quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Mulher de azul lendo uma carta

Hoje de manhã resolvi ir ao Masp ver a obra-prima de Johannes Vermeer, “Mulher de azul lendo uma carta”, pintada entre 1663-1665. A pintura, que é do acervo do Rijksmuseum de Amsterdã, está sendo exibida aqui em São Paulo até 10 de fevereiro.

"Mulher de azul lendo uma carta", de Jan Vermeer, 1663-65
Quase não tinha ninguém no museu, o que foi bom. Sentei-me em frente a ela, a pintura, e lá fiquei decifrando os segredos por trás do rosto da mulher de azul que lê uma carta misteriosa. De alguém que está longe? Pode ser... Sempre se espera notícias daqueles que estão distantes de nós, longe ou perto. As mãos dela, delicadas, seguram firmes no papel sobre o qual seu olhar se lança, como através de uma janela para enxergar coisas distantes. O brilho no rosto dela podem vir da janela, podem vir da carta. Sua barriga parece guardar uma gravidez. Seu rosto e seus cabelos são do mesmo tom do mapa a seu lado, que representa as expansões espaciais da vida...

Detalhe da pintura
Vermeer tem muitos quadros em que uma mulher está perto de uma janela, e a janela aparece. Mas neste aqui, só sabemos da janela pela luz que entra no aposento, e ilumina a testa dela, os dedos dela, o vestido azul lápis-lazuli dela. Os olhos estão atentos à carta, mas quando olhamos para a boca e para os olhos simultaneamente, os olhos são tristes. Me olho no espelho? Vermeer pintou esta tela com uma paleta muito reduzida, quase restrita ao azul do lápis-lazuli, mais terra-de-sena-queimada, sena-natural, e o que mais? A sombra do vestido azul da moça que parece grávida é uma sombra fria, intensa. Sobre a mesa há livros e um manto escuro que aumenta a sombra da parte inferior do quadro. Um mapa na parede parece dizer que o autor daquela carta anda por muito longe... E o azul que se espalha por vários lugares do quadro, no encosto e acento das cadeiras, na base que segura e estica o mapa, na sombra da saia da moça, na sombra do manto escuro e explode na blusa dela. Lápis -lazuli é uma pedra de cor azul que vinha da Índia e custava caríssimo no tempo de Vermeer.  Mas ele preferia o azul dessa gema cara ao azul do azurita, muito mais barato. Ele mesmo esmagava o pigmento, misturava com óleo de linhaça, preparava suas tintas.

Mas eu estava ali, sentada em frente dessa moça de azul de lápis-lazuli, lembrando do “No caminho de Swann”, de Marcel Proust que ando lendo... Proust adorava Vermeer. Ficou tão impressionado com o quadro “Vista de Delft”, numa exposição que teve em Paris, que a considerou a mais bela pintura que ele jamais vira. Faz uma descrição dela em um dos livros da série “Em busca do tempo perdido”. Mas eu ainda não cheguei lá.

Detalhe da pintura
Ainda estou no Caminho de Swann. Enquanto meus olhos percorrem o quadro de Vermeer, minha mente passeia pelas páginas já lidas, olhando para dentro como a moça que olha para o que está escrito na carta. Levei o livro para ler em minha viagem a São Luis, à casa da minha mãe. Coisa estranha. Ler Marcel Proust na casa da nossa mãe traz um gosto diferente, uma mistura de mundos, pois enquanto eu lia as descrições da casa do personagem, das relações familiares, da mãe, do pai, e das escaramuças entre a tia Léonie e Françoise, a empregada, no meu próprio pano de fundo os sons da minha própria família, conversas ocasionais, pequenas rusgas, e minha mãe pra lá e pra cá cuidando do almoço na cozinha, enquanto orientava a sua própria empregada. Eu parava a leitura, ouvia. Era a ilustração do que eu lia. Voltava à leitura, e reencontrava o personagem principal “àquela hora em que eu descia à cozinha para saber o que se preparava...”. Mundos que se entrecruzam...

