quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Michelangelo Buonarroti

A Capela Sistina vista de cima em meio a outra
construções do Vaticano
 
Nestes dias em que a notícia internacional mais comentada é a renúncia do papa Bento XVI, anunciada para o próximo dia 28 de fevereiro, um lugar especial do Vaticano entrará em destaque mais uma vez: a Capela Sistina. É lá que acontece a reunião (conclave) dos cardeais que vão eleger o papa e é da chaminé do fogão da capela que sairá a fumaça escura ou clara que apregoará a eleição ou não do novo dirigente da igreja católica.

Quando se fala em Capela Sistina impossível não lembrar de um dos maiores gênios da humanidade, o homem que, sozinho, foi responsável pela obra de arte pintada no teto da capela construída pelo papa Sisto IV (daí Capela Sistina): Michelangelo Buonarroti. Nesta segunda-feira, dia 18 de fevereiro, completam-se exatos 449 anos de sua morte com quase 90 anos de idade.

Michelangelo nasceu em Florença no dia 6 de março de 1475. Era filho de Lodovico Simon Buonarroti e Francesca di Neri Buonarroti, que tiveram muitos outros filhos. Sua mãe faleceu quando ele tinha seis anos de idade. Como a família era pobre, o pai encaminhou os filhos para aprender alguns ofícios. Michelangelo aos 13 anos de idade foi aprender desenho e pintura no ateliê de Domenico Ghirlandaio, outro pintor da Renascença.

Desde muito cedo seu talento se destacou. Sua disciplina e capacidade de concentração fizeram com que ele rapidamente atingisse um estágio muito avançado nas artes levando seu mestre Ghirlandaio a reconhecer que Michelangelo era melhor que ele, como diz Giorgio Vasari, um dos primeiros historiadores da arte, em seu livro “Vida dos Artistas” publicado pela primeira vez em 1550. O livro foi publicado aqui no Brasil pela Editora Martins Fontes, em 2011.

Já E. H. Gombrich, no livro “A história da Arte” diz que Michelangelo estudou com Ghirlandaio mas preferiu dedicar-se ao estudo da obra dos mestres do passado como Ghiotto, Masaccio, Donatello. E dos escultores gregos e romanos. “Lhe intrigava como os antigos sabiam representar a beleza do corpo humano em movimento, com músculos e tendões”. Foi aprender as leis da anatomia do corpo humano, dissecando cadáveres, como o tinha feito Leonardo. E fez desenhos com modelo vivo. Ao contrário de Leonardo “para quem o homem era apenas um dos muitos e fascinantes enigmas da natureza” Michelangelo se dedicou basicamente à figura humana. “Não havia postura nem movimento que ele achasse difícil desenhar”, observa. As dificuldades o atraíam.

Tondo Doni, pintada para Agnelo Doni
Lorenzo de Medici, o poderoso homem da família Medici de Florença e patrono de diversos artistas, abriu uma escola de escultura para onde Michelangelo foi enviado. Adolescente, ele fez um busto de mármore usando como referência uma escultura antiga. Lorenzo se surpreendeu com o talento do garoto e resolveu lhe pagar um salário mensal como incentivo e ajuda a seu pai. Enquanto isso, continua Vasari, ele estudou “durante muitos meses” as pinturas de Masaccio, um dos primeiros grandes pintores italianos junto com Giotto. É bom lembrar que a pintura italiana daquela época era feita basicamente em afrescos (pintura feita diretamente na parede com a massa ainda fresca).

Rapidamente a fama de Michelangelo cresceu e, junto com a fama, a inveja, observa Giorgio Vasari. Ao longo de sua vida, o artista passou por diversos entreveros com outros pintores e escultores. Ainda na escola de Lorenzo de Medici, seu colega Torrigiano deu-lhe um soco que lhe quebrou o nariz. Michelangelo levou essa marca até o fim da vida.

