segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Verdade, Fraternidade e Arte


O Museu Lasar Segall, em São Paulo, inaugurou dia 20 de novembro uma exposição de obras de artistas representativos do Movimento Expressionista Alemão, uma forma de fazer arte contra o racionalismo burguês anti-humanista. Iniciado no final do século XIX, o Expressionismo Alemão alcançou todas as formas de arte, da música à literatura, do cinema às artes plásticas.


Catálogo de uma exposição
de Lasar Segall em alemão
Após 1918, fim da primeira guerra mundial, multidões de alemães foram às ruas, como parte do movimento revolucionário Espartaquista, que derrubou o keiser Guilherme II e instalou uma república democrática. Inspirada na revolução russa de 1917, a revolução alemã era liderada pelos principais líderes do Partido Comunista Alemão Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Os comunistas conseguiram controlar a região da Baviera, mas a Revolução Espartaquista acabou sendo sufocada por grupos paramilitares de extrema-direita, os Freikorps, que assassinaram os dois líderes da Liga Espartaquista.


A República instaurada foi transferida para a cidade de Weimar, pois Berlim era um barril de pólvora e o clima naquela cidade beirava o caos. O desemprego era enorme, a fome rondava todas as casas e o medo de sair às ruas era muito grande. Era o período em que a serpente do nazismo estava se formando, como foi muito bem retratado no cinema pelo filme de Ingman Bergman, "O Ovo da Serpente". Eram tempos angustiantes.

Mas mesmo em meio a esse clima, esse foi um período de profunda efervescência cultural. Os artistas buscavam se organizar em movimentos, ligas e associações, com o objetivo de contribuir para uma renovação artística e para uma mudança dos valores da sociedade. Uma desses grupos de artistas ficou conhecido como Secessão de Dresden – Grupo 1919, que reúne artistas que mantinham o mesmo ideal de uma arte interiormente verdadeira e preocupada em expressar os problemas sociais daquele período.

O Estatuto do grupo, fundado em janeiro de 1919, destaca estas palavras de ordem: VERDADE, FRATERNIDADE e ARTE. Esses jovens revolucionários se autoproclamavam “O Futuro”. O grupo inicial foi formado por Peter August Böckstiegel, Otto Dix, Will Heckrott, Otto Lange, Constantin von Mitschke-Collande, Conrad Felixmüller, Otto Schubert, a escultora Gela Forster, o arquiteto e escritor Hugo Zehder, e o alemão que se mudou para o Brasil e teve grande influência no movimento modernista brasileiro, Lasar Segall.

Esse artistas valorizavam muito as artes gráficas, com destaque para a xilogravura e sua função como panfleto de propaganda de suas ideias. Esse Grupo 1919 teve publicações como Menschen (Homens) e Neue Blätter für Kunst und Dichtung (Novas folhas para arte e literatura), onde suas obras são reproduzidas e onde são publicados ensaios críticos sobre arte, sobre cultura e sociedade. Também editaram  o álbum com doze gravuras exibidas nesta mostra do Museu Lasar Segall, e promoveram exposições até mesmo de artistas convidados, como Lyonel Feininger, Eugen Hoffmann, George Grosz e Kurt Schwitters, que também estão nesta exposição em São Paulo.

Mas esse grupo também estava aberto à interlocução com artistas de outros países, como o austríaco Egon Schiele e o russo Marc Chagall. Também usavam como referência e estudo obras e idéias de artistas como Max Pechstein, Karl Schmidt-Rottluff, Paul Klee, Wassily Kandinsky e Käthe Kollwitz, a grande gravadora alemã (leia artigo neste Blog). Todos estão nesta mostra do Museu Lasar Segall.

A lista dos artistas dessa exposição dá uma ideia da importância desse evento artístico: Chaim Soutine, Constantin Von Mitschke-Collande, Egon Schiele, Eugen Hoffmann, George Grosz, Karl Schmidt-Rottluff, Kurt Schwitters, Lyonel Feininger, Marc Chagall, Max Beckmann, Max Pechstein, Otto Dix, Otto Lange, Paul Klee, Peter August Böckstiegel, Walter Jacob, Will Heckrott, além de Lasar Segall e Käthe Kollwitz.