Vermeer era realista. Marcel Proust incomoda com tanto realismo! Chega a beirar o insuportável! Por isso são tão poucas as pessoas que encaram a leitura de “Em busca do tempo perdido”. Ele era um fascinado pela realidade cotidiana, simples, corriqueira, aquela que nem nos chama a atenção, de tão rotineira. Mas Vermeer via. Mas Proust via. Um exemplo:

“Parava para olhar em cima da mesa, onde a criada de cozinha acabava de as debulhar, as ervilhas alinhadas e contadas como bolitas verdes em um jogo; mas todo meu encantamento era para os aspargos, empapados de azul ultramar e rosa, e cujo talo, delicadamente estriado de azul e malva, se degrada insensivelmente até a base – ainda suja do solo onde estivera – com irisações que não são da terra. Parecia-me que aqueles matizes celestiais traíam as deliciosas criaturas que se haviam divertido em metamorfosear-se em legumes e que, através do disfarce de sua carne comestível e firme, deixavam transparecer naquelas cores frescas de aurora, naqueles esboços de arco-iris...”

Proust parece ter efetuado um mergulho em busca do tempo perdido, se agarrando a pedaços de real que o tempo ia deixando escapar... Desde o começo ele fala em cores, em tintas, em pinturas, em luzes, em artistas. Alguns trechos parecem ter sido escritos como quando se contempla um quadro do outro realista, o Jan Vermeer... Como eu aqui, frente a essa moça azul, meus olhos vasculhando os momentos do quadro, encontrando a projeção da sombra da cadeira na parede e tendo a sensação de que ao mesmo tempo que o real me fisga, o real me escapa. Se eu fosse o Proust agora...

Mas eu também estava sob uma sombra naquela praia da Baronesa, em Alcântara. Olhava o mar, o céu, as ondas, os navios, os barcos, as gentes poucas daquela praia. Peguei meu lápis e capturei aquilo ali. Tem momentos que devem ser capturados, porque eles não voltam nunca mais! Ah, as coisas sem retorno da vida...

Volto ao museu e me levanto e vou embora, porque o mergulho dentro do quadro já foi longe demais e a vida me chama para trabalhar. Na rua, a luz externa me ofusca mas lança uma luminosidade ao meu coração e vejo que foi bom ter encontrado Vermeer nesta manhã nublada e cinza. E vi que será bom quando à noite em casa abrir meu livro e ver o mundo através dos olhos de Marcel Proust... Arte é vida.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Una Madonna per mia madre

Parte do processo de trabalho em meu ateliê
Pintei esta imagem, em pastel, a partir da pintura original "Madonna delle Arpie", feita em 1517, pelo pintor maneirista italiano Andrea del Sarto. O processo durou mais ou menos 20 dias de trabalho e foi um presente para a minha mãe, Dalva Leite, que mora em São Luís do Maranhão, aonde estive por dez dias neste final-começo de ano. Ver o rosto feliz da minha mãe ao receber o presente foi uma alegria imensa para mim! De tão feliz, ela ia pedir para algum padre abençoar o quadro, que será, para ela, uma imagem sagrada. Para mim também é sagrada: desde menina queria convencer meus pais de que eu poderia ser artista. Neste natal de 2012, décadas depois, minha mãe disse: você é uma artista! Momento muito simbólico para mim...

Sobre a pintura, resolvi não fazer uma cópia fiel, mas dar um estilo mais pictórico, deixando partes sem muita finalização, como a mão que segura o livro. A pintura original é maior, inclui outras figuras, como se pode ver abaixo. Giorgio Vasari, artista e historiador italiano, diz que Del Sarto teve a intenção de fazer com que esta imagem parecesse uma escultura, pois colocou a Madonna sobre um pedestal.

Andrea del Sarto foi um pintor italiano do período do alto Renascimento, nascido perto de Florença em 26 de novembro de 1486.