Seu temperamento era difícil, impaciente, explosivo. Não se dobrava para ninguém. Certo dia - conta-nos Vasari - um rico mercador florentino, Agnolo Doni, lhe encomendou uma pintura (que hoje está na Galeria degli Uffizi e se intitula “Tondo Doni”). Quando terminou a pintura, Michelangelo enviou-a através de um mensageiro, junto com a conta: 70 ducados. Agnolo, rico e avarento, achou muito caro para uma pintura e enviou-lhe 40 ducados. Michelangelo devolveu o dinheiro e mandou dizer que ou Agnolo pagava 100, ou queria a pintura de volta. Agnolo respondeu que então pagava os 70 ducados iniciais. Michelangelo respondeu-lhe que agora a pintura valia 140. Como o rico mercador queria muito a pintura, pagou os 140...

Logo ele fez o caminho que inúmeros artistas fizeram: mudou-se para Roma. Lá “fez tantos progressos no estudo da arte, que era incrível ver a facilidade com que punha em prática os elevados pensamentos e tornava facílimo tudo o que era difícil...”, observa Vasari.


Pietá, escultura em mármore
Logo, um abade, Jean Bilhères de Lagranles, encomendou a ele uma escultura representando a “Piedade”. Michelangelo esculpiu sua famosa “Pietá” e ele mesmo ficou tão satisfeito com o resultado de seu trabalho que escreveu seu nome no cinto que cinge o peito de Maria, única assinatura feita em suas obras. Sua fama aumenta mais ainda.

Seus amigos de Florença o convidam a voltar para aquela cidade. Um escultor tinha começado uma figura de um gigante em uma pedra e tinha cometido um erro que não dava mais pra corrigir. A pedra enorme estava abandonada. Michelangelo a pediu aos construtores de uma obra, que lhe deram sem nada cobrar. Ele fez um modelo em cera, representando o David da Bíblia bem jovem, com uma pedra na mão. “Fez um tapume de madeira e alvenaria ao redor do mármore e, trabalhando ininterruptamente, sem ser visto por ninguém, terminou tudo perfeitamente”. Estava executada em mármore sua famosa obra David.

David

Nesta época, Leonardo da Vinci, que era 23 anos mais velho que ele,  pintava uma parede na Câmara de Vereadores de Florença. Piero Soderini, um dos administradores da cidade, pediu que Michelangelo pintasse a outra parede.

Em “A História da Arte”, Gombrich enfatiza que quando Michelangelo e Leonardo pintavam ao mesmo tempo essas paredes aconteceu o “momento espetacular na história da arte quando esses dois gigantes competiram pela conquista dos louros e toda a cidade assistiu com excitação ao desenrolar dos preparativos de ambos”.

Logo a fama dele chegou ao papa Júlio II, que lhe pediu a execução de um mausoleu, uma “ obra que em beleza, soberba e invenção superasse toda e qualquer sepultura imperial antiga”. Isso animou Michelangelo, que foi logo para Carrara escolher o melhor mármore. O modelo que ele fez para essa construção era repleto de figuras e adornos complexos. Conseguiu concluir a famosa escultura de Moisés, que faz parte do conjunto. Mas teve que interromper sua obra porque o papa lhe chamou para outra tarefa. Júlio II havia tomado de volta a cidade de Bologna dos Bentivoglio, e quis ter uma estátua que lembrasse esse feito.

Enquanto trabalhava nela, um ourives e pintor foi vê-la. Michelangelo não gostava que o vissem trabalhando, mas fez esse favor por intercessão de uns amigos. Alguém perguntou ao pintor o que ele tinha achado do trabalho de Michelangelo, ao que ele respondeu que a fundição era muito bonita. Michelangelo entendeu que ele elogiava mais o bronze do que seu trabalho e lhe disse: “Vai para o inferno, tu e Cossa, seus dois grandes ignorantes de arte!” Uma senhora da corte de Bologna também foi ver a estátua. Achou-a muito terrível e feroz e observou que ela mais parecia uma maldição do que uma bênção. Resposta de Michelangelo: “Para a maldição foi feita!”
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Paredes internas e teto da Capela Sistina
A pintura da Capela Sistina


O papa Júlio II,
pintura de Rafael
Júlio II era sobrinho do papa Sisto IV que havia construído uma capela dentro do Vaticano, a hoje conhecida Capela Sistina. As paredes laterais já tinham sido pintadas por artistas como Sandro Botticelli, Rafael e Bernini. Por isso pediu a Michelangelo que pintasse o teto da capela, que ainda estava todo branco e acertou de pagar ao artista o valor de 14 mil ducados por todo o trabalho.

