como Polenov, usava a técnica de plein-air (pintura ao ar livre). Dois pintores, Ivan Shishkin e Isaak Levitan, pintaram apenas paisagens da Rússia. Shishkin - outro paisagista - é considerado o "cantor da floresta" russa, mas as paisagens de Isaac Levitan são mais famosas e expressam seus intensos sentimentos de artista. Os pintores paisagistas russos desejavam explorar a beleza de seu próprio país e incentivar as pessoas comuns a amar e a preservar seus lugares. Levitan disse uma vez: "Só imagino tal graça em nossa terra russa, esses rios transbordantes que trazem tudo de volta à vida. Não há um país mais bonito do que a Rússia! Só pode haver paisagistas na Rússia". “Os Itinerantes” deram este caráter nacional para as paisagens, inclusive permitindo que pessoas de outras nações pudessem conhecer como era a paisagem russa. Estas paisagens são a concretização simbólica da nacionalidade russa. Após “Os Itinerantes”, a paisagem russa ganhou importância como uma espécie de ícone nacional.

Ao longo dos anos, a quantidade de pessoas que viam as exposições de “Os Itinerantes” cresceu muito na população do interior da Rússia. Mas não só, pois elas atraíram também a atenção dos mais acostumados a frequentar exposições, assim como da elite urbana. Fotógrafos criaram as primeiras reproduções das pinturas de “Os Itinerantes”, ajudando a popularizar as obras, que poderiam ser compradas. Revistas, como a Niva, também publicavam artigos ilustrados sobre as exposições.

A origem de seus membros era variada; alguns eram camponeses, outros da burguesia urbana, e havia até nobres, mas todos se moviam com o objetivo comum de mostrar a vida em seu país. Associavam assim um estilo basicamente realista, de qual foram os principais divulgadores, com uma base ideológica de fortes traços românticos, idealistas e nacionalistas.

Velho camponês, Vasily Perov,
óleo sobre tela, 1870
Encaravam seu trabalho como uma missão sagrada. Vladimir Stasov, um dos mais ardentes incentivadores do grupo, disse que "os artistas que desejavam se unir para reformar sua sociedade não o estavam fazendo com o propósito de criar belas pinturas e estátuas com a finalidade única de ganhar dinheiro. Estavam tentando criar um alimento para as mentes e os sentimentos do povo".

Com o sucesso do grupo, que em pouco tempo aglutinou a maioria dos melhores talentos da pintura russa de sua época, a academia já não podia mais ignorá-los, e não só sua influência estética se fez sentir no meio acadêmico, mas também diversos deles foram contratados como professores, como Ilya Repin.

Muitos deles haviam ingressado no grupo porque acreditavam que a arte precisava alcançar um público mais vasto, e que deveria servir como uma força para o avanço social e o combate às injustiças e preconceitos. Mas quando seus ideais foram abraçados pela academia, começou a perder a vitalidade contestadora dos primeiros anos e as pesquisas mais arrojadas começaram a ser banidas pelo próprio grupo, que fora, em sua origem, uma vanguarda rejeitada pela oficialidade. O ciclo se repetia. Então diversos membros deixaram o grupo para prosseguir de forma individual, com mais liberdade. Com o passar dos anos, a arte dos Itinerantes já não espelhava os novos tempos e as mudanças na sociedade, e seu realismo de cunho social foi suplantado pelo decorativismo art nouveau do grupo Mundo da Arte e pelas vanguardas abstratas do modernismo.

Mesmo assim sua proposta original voltou a ser prestigiada quando o governo revolucionário assumiu o poder e estabeleceu as diretrizes para a formação do Realismo Socialista, do qual os Itinerantes foram um precursor, e onde diversos de seus representantes encontraram espaço para continuar em atividade. O Realismo Socialista resgatou as ideias iniciais de “Os Itinerantes”, quando estes artistas estavam convencidos de seu papel social como artistas em um país onde tudo estava em processo de transformação. Da arte à política.

“Os Itinerantes”, ao longo dos anos, produziram mais de 3.500 pinturas que foram vistas por mais de um milhão de pessoas em um grande número de cidades. O grupo durou até 1923, quando muitos de seus membros passaram a integrar a Associação de Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR, sigla em russo).

Abaixo, algumas das obras representativas de "Os Itinerantes":

Os rebocadores do Volga, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1870-73

Procissão religiosa na província de Kursk, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880–83

Resposta dos cossacos de Zaporozhian, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880-91
Vigília, Arkhip Kuindzhi, óleo sobre tela, 1905-1908
Sessão do Tsar Michael I com a Duma Boyarda, Andrei Ryabushkin, óleo sobre tela, 1893
Procissão de Páscoa, Illarion Pryanishnikov, óleo sobre tela, 1893
Campo de centeio, Ivan Shishkin, óleo sobre tela, 1878
Chuva na floresta, Ivan Shishkin, 1891
Sonhos, Vasily Polenov, óleo sobre tela, 1895
Retrato de Isaac Levitan, Valentin Serov, óleo sobre tela, 1893
Ponte na floresta, Rafail Levitsky, óleo sobre tela, 1895-96
Pobres recolhendo carvão, Nikolay Kasatkin, óleo sobre tela, 1894
Retrato de Vladimir Solovyov, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1892
Os cegos, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1879
Consertando a estrada, Konstantin Savitsky, óleo sobre tela, 1874
Cristo no deserto, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1872
Retrato de uma desconhecida, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1883