O Expressionismo foi um movimento cultural de vanguarda que cresceu em tempos sórdidos na Alemanha pré-nazista. Suas imagens deformadas eram uma expressão da realidade dura que atingia física e subjetivamente o ser humano daquele país naquele período. Deu primazia à expressão dos sentimentos do artista, muito mais do que à descrição objetiva da realidade, como o protesto mais profundo da alma do artista contra uma sociedade que se arruinava. Não havia como idealizar a realidade, pois a fome, a doença, o desemprego e o abandono dominava a vida do povo. Era uma espécie de realismo às avessas, uma vez que diante de realidade tão cruel a visão se tornava áspera, distorcida, agoniada.

As cores das telas eram violentas e a temática era solidão e miséria. O Expressionismo refletia a amargura que se espalhava entre artistas e intelectuais da Alemanha pré-Primeira Guerra e entre-guerras. A arte produzida por eles mostrava um desejo enorme de transformar a vida, de encontrar novos espaços para a expressão artística. Era uma forma trágica de ver um mundo que desmoronava com as guerras imperialistas. Era de fato um movimento que simbolizava o grito de alma do povo e dos artistas e intelectuais alemães. Esse grito que já tinha começado a se expressar no famoso quadro visionário de Edward Munch, O Grito, pintado em 1893. Munch também foi influenciado pelas idéias do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, que considerava a arte como uma forma de luta em defesa dos anseios sociais.

Esta importante exposição, portanto, reflete um pouco de todo um período muito rico da história recente da humanidade. Com curadoria de Vera d’Horta, ela estará aberta ao público até o dia 20 de fevereiro de 2011, no Museu Lasar Segall, na Rua Berta, 111, Vila Mariana. A entrada é franca.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Existirmos, a que será que se destina?

Uns pensamentos e uns questionamentos que às vezes me faço...


Entre mim e minha avó existe o mundo.
“No começo era o Verbo”, diz lá a mitologia da Bíblia. Como humanos, conscientes de nós e do nosso meio, falamos, dizemos o mundo. “Isto é uma pedra, aquilo é água, aquela coisa se chama estrela...” Vamos construindo o mundo, e vamos traduzindo-o em palavras, desde que a primeira pedra foi nomeada. Não importa em que língua se diga pedra, ela carrega o peso do conceito de sua “pedrice”, do seu estado de pedra.


Mas nem sempre a linguagem do mundo é dita em palavras. Antigos nômades liam nas estrelas do céu a sua localização espacial: o céu era seu ORIENTE (orientação), e assim o céu falava aos homens. Sempre que se perdiam entre dunas e miragens, eles buscavam a posição do sol, da lua e de outros astros visíveis a olho nu. Essas estrelas avisavam sobre a posição correta de pés humanos na areia da terra, e a constelação da Ursa Maior era um Touro em movimento que os guiava, como cão-de-cego orientando na direção correta. Que direção? Para onde? Para o viver, o existir: respirar, dormir, comer, beber, mijar, defecar, andar, fazer sexo, sentar, deitar, olhar, ouvir, sentir, pegar, provar, sonhar, querer, refletir, meditar e todos os atos para os quais os verbos foram criados.


Quando o homem começou a dizer o mundo, estava criada uma cosmologia. A linguagem humana foi gerando uma narrativa a respeito da origem de tudo, da natureza e dos princípios que ordenam o mundo em todos os seus aspectos. A fala foi se aprimorando e a Torre de Babel foi crescendo e cosmologias particulares sendo desenvolvidas, paralelas à cosmologia física, a ciência. São todas, científicas ou não, conjuntos de representações que demonstram de forma mais ou menos clara os mais diversos aspectos da vida humana coletiva, e dão a forma da concepção que os membros de um grupo sociocultural têm a respeito do mundo. Ou seja: falam.


Do ponto de vista da linguagem, pergunto, existe alguma concepção superior à outra? Serão todas elas formas de “dizer” o mundo? Qual a diferença entre contar a história do mundo a partir de uma grande explosão, o Big Bang inicial, e aquela hindu que conta que o deus Shiva resolveu dançar e com sua dança criou tudo o que existe? Do ponto de vista da linguagem, faz muita diferença acreditar em uma e não na outra? Não podem ser simplesmente formas sinônimas de descrever o mesmo evento? E no entanto elas possuem modos de engendrar nossa psique, nosso modus operandi no mundo, que passa a ser em acordo com aquela na qual colocamos nossa crença.