No princípio, pelo tamanho da tarefa que tinha pela frente, Michelangelo pensou que podia contratar ajudantes, a quem ele iria ensinar como desenhar e pintar “aos artistas modernos”. Para isso, chamou alguns conhecidos pintores. Já na obra na capela, Michelangelo pediu-lhes que pintassem algumas figuras como amostra de seu trabalho. Não gostou do resultado. Certa manhã, diz Vasari, “resolveu lançar por terra tudo o que tinham feito”. E fechou a porta de capela Sistina para eles, que voltaram para Florença. Michelangelo resolveu pintar tudo sozinho.
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Capela Sistina
Lançou-se ao estudo e ao trabalho de forma incansável, durante quatro anos. Ele “tinha de deitar-se de costas e pintar olhando para cima”, diz Gombrich, e com isso seu corpo sofreu muito e ele ficou tão acostumado a trabalhar deitado e olhando para cima que até mesmo para ler cartas ele tinha que fazer nessa posição. A capela tinha poucas e estreitas janelas e a luminosidade é pouca. Mas quando se olha para cima, diz Gombrich, “o teto é simples e harmonioso”, é “límpido todo o arranjo” e as cores “fortes e luminosas”.

Enquanto ele trabalhava, ninguém podia ver o que fazia. Nem o papa. Mas Júlio II estava muito curioso para ver em que pé ia o trabalho do artista. Pensando que Michelangelo estava fora, pediu que lhes abrissem a porta da Capela. Mas nem deu o primeiro passo lá dentro, quando Michelangelo, que trabalhava em um dos andaimes, começou a atirar-lhe pedaços de madeira nas costas. Júlio II saiu correndo, com raiva e medo, e “fazendo ameaças”. Michelangelo desceu do andaime e entregou a chave da porta da capela para Bramante de Urbino, um arquiteto, e foi-se embora para Florença. Ouviu do papa coisas que o tinham ofendido muito e por isso não voltaria a Roma nunca mais.


Mas, diante dos pedidos de diversas pessoas, e não querendo que uma obra como aquela ficasse inacabada, Júlio II resolveu perdoar Michelangelo e o chamou de volta. Vasari completa que Michelangelo estava “firmemente decidido a não voltar, pois não confiava no papa.” Mas os apelos foram feitos e o pintor resolveu voltar e retomar seu trabalho. O papa, a partir de então, o tratou sempre com “presentes e lisonjas”. Michelangelo terminou a obra.

Sobre essa tarefa artística que exigia um gênio para executá-la, resumiu Giorgio Vasari:

“Ó feliz idade esta nossa, ó bem aventurados artistas, pois assim vos deveis chamar, uma vez que em vosso tempo pudestes aclarar as tenebrosas luzes dos olhos na fonte de tanta claridade e assim enxergar tudo o que era difícil, aplanado por tão maravilhoso e singular artista: sem dúvida a glória de seus esforços vo-lo dá a conhecer e honrar, pois arrancou de vós a venda que tínheis diante dos olhos da mente, tão cheia de trevas, e levantou o véu da falsidade que vos turvava as belíssimas estâncias do intelecto. Por isso, deveis agradecer ao céu e esforçar-vos por imitar Michelangelo em todas as coisas.”