A pintura original "Madonna delle Arpie",
de Andrea del Sarto, 1517
Ele era filho de um alfaiate (em italiano se diz “sarto”) e com sete anos de idade começou a ser aprendiz de um ourives. Em seguida, tornou-se aprendiz do pintor e escultor em madeira Gian Barille. Como ele progredia muito rapidamente na pintura, foi encaminhado para o ateliê de Piero di Cosimo e, em seguida, para o de Rafaellino del Garbo.

Com um amigo, Andrea abriu seu próprio ateliê na Piazza del Grano. Nessa época ele fez uma série de pinturas monocromáticas, em grisália. Tempos depois, os amigos seguem caminhos separados e Andrea del Sarto se destaca individualmente.

Em 12 de dezembro de 1508 ele foi admitido na corporação dos pintores, a “l’Arte dei Médici e degli Speziali”, e são deste ano as suas primeiras obras. Fez diversas pinturas murais, afrescos e pinturas monocromáticas.

Casou-se em 1518 com Lucrezia del Fede. No mesmo ano viaja para a França a serviço do rei francês François I, com seu aluno Andrea Squarzzella. Ele já havia feito para o rei francês a “Madonna col Bambino”, além de outras obras. Sua esposa o chama de volta para a Itália, mas o rei lhe exige que sua ausência seja breve. Mas Andrea, já em Florença, resolve construir uma casa na cidade. O rei reage impedindo que Andrea volte a fazer parte de sua corte, sem outras maiores punições.

Em 1520 seu trabalho se concentra em Florença, fazendo diversas pinturas e afrescos.

Andrea del Sarto morreu de peste em Florença em 1531. Seu corpo está enterrado no chão da capela dos pintores da Santíssima Annunziata com mais outros 14 pintores.

Detalhe em pastel da "Madonna delle Arpie", Mazé Leite, 2012

domingo, 6 de janeiro de 2013

Rápidos rabiscos

No centro histórico de São Luís, hoje conhecido como Projeto Reviver
Fui para São Luís do Maranhão neste fim de 2012, como faço a cada um, dois anos para visitar minha mãe e irmãos que moram por lá. Passei o reveillon em Alcântara, cidade ainda mais antiga, primeira capital do Maranhão.

São Luís se moderniza com uma velocidade incrível. A cada vez que vou lá, encontro muita coisa nova e diferente. Mas tem coisas que ainda não mudaram, principalmente a miséria do povo, abandonado pelos mesmos que mandam naquele Estado há uns 50 anos, cujo sobrenome o Brasil inteiro conhece: Sarney. Povo pobre, família Sarney riquíssima.

Enquanto olhava de novo as mesmas velhas construções cada vez mais deterioradas por causa do abandono por parte dos sucessivos maus governos municipal e estadual, resolvi que ia fazer uns sketchs sem muito apuro, pegando só o sentido do que vi. Nem quis ser muito literal. Olhava, rabiscava a lápis, pegava o que queria e finalizava com nanquin. Fugi das novidades. Fiquei mais no que representa a cultura maranhense, grandemente influenciada pela cultura de origem indígena e africana, mescladas. Velhas embarcações, construções de palha, artesanato rudimentar, redes, praias, casas de taipa, coqueiros, canoas, redes de pesca, chapéus de palha, imagens religiosas católicas e do candomblé... Uma atmosfera meio barroca ainda ronda o Maranhão...

O calor de lá, junto com o sol quente, dá uma preguiça danada...
Vista da baía de São Marcos, do paredão ao lado do Palácio dos Leões
Na avenida Litorânea, essa mesa tosca empurrava o coqueiro
Uma espécie de tenda coberta de palha, na praia da Baronesa em Alcântara
Velho lustre feito de metal, quase simétrico, quase bonito,
mas mantém uma rudeza que diz muito sobre aquela terra.
Ele estava sobre uma mesa do restaurante da Pousada Bela Vista
Teto de palha que cobre um local de descanso com redes estendidas,
na Pousada Bela Vista em Alcântara, MA 
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Um barquinho que voltava de Alcântara