segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A poesia solar de Maiakovski

Nesta última quarta-feira, 7 de novembro, na Livraria Arlequim, centro do Rio, foi lançado o livro “Vladimir Ilitch Lenin”, poema de Vladimir Maiakovski, com a presença de cerca de quarenta pessoas, entre intelectuais, artistas e amantes da literatura do poeta russo.
Paço Imperial, Rio de Janeiro

A Livraria Arlequim ocupa uma sala do famoso Paço Imperial, uma construção do final do século XVII, mais exatamente 1699. O prédio por onde passou a comitiva de Dom João VI, quando de sua vinda de Portugal para o Brasil, hoje recebe diversas exposições temporárias de artes visuais, além de ter a sua própria exposição permanente.

Dentro desse espaço, reuniram-se Zoia Prestes, Adalberto Monteiro, Alexei Bueno, Maria Prestes (viúva do líder comunista Luís Carlos Prestes), eu e umas quatro dezenas de pessoas para falar de poesia e de arte.

Adalberto, responsável pela edição do livro que saiu pela Editora Anita Garibaldi, com o apoio da Fundação Mauricio Grabois, fez uma apresentação do livro, ressaltando o fato de ser a primeira tradução em língua portuguesa do poema “Vladimir Ilitch Lenin” em sua totalidade. Disse ainda que esse poema ressoa, nos dias de hoje, as ideias futuristas de Maiakovski, um poeta que olhava para o porvir. Dedicando o poema ao líder da revolução russa de 1917, Lenin, Maiakovski “não endeusa, não faz culto à personalidade de Lenin, mas, pelo contrário, mostra um homem comum, ‘a pessoa mais terrestre’, que soube liderar um movimento que trouxe mudanças muito profundas, não só para a Rússia, mas para o mundo todo”, disse Adalberto Monteiro.
Zoia Prestes autografa o livro

Zoia Prestes, a responsável pela tradução direta do russo para a língua portuguesa, disse que essa tarefa dificílima de traduzir um poema de Maiakovski, apesar de complexa, trouxe-lhe também bastante satisfação pessoal, por causa de sua história com esse poeta. Ela viveu em Moscou entre 1970 e 1985, e em sua fase escolar participou de concursos de declamação de poesia e lembra que os livros de Maiakovski eram parte do currículo escolar da União Soviética. Em um desses concursos, ganhou como prêmio um exemplar desse poema em russo, que ela guarda até hoje. Na tradução do poema, Zoia Prestes diz que resolveu priorizar o significado das palavras, mantendo a mesma disposição formal escolhida pelo poeta russo, com versos escalonados. E completou dizendo que o fato de ter vivido tanto tempo na Rússia, onde recebeu educação escolar e superior, traz consigo esse amor à cultura russa e ao povo russo, o que também foi um importante componente no momento de traduzir este poema.

Lançamento no Rio de Janeiro
Alexei Bueno, poeta, editor e crítico literário, também expôs suas opiniões sobre o livro. Profundo conhecedor de poesia, disse que a de Maiakovski reflete a riqueza cultural do povo russo, que também gerou os gênios do cinema, Sergei Einseinstein, Andrei Tarkovski, entre outros. Os artistas russos, ressaltou Bueno, foram e são ainda referências para os artistas de hoje em todo o mundo. Ele elogiou a iniciativa da tradução desse poema em língua portuguesa e todo o esforço da equipe responsável pela execução dessa obra.

Mazé Leite, a artista responsável pelo projeto gráfico e pelas ilustrações, fez uma breve explanação sobre seu trabalho. Ressaltou que se inspirou nos artistas da vanguarda russa, citando alguns nomes como Natalia Gontcharova, Vladimir Tatlin, Kasimir Malievitch e Alexandr Rodtchenko. Explicou que a ideia para uma capa com tons quentes e vibrantes ela foi buscar na imagem do Sol, um tema bastante recorrente na obra de Maiakovski. Além do poema em si, disse ela, porque apesar de ter sido escrito para lamentar a morte de Lenin, o poema na verdade é uma ode à vida.
Vladimir Maiakovski,
fotografado por Alexandr
Rodtchenko

Após essas primeiras intervenções, outras pessoas presentes também participaram do bate-papo, como Maria Prestes, que contou diversas histórias dos tempos em que ela com o marido, Luis Carlos Prestes, e nove filhos, se mudaram para Moscou, fugindo da ditadura militar no Brasil. Maria Prestes é a mãe de Zoia.