A criação de Adão, detalhe do teto da Capela Sistina pintado por Michelangelo
Completada a pintura do teto e da parede frontal da Capela Sistina, Michelangelo voltou a trabalhar na sepultura, que era mais de seu interesse porque ele sempre se disse escultor e não pintor. Enquanto isso, Júlio II morreu e mais uma vez a obra foi suspensa, por ordem do papa eleito Leão X, que preferia que Michelangelo fizesse a fachada de uma igreja em Florença. Diversos outros artistas desejavam executar essa obra, mas Michelangelo “não quis a participação de ninguém mais”.
Moisés, uma das esculturas do conjunto do
Mausoléu para Júlio II

Morreu Leão X, surgiu o papa Clemente VII, que pediu que Michelangelo desta vez pintasse a fachada da Capela de Sisto. Assim que o artista começou a fazer os esboços da fachada, o papa morreu. Sucedeu-lhe Paulo III, amigo de Michelangelo. Este pediu que a obra fosse concluida, pagando a Michelangelo um salário mensal. Estava quase terminando seu trabalho, quando o papa quis ver a pintura. O mestre de cerimônias que acompanhou o papa reclamou que havia muitos nus. O artista não esqueceu isso e pintou o rosto dele “no inferno, na figura de Minos, entre um monte de diabos”, observa Vasari.

Trabalhando nessa obra, Michelangelo caiu do andaime e machucou a perna. Com muita dor e raiva “não quis que ninguém a tratasse”. Mas ele tinha um amigo médico, Baccio Rontini, que ao saber disso foi até ele. Não saiu de perto do amigo e tratou a perna machucada até que ele ficou curado.

Michelangelo era um trabalhador incansável e levava muito a sério cada obra que lhe era encomendada. Mesmo que tenha tido uma vida tranquila do ponto de vista financeiro, detestava a vida nas cortes e os poucos amigos que tinha eram seus colegas de trabalho e profissão. Ajudava financeiramente seus parentes, mas sempre manteve uma certa distância da família. Sempre que algum artista recorria a ele, Michelangelo “sempre que pôde ajudou”. Vasari completa que ele “nunca criticou as obras alheias, a não ser depois de ter sido espicaçado ou ferido.” Teve dois ou três aprendizes. Nunca se casou. Quando já idoso, aceitou como aprendiz a Francesco di Bernardino d’Amadore, que passou a servir e a cuidar dele.

Detalhe de um dos nus pintados por Michelangelo
na Capela Sistina
Michelangelo Buonarroti era avesso à convivência social e sua dedicação à arte era absoluta. Ele dizia mesmo que conviver pouco com os outros era garantia de viver em paz e que “não gostava de gente que parecia esgoto”, ou seja, “que fala como se tivesse duas bocas”. Vasari conta também que “quando um amigo lhe perguntou o que achava de alguém que fizera réplicas de mármore de algumas das mais celebradas figuras antigas, gabando-se o imitador de que superara em muito os antigos, Michelangelo respondeu: ‘Quem anda atrás dos outros nunca os ultrapassa’.”

Gombrich completa dizendo que Michelangelo, já idoso, “enquanto príncipes e pontífices rivalizavam em ofertas” para ele, ele se tornava cada vez mais ensimesmado e mais exigente consigo mesmo. Escrevia poemas, e em algumas cartas escritas se vê que “quanto mais subia na estima do mundo, mais amargo e intransigente se tornava.” Era amado e temido ao mesmo tempo, pois tinha um temperamento forte e não perdoava ninguém, superior ou inferior.

Giorgio Vasari que, além de historiador da arte, também foi pintor explica que “a arte exige pensamento, solidão e comodidade, e não uma mente que vaga e se desvia no comércio humano. Assim, ele (Michelangelo) não falhou consigo mesmo e com seu trabalho deu grande proveito a todos os artistas”.

Michelangelo morreu em Roma no dia 18 de fevereiro de 1564.


Estudo para o Adão de "A Criação de Adão", da Capela Sistina

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

“Hoje tem espetáculo!”


É Carnaval. De hoje até quarta-feira de cinzas as ruas do Brasil serão os lugares da alegria, da folia, da brincadeira, esquindô, esquindô-lelê...