Mas o mundo foi criado, seja por Shiva ou pelo Big-Bang. A dança de Shiva aconteceu num não-espaço e num não-tempo, uma singularidade igual ao Big-Bang onde o Tempo e Espaço estavam comprimidos num minúsculo ponto não-espacial e não-temporal de densidade infinita. É quase-verdade que nosso mundo não existiu sempre – pelo menos do jeito como é – e que não existirá para sempre – do jeito como é. Os cosmólogos atuais dizem que nosso universo tem uma idade que gira em torno de 15 bilhões de anos e que existirá por um tempo limitado. Um dia tudo não-existirá, não-será.


Mas falar disso parece algo completamente sem sentido. Quando observamos que estamos presos numa Bolha de espaço e tempo, fora da qual verbos como Existir e Ser não fazem o menor sentido, a massa encefálica fervilha em busca de uma solução para o enigma. Mas fora daqui não há um “fora daqui”. Seria um absurdo falar de tempo num não-tempo. De espaço num não-espaço. Parodiando um dos discípulos de Santo Agostinho: “O que Deus fazia antes de criar o mundo?” A resposta do filósofo-cristão: “Inventava o inferno para pessoas que fazem esse tipo de pergunta”. Ou seja, bem vindo ao inferno.


Então, se a pergunta “o que existia antes do tempo?” não faz o menor sentido (porque o termo "antes" precisa do Tempo, assim como o “durante” e o “depois”), o que faz sentido? Ou, perguntando melhor, só há sentido dentro do sentido do espaço e do tempo? Ou ainda resta a capacidade mental humana de estourar a Bolha e viver em multiversos? Em prosa, em verso e em tons.


O que há é que um dia inventamos Palavras. Um dia nos ensinaram que aquela bola dourada lá no céu que se move de um horizonte ao outro, gerando a "luz" e criando o "dia" é o Sol. Repetimos, há milênios, que aquilo lá é um sol, sem questionar muito. “Aquilo lá” tomou a si um estado próprio, um estado de ser Sol, que é um não-estado de ser Lua, por exemplo. O Sol é Não-Lua, ou seja, ele é uma escolha em prejuízo de outras.


Quando damos um Nome à coisa, ela se particulariza, se individualiza. A coisa fica Só, em seu estado. Como reduzindo o tempo ao segundo que passa, separamo-lo do segundo anterior e do posterior.


Tudo no universo acha-se SÓ em relação a tudo, e a culpa é nossa. O mar está SÓ em sua natureza de mar; o sertão é um estado de ser SÓ sertão. E eu, sozinha, olhando a noite estrelada do céu do interior vejo um céu repleto de estrelas solitárias, afastadas umas das outras por anos-luz. E eu a anos-luz delas... Eu sou só uma parte de todo o conjunto dos entes sozinhos do universo. O que faz com que a distância entre mim e essa formiga que passeia sobre a minha perna seja enorme! Eu jamais a alcançarei, nem ela a mim, assim como jamais alcançarei Alpha-Centauro, ou Vega, lá no céu. Estamos todas, estrelas, formigas e eu, condenadas à mais irremediável solidão, quebrada apenas quando sabemos que somos feitos da mesma matéria, eu, a formiga e as estrelas.


Manuel Bandeira – o poeta – disse:


Ah, quem mo reduzira [o tempo] ao minuto que passa,
— Fosse ele de paixão inerte e merencória,
Na solitude, no silêncio e na desgraça!


Nesse perene ato de nomear e recriar o mundo a cada dia, o homem por vezes volta ao ponto inicial, à essência da pergunta verdadeiramente importante: - com que linguagem traduzir o mundo? Muitas vezes é preciso voltar ao ponto de origem, ao tempo do não-definido, do não-dito, do não-inventado. O tempo do provável, da potencialidade de tudo vir a ser algo. E inventar e definir e dizer tudo de novo. De Novo – jeito novo, forma nova.


Isso é Arte.


A Arte é a forma nova de dizer algo que já foi dito antes.