A noite encerrou com um coquetel e muita conversa sobre poesia e sobre arte.

O livro “Vladimir Ilitch Lenin”, de Maiakovski, já teve seu primeiro lançamento em São Paulo. O próximo encontro em torno do poema será no dia 21 de novembro, no Centro Cultural Vergueiro, às 19h30, na Sala de Debates.

domingo, 4 de novembro de 2012

Mário de Andrade - Cartas do Modernismo

Mário de Andrade

Mário de Andrade, por Portinari
Uma exposição no Rio de Janeiro estará encerrando as comemorações dos 90 anos da Semana de Arte Moderna, completados neste ano de 2012, com diversas cartas de Mário de Andrade, um dos principais teóricos e idealizadores da semana que marcou as artes e a cultura brasileira no século XX. De 13 de novembro a 6 de janeiro de 2013, o público carioca poderá apreciar esta exposição que terá como local o Centro Cultural dos Correios, no centro da cidade.
Mário de Andrade manteve uma correspondência bastante grande com os mais importantes intelectuais e artistas, entre poetas, músicos, escritores e pintores. Através dessas cartas ele vai delineando seu pensamento sobre o modernismo brasileiro, o tema central das cartas dessa exposição no Rio.

São correspondências trocadas entre Mário e Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Enrico Bianco, Cícero Dias e Victor Brecheret. 

Mário de Andrade,
por Lasar Segall
Mas o outro tema da exposição de cartas são as Artes Plásticas, mostrando como Mário trocou ideias sobre o assunto com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa. Mário de Andrade viveu um pouco de tempo no Rio de Janeiro e aprofundou sua amizade com Candido Portinari, como pode ser também observado através das cartas trocadas entre os dois amigos, que hoje pertencem ao acervo do Projeto Portinari.

Mário de Andrade possuiu uma boa coleção de obras de arte, seja porque ele comprou, seja porque tenha ganhado de presente muitas delas. O Instituto de Estudos Brasileiros da USP é que mantém a guarda de parte desse acervo e cedeu algumas dessas obras para a exposição. 

Entre elas estão "As Margaridas de Mário" de Anita Malfatti , "Mulher" de Di Cavalcanti, desenhos e aquarelas de Cícero Dias, Ismael Nery, Portinari, Segall, Zina Aita e Augusto Rodrigues. Também lá estão os três retratos do escritor feitos por Portinari, Lasar Segall e Enrico Bianco. De outras coleções, estão: "Chinesa" de Anita Malfatti e "Menina do Circo" de Di Cavalcanti.


Por causa da fragilidade dos papeis, a maioria das cartas serão apresentadas em fac-símile, e uma parte delas, para melhor compreensão, foi transcrita e impressa.

Carta-desenho de Anita Malfatti a Mário de Andrade
-------------------
Biografia suscinta:
Mário,
por Tarsila do Amaral
Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo no dia 9 de outubro de 1893 e aqui faleceu no dia 25 de fevereiro de 1945. Foi poeta, romancista, historiador, crítico de arte, musicólogo e um dos principais teóricos do movimento modernista brasileiro do século XX.
Em 1922 lançou aquele que seria o ato inicial da poesia moderna brasileira: seu livro Pauliceia Desvairada. Estudou a cultura brasileira a fundo, desde a musicalidade dos nossos índios até o nosso folclore, trazendo à tona os valores culturais do nosso povo, num momento em que a burguesia brasileira conservadora e colonialista, se voltava para a cultura europeia.
Mário foi uma das figuras centrais dos movimentos de vanguarda em São Paulo, que influenciou todo o Brasil. Um dos líderes principais da Semana de Arte Moderna de 1922, ele continuou sua pesquisa sobre o modernismo e a cultura brasileira durante toda a sua vida. Foi poeta, escritor e ensaísta, mas também professor de música e colunista de jornal. Em 1928, resumiu sua pesquisa na cultura do povo brasileiro mais profunda no livro Macunaíma. Nos últimos anos de sua vida foi diretor do Departamento Municipal de Cultura da cidade de São Paulo.
Em homenagem a este grande intelectual, poeta e escritor brasileiro, reproduzimos abaixo um dos seus grandes poemas do livro Pauliceia Desvairada, Ode ao Burguês, que foi lido em um dos dias da Semana de 1922:
Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!


Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
------------------------------------------
Serviço: 
Exposição: "Mário de Andrade - Cartas do Modernismo"
Abertura: 13 de novembro, às 19h
Visitação: 14 de novembro a 6 de janeiro de 2013
Local: Centro Cultural Correios
Rua Visconde de Itaboraí, 20 - Centro
Rio de Janeiro

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Vanitas: a vida é passageira e o tempo urge

Vanitas, de Jacob de Gheyn, 1603

“Nesta cova em que estás, com palmos medida
é a conta menor que tiraste em vida.
É de bom tamanho, nem largo e nem fundo
é a parte que te cabe deste latifúndio”.
(Chico Buarque)





O tema da morte, representada por uma caveira, surgiu muito cedo na arte europeia da história mais recente, por volta do século XIII. Conhecida como VANITAS, era uma categoria especial de arte que sugeria que a existência terrestre é vazia, vã, cheia de sofrimento e que a vida humana não era tão importante, no fim das contas.

Este tema foi bastante popular na época da arte barroca, especialmente na Holanda. Diversos artistas, entre eles Holbein, trabalharam com este tema.

Essa denominação tem como origem o livro bíblico do Eclesiastes, do Velho Testamento, que diz em um certo trecho: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Traduzido como Vanitas, significa literalmente “sopro rápido, efêmero” e a mensagem que traz é a de que devemos meditar sobre a natureza passageira e vã do mundo e da vida humana, a inutilidade dos prazeres diante da morte que nos espia de perto.

 Vanitas, de Pieter van Steenwyck, séc. XVII
Esse tipo de pintura foi essencial para o surgimento da natureza-morta como gênero. Desde a época clássica de Grécia e Roma, por mais de mil anos o tema da representação pictórica de elementos como frutas, verduras, utensílios variados, etc, tinham sumido da pintura. A arte do período bizantino não utilizava esse tema. Na Idade Média, esses objetos só figuravam na pintura (em um grupo de pessoas, ou alguma outra situação) porque tinham algum sentido. No caso de Vanitas, todos os objetos ali representados são símbolos da fragilidade humana, da brevidade da vida, do tempo que passa e da morte. Em meio a todos os objetos que representavam essas ideias, a caveira era a mais recorrente. Em qualquer situação, ela poderia estar presente: no saber, na ciência, na riqueza, nos prazeres, na beleza...

Vanitas denuncia a relatividade do conhecimento e a vaidade humana diante do tempo que foge, e da morte que se aproxima.

A primeira pintura da história da arte ocidental dentro do tema seria a do pintor Jacob de Gheyn, de 1603. No período do Renascimento, que enfatizava o humanismo, esse tema foi bastante utilizado nas artes em geral. Tinha um papel moralizante e utilizado pelos cristãos sob formas e intenções diversas ao norte e ao sul da Europa, tanto por católicos como por protestantes. 

Pintura de
Charles Allan Gilbert, 1892
Mesmo que ele tenha antecipado a natureza-morta, ela só aparece como gênero independente no século XVII. É bom lembrar que Caravaggio (1571-1610) foi um dos primeiros a trazer o tema da natureza-morta para a pintura de seu tempo, pelo que foi criticado por seus contemporâneos que o acusavam de pintar temas “parados”, segundo Roberto Longhi (leia mais aqui). Também pintou caveiras em alguns de seus quadros, como em "São jerônimo escrevendo".