Quando eu era criança, este período me atraía de forma estranha: eu tinha medo de uma figura misteriosa, mascarada, que invadia minha casa com sua feiúra, correndo atrás de mim que, apavorada, me escondia embaixo da cama, com o coração nas mãos e muito, muito medo dele! Trata-se de uma figura coberta dos pés à cabeça, com uma máscara em geral muito feia e que se chama Papangu. Até que um dia descobri que o papangu era meu tio...

Essa figura folclórica do carnaval nordestino, especialmente pernambucano, parece ter surgido em Pernambuco no século XIX. Mas as origens mais antigas desta figura provavelmente remonta às personagens da Commedia dell'Arte. Que foi um movimento de cultura popular na Itália do século XV, que reunia trupes de artistas que saiam pelas ruas e praças fazendo suas apresentações, um misto de teatro e circo, fazendo rir e chorar os públicos que iam juntando em suas passagens pelas cidades italianas. Satirizavam e ironizavam a vida e os costumes das classes dominantes de então. As peças apresentadas eram improvisadas, mas tinham personagens mais ou menos fixos, que cumpriam certos papeis, como o Pierrot, o Arlequim e a Colombina e seguiam mais ou menos o mesmo roteiro.

Nos tempos do império romano, já existiam figuras fantasiadas, uma espécie de esboço do que seria depois a Commedia dell’Arte, com pequenas farsas (peças, no sentido atual), muitas vezes obscenas seguidas de uma peça trágica. Entravam em cena quatro personagens mascarados: Maccus, o comilão, Bucco, um bêbado imbecil, Pappus, o velho gagá e Dossennus, o corcunda malicioso. O espetáculo era ensaiado, mas sempre havia espaço para alguma improvisação.

Com o tempo e a queda do império romano, esses grupos de artistas populares, que tinham já personagens fixos e carregavam suas lonas, foram se extinguindo aos poucos, com seus espetáculos popularescos obscenos e debochados. Os anfiteatros antigos que eram usados por essas trupes foram se transformando em quarteis com soldados que defendiam o império que se desmoronava.

Mas os espetáculos cômicos populares foram sobrevivendo através de acrobatas, charlatães contadores de causos, malabaristas e vendedores ambulantes. Se apresentavam nas ruas, em frente às igrejas ou aos castelos.

Uma parte desses atores ambulantes fazia representações de histórias bíblicas em frente às igrejas, com o apoio dos padres, com o objetivo de educar o público ignorante e analfabeto. As cenas bíblicas, mesmo que repetidas, eram interpretadas a cada vez com alguma modificação. Mas junto a esses atores também haviam os que preferiam encenar histórias da vida cotidiana.

Ao final do século XV, no norte da Itália, surgiram esses grupos de atores que se baseavam na improvisação e apresentavam personagens vestidos com roupas bem coloridas.

A Commedia dell’Arte (literamente “comédia de artistas profissionais”) fazia apresentações ao ar livre com grupos de atores itinerantes. O enredo era básico, muitas vezes uma história familiar, mas os atores improvisavam o diálogo. Os atores adaptavam esses diálogos ao tipo de público que os assistiam, às vezes juntando comentários maliciosos sobre poderosos locais ou frases de humor picante, muitas vezes censurados. O tema mais comum era o amor: um casal que se amava e não podia ficar junto por algum motivo. Os Innamorati (o casal de atores que fazia os papeis principais) em alguns enredos pediam a ajuda de personagens menos importantes, os servos, chamados em italiano de zanni (a palavra “bobo” deriva daí), que, mais astutos, davam um jeito de juntar os amantes. Talvez Shakespeare se inspirou nesse enredo para criar sua peça "Romeu e Julieta", a história de amor trágica sem final feliz? Pode ser.