Foi o que fez Guimarães Rosa, esse escritor tão brasileiro! Inventou (descobriu?) uma nova Cosmologia, a Cosmologia do Sertão das Minas. De fato “o sertão é o mundo” e “está em toda parte”, como ele diz em "Grande Sertão: Veredas". A Teoria do Caos diz que habitamos um universo holográfico. Sendo assim, um espaço como o sertão é um holograma do mundo. Por isso, o Rosa tem razão: tudo cabe no sertão e por isso o sertão é o mundo. Por isso a cosmologia sertaneja é igual à cosmologia hindu milenária e à cosmologia física relativística. Os bichos do sertão falam como gente, assim como as árvores, as coisas e as pessoas. O sertão descreve o mundo e o mundo inteiro cabe holograficamente no coração do sertão brasileiro. Ainda mais: a brasilidade da cosmologia do sertão, um estado brasileiro de descrever o universo. O sim e o não no sertão não são afirmativos e negativos mecanicamente, mas quanticamente. O sertão é o local aonde o conceito quântico é mais compreensível: é e não-é, não é Riobaldo? Um Nonada. Um Não que não elimina um Sim, ou o contrário. Ambos podem gerar um talvez, um pode ser, por que não?


Há um mundo de probabilidades dentro da física sertaneja. Probabilidades quânticas. Em "estado-de", em estado quântico, como o gato de Erwin Schrödinger, um dos pioneiros da física quântica. Um gato quântico, um sertão quântico. No sertão até o tempo é uma entidade plena de probabilidades. Disse para mim, lá em Cordisburgo, o Brasinha: - “pode ser lá pelas 9 horas, que aqui pode significar 10, meia-noite...” E seu riso sublinhou que por aqui nada é muito definitivo e definido. Ninguém vai reclamar se não for nove, porque todos sabem que nove pode ser dez sem problema.


Muda tudo quando buscamos formas novas de descrever o que já foi descrito e definido. Guimarães Rosa, não satisfeito com uma língua só, foi buscar aprender a ler na linguagem direta das coisas do mundo: na linguagem das vacas, das grutas, da terra, das plantas, dos sertanejos, dos homens e mulheres que vagam existindo nesse imenso-minúsculo espaço entre o céu e a terra que é o Brasil, habitando um estado especial de ser, um estado cultural brasileiro de existir no mundo. “O sertão é o mundo”.


Durante uns anos, de 1998 a 2004, frequentei umas aulas na casa do professor Amancio Friaça, do IAG-USP. As aulas semanais, às quinta-feiras, eram para umas dez pessoas que para lá iam encontrar algum sentido nessa existência, enquanto conheciam os conceitos de Cosmologia e Física Quântica. Estudava também por conta própria, sobre essas elocubrações existenciais, nos livros que fui adquirindo. No meio disso, faculdade de Letras. E tudo aquilo lá, aqueles questionamentos do tipo o que estou fazendo por aqui? ou “Existirmos, a que será que se destina?” continuam me perseguindo em todos os desenhos que faço e nas leituras do mundo como obra de arte. Que linguagem é essa que usamos para descrever o mundo?


Penso que há alguma relação entre a obra de Guimarães Rosa, a Cosmologia e a contemplação de um quadro de Caravaggio... que vão além da simples linguagem. Ver o mundo de novo, ver com Arte. E transformar o que vejo em alegria para os olhos, em prazer para a alma e em sentido para viver...

sábado, 27 de novembro de 2010

À beira mar

Uma praia do litoral de Santa Catarina
O céu é cinza e o vento é sul. E o mar murmura remotas canções, em ondas que me aquecem neste entardecer tão frio... O vento fustiga as aves escondidas pelos rochedos, encolhidas no cais, resistentes ao vento e às ondas.


Bandeiras desfraldadas se enfurecem ao sopro atroz desse vento sul, como meu pequeno barco entre o mar e o céu, à deriva entre rajadas e espumas.


Sons diversos são tangidos pelo vento: sonoridades marinhas me invadem. E em meu coração formam acordes nas cordas de um violão.


O mar é cinza, o céu é cinza e o vento é sul e eu mergulho nessas ondas espumantes. Volto ao vento e à minha torre, à espreita daquela primeira estrela que virá. Apesar do gris do céu e do mar, e do vento sul... 


O verão virá. Verão.