Em seu livro Arte e Beleza na Estética Medieval, Umberto Eco diz que na Idade Média havia um esforço dos cristãos em deslocar a contemplação da natureza para a contemplação da beleza da alma, citando o exemplo dos monges cistercienses (São Bernardo era um deles) que contrapunham a beleza interior à exterior, uma celeste e a outra terrena. Segundo essa filosofia, a beleza terrena é fugaz, como a flor que dura uma primavera e o corpo humano que envelhece.

Foi o período, conhecido inclusive na literatura, do tema do UBI SUNT, tema maior da Idade Média, que se perguntava: onde estão os grandes do tempo passado, as cidades belas do passado, as riquezas dos orgulhosos, as obras dos poderosos? Tudo acaba.

Ilustração de
Johann Caspar Lavaters,
1775
 
Na França, o poeta-bandido François-Villon escreveu o poema "Balada das damas dos tempos de outrora" ("Ballade des dames du temps jadis"), onde, ao final de cada estrofe, ele perguntava repetidamente: "mais où sont les neiges d'antan?" (onde estão as neves de antanho?) 

Dentro dessa forma de pensar, o caminho era buscar a beleza interior que não morre, porque a alma seria eterna.

Muito se pintou e se escreveu sobre o tema da morte, na arte ocidental, em todos os países. Mas para não ir muito longe, recordemos um poema do brasileiro João Cabral de Melo Neto: "Morte e Vida Severina".

Podemos dizer que este poema é um tema de Vanitas adaptado à situação do nordestino que vive pouco, pois morre de pobreza ou na luta pela terra. Abaixo um trecho do poema, que depois foi adaptado para uma canção por Chico Buarque de Holanda, "Funeral de um Lavrador", citada no início deste post:

Morte e Vida Severina:
Desenho para o filme de animação feito pelo cartunista
Miguel Falcão, que adaptou a obra de João Cabral

“ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO   
UM DEFUNTO NUMA REDE,   
AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS!   
IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU   
QUEM MATEI NÃO!"   

   — A quem estais carregando,   
irmãos das almas,   
embrulhado nessa rede?   
dizei que eu saiba.   
— A um defunto de nada,   
irmão das almas,   
que há muitas horas viaja   
à sua morada.   
— E sabeis quem era ele,   
irmãos das almas,   
sabeis como ele se chama   
ou se chamava?   
— Severino Lavrador,   
irmão das almas,   
Severino Lavrador,   
mas já não lavra.   
— E de onde que o estais trazendo,   
irmãos das almas,   
onde foi que começou   
vossa jornada?   
—  Onde a caatinga é mais seca,   
irmão das almas,   
onde uma terra que não dá   
nem planta brava.   
— E foi morrida essa morte,   
irmãos das almas,   
essa foi morte morrida   
ou foi matada?   
— Até que não foi morrida,   
irmão das almas,   
esta foi morte matada,   
numa emboscada.   
—  E o que guardava a emboscada,   
irmão das almas   
e com que foi que o mataram,   
com faca ou bala?   
— Este foi morto de bala,   
irmão das almas,   
mas garantido é de bala,   
mais longe vara.   
— E quem foi que o emboscou,   
irmãos das almas,   
quem contra ele soltou   
essa ave-bala?   
— Ali é difícil dizer,   
irmão das almas,   
sempre há uma bala voando   
desocupada.   
— E o que havia ele feito   
irmãos das almas,   
e o que havia ele feito   
contra a tal pássara?   
— Ter um hectares de terra,   
irmão das almas,   
de pedra e areia lavada   
que cultivava.   
— Mas que roças que ele tinha,   
irmãos das almas   
que podia ele plantar   
na pedra avara?   
— Nos magros lábios de areia,   
irmão das almas,   
os intervalos das pedras,   
plantava palha.   
— E era grande sua lavoura,   
irmãos das almas,   
lavoura de muitas covas,   
tão cobiçada?   
— Tinha somente dez quadras,   
irmão das almas,   
todas nos ombros da serra,   
nenhuma várzea.

(...)"

E abaixo a pintura de Candido Portinari, Os retirantes, grandiosa expressão do tema da morte:


Os retirantes, de Candido Portinari