O ator francês Charles Deburau
em cena como Pierrot,
fotografado por Nadar em 1855
Nesta história dos Innamorati, todos os personagens usavam máscaras, exceto Pedrolino e Colombina. Pedrolino hoje é conhecido por Pierrot, por causa da influência francesa. As máscaras dos outros personagens, por sua vez, eram influência das comédias romanas antigas. Os zannis (servos) eram os personagens mais subversivos, mais astutos e que aprontavam muitas travessuras. O mais conhecido deles é, ainda hoje, o Arlequim (em italiano Arlecchino).
Arlecchino era caracterizado como um homem pobre, original de Bérgamo, que usava retalhos de roupas em forma de losangos em sua roupa, sinal de sua pobreza. Sua máscara era cheia de verrugas e às vezes tinha a forma de uma cara de macaco, de gato ou de porco. Era um acrobata brilhante, mas também era guloso, mal-educado, analfabeto e ingênuo. Mas tinha uma amada: a Colombina, ou Arlecchina, uma serva inteligente e sensual. O pintor francês Jean Antoine Watteau o retratou como um amante melancólico e apaixonado. Outro pintor, o italiano Giovanni Domenico Tiepolo o pintou em uma apresentação em praça pública.

"Mezzetin", personagem pintado por
Jean Antoine Watteau, óleo sobre tela, 1720
Além destes dois, os mais conhecidos até hoje e tema de diversas canções de nosso carnaval brasileiro, havia também o Pedrolino, nosso Pierrot, como já falamos. Ele tinha uma natureza doce e ingênua, sempre disposto a assumir a culpa dos outros. Sua roupa é branca e seu rosto está tingido com pó branco, às vezes com uma lágrima pintada caindo de um dos olhos. 

Alguns franceses, mais tarde, entre eles o poeta Baudelaire, consideraram o Pierrot como símbolo do artista criativo e solitário.

No começo do século XVIII, sob a influência dos movimentos políticos e sociais na França, os zanni (personagens servos) dos novos comediantes vão assumir uma postura mais altiva, até arrogante, mais autoconfiante, menos subalterna do que na velha Commedia dell’Arte na Itália. Dois deles, em especial Brighela e Arlequim, que antes se reconheciam como pobres e dependentes de seus patrões, agora são mais otimistas em relação a seu futuro e têm esperança de que sua situação um dia vai melhorar. Eles são ainda mais astutos.

No século XIX, a Commedia dell’Arte desaparece de cena. Alguns escritores ainda farão referência a ela, como o poeta Paul Verlaine e Théophile Gautier, que conta a história de uma trupe de comediantes que atravessam a França fazendo suas apresentações.
Representação de Joseph Grimaldi,
o célebre clown do circo inglês do
século XI

O circo, como o conhecemos hoje, surgiu no final do século XVIII na Inglaterra. O Clown inglês - palhaço - tem muita semelhança com os personagens da Commedia dell’Arte: era - e ainda é em nossos circos - um personagem fixo, com roupas excêntricas e maquiagem carregada, que cria situações cômicas e arranca gargalhadas do público.

E lembramos uma música que permeia a infância de muitos de nós, moradores das cidades do interior brasileiro (em Caruaru era assim), quando uma pequena trupe de atores percorria as ruas chamando o povo para o Circo, entre eles o palhaço, cantando:

“- O raio, o sol suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua
- Hoje tem espetáculo?
Tem, sim, senhor!”


Hoje, em nosso carnaval, quando vestimos nossas fantasias, muitas delas de Arlequim, Colombina e Pierrot, rememoramos esta antiga tradição. Para a nossa alegria, e a alheia, quase nada é necessário nestes carnavais: uma máscara, uma fantasia, uma canção simples, alguns passos de dança e a alegria toma conta, num contágio quase universal.

Grande lição do carnaval brasileiro, resgatando a Commedia dell’Arte: vamos rir de tudo, vamos rir de nós mesmos, dar grandes gargalhadas! O futuro é para se rir!

Pintura representando o Arlequim, de Giovanni Domenico Tiepolo, 1755

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Arte e negócios

Nesta primeira semana de fevereiro, a revista Carta Capital dedicou capa e diversos artigos a analisar a situação da cultura e da arte no Brasil e no mundo de hoje. O editorial, escrito por Mino Carta, expõe algumas chagas na cultura dos tempos atuais.

Especialmente o artigo que reproduzo abaixo (que foi digitado por mim a partir da revista), resume muito bem a situação, especialmente das artes plásticas. A autora denuncia, entre outras coisas, a instrumentalização da arte e de artistas pelo neoliberalismo nas últimas décadas. 

Muita gente tem entrado nessa onda: algumas ingenuamente, outras por falta de senso crítico, outras por adesão mesmo. É a velha história faustiana de entregar a alma ao diabo (no caso, o capitalismo).

Recomendo uma leitura atenta.




Um excelente negócio
Nas últimas décadas, a arte tem perdido o jogo como bem público
Revista Carta Capital

Daniela Castro*

A arte joga com o inegociável da vida social. Ela desestabiliza o estabelecido, fricciona, negocia, destrói, revela, ilustra, dialoga com a matriz ideológica que sustenta certa hegemonia de valores. A instituição cultural que abriga tais práticas veicula essa produção de saberes não hegemônicos, expõe aquilo que há nas entrelinhas desses discursos, e assim nos instiga a imaginar outra sociedade, um lugar melhor. Ou seja, a arte é fundamentalmente de cunho social e político.

Não se trata aqui de reduzir o papel da arte, mesmo que assim o pareça na tentativa de defini-la em um parágrafo. Trata-se de dizer que nos últimos anos ela tem perdido o jogo como um “bem público” da vida social para se tornar um “ótimo negócio” dos interesses privados.

Quem dá mais?

Há aqueles que se regozijam com a explosão do mercado de arte e o lugar que ocupa nele a arte brasileira. Novas galerias surgem em São Paulo a cada semana, o mundo conta com mais de 300 bienais, e as inúmeras feiras celebram o interesse crescente pela arte, a julgar pela alta visitação e o alto volume de vendas. No Brasil, centros culturais privados geridos com dinheiro público obtido por incentivos fiscais exibem seus nomes fantasia nas fachadas de prédios imponentes em endereços nobres com orgulho filantrópico.

Precisamos retroceder alguns séculos para entender como tudo isso começou. Desde o primeiro momento em que artistas começaram a viver de sua produção, alguma forma de mercado de arte negociava transações entre indivíduos que detinham poder e outros que detinham talento artístico. O primeiro crítico do mercado da arte, Gerald Reitlinger, atestou em seu clássico “The Economy of Taste” (1961) que o mundo não poderia oferecer enormes quantias de dinheiro à arte até que o mundo obtivesse enormes quantias de dinheiro. Isto é, após a industrialização e financeirização do capitalismo.

Uma caveira de 100 milhões de
dólares, "obra" de Damien Hirst
Quando pinturas históricas e cubistas figuraram juntas nas primeiras IPOs do século XX (do inglês, initial public offering; evento que marca a primeira venda de ações de uma empresa no mercado), atingiram um valor astronômico, pois, subitamente, as pessoas passaram a ver as pinturas não somente como representação de valores históricos, mas de valores futuros. As obras de arte passaram a ser avaliadas não mais como unidades especulativas de medida de valor. Neste século, a caveira de diamantes de Damien Hirst, com custo de produção de 23,6 milhões de dólares, foi arrematada por 100 milhões, o maior valor atribuído a uma obra de artista vivo.

Foi a partir dos anos 1980 que, em resposta à crise de estagflação mundial, o capitalismo dirigido pelas finanças disseminou a sua lógica inexorável do mercado caracterizado pela ausência de regulamentação e voltado para a maximização do valor aos acionistas por todos os cantos do planeta. E a velha novidade é que os executivos do capitalismo financeiro que patrocinam as artes e ocupam assentos em conselhos administrativos de museus são os mesmos acionistas voltados para a maximização do valor a qualquer custo por todos os cantos do planeta.

O caráter filantrópico associado ao patrocínio empresarial à cultura como “bem público” mascara outro tipo de maximização do valor: o do capital simbólico. Tal como os antigos empreendedores, as elites corporativas lutam para consolidar sua posição e seu status dominantes por meio de uma intrincada rede de relações econômicas e sociais. Engajar as companhias no comando das artes e atividades culturais é parte dessa estratégia.



Vik Muniz e seu prato de macarrão simulando
a obra "Medusa" de Caravaggio

Em outras palavras, qualquer tipo de patrocínio corporativo à arte e cultura, seja por meio de doações, seja principalmente por incentivos fiscais, gera lucro. Portanto, não há mera coincidência entre a bilionária ascensão do mercado de arte contemporânea e a desregulamentação do capital financeiro. Pautado por uma economia desterritorializada de especulação do capital, o neoliberalismo encontrou na obra de arte, como mercadoria de especulação sobre valores futuros, sua alma gêmea. Aquilo que se convencionou chamar de “Economia Criativa”, a partir dos anos 2000, foi a bem-sucedida união em comunhão de bens da economia neoliberal com a arte. Uma expressão que designa deliberadamente a privatização da cultura.

Os riscos que esse cenário nos traz já são sentidos. Em primeiro lugar, estamos diante de uma situação em que o antigo modelo de comércio varejista das galerias tem sido substituído por amalgamações globais de larga escala, como a Hauser & Wirth & Zwirner e a Gagosian. A formação de conglomerados no mercado e instituições artísticas (Guggenheim) aponta para a ideia de que a arte está cada vez mais enredada nas tentativas de reassegurar o poder monopolista, berço do capitalismo da propriedade privada, cuja geração de riqueza depende de alegações de singularidade e autenticidade distintivas e irreplicáveis.

Essa afirmação nos coloca um problema grave, pois o discurso gerado pela produção de conhecimento acadêmico e intelectual no campo da arte corre o risco de ser instrumentalizado como commodities do consumo de trabalhos artísticos diante da ascensão da competição e globalização no negócio da arte. Em segundo lugar, a própria criação artística - tradicionalmente vinculada à interiorização, ao tempo lento e à autonomia de pensamento - se vê obrigada a adaptar-se ao ritmo da demanda do mercado.

Mefistófeles está disponível para quem quiser
vender sua alma...
Isso força um esvaziamento crítico de sua produção, a aprisiona a clichês do vocabulário de experiências pessoais comercialmente conformistas e resulta em um enfraquecimento nas relações formais e de conteúdo. O brasileiro Vik Muniz tornou-se mundialmente famoso por suas releituras icônicas da história da arte feitas com macarrão e chocolate. E as expressões da pobreza e do abandono do Estado das classes baixas urbanas, uma vez retratadas pela dupla Os Gêmeos, agora figuram em lenços da nova coleção da Louis Vuitton.

Soma-se a tudo isso a politicagem grotesca que ainda estrutura os mecanismos administrativos da cultura no Brasil. Salvo duas ou três instituições, a nomeação por interesse político-partidários de diretores de instituições peca na avaliação profissional desses indivíduos, que ora usam uma instituição pública em benefício próprio, ora armam-na com interesses privados. O Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, por exemplo, exibiu em 2012 os trabalhos de grafiteiros sob o título Keep Walking Brazil, patrocinados pela Johnnie Walker. A tela com o “maior valor artístico” figuraria na capa do próximo CD de remix de sucessos da Madonna...

Se a produção da arte, como jogo com o inegociável da vida social e desestabilizador de discursos hegemônicos, passa a ser instrumentalizada para a manutenção do poder e status da elite capitalista privada, então estamos diante de um “direcionamento privatizado” das dimensões de fruição e de possibilidade de um real posicionamento crítico perante o mundo.

(* Daniela Castro é formada em História da Arte e Estudo da Cultura Visual pela Universidade de Toronto, Canadá. Atua como escritora e curadora independente.)