sexta-feira, 14 de março de 2014

A dignidade do ser humano

Há alguns dias me veio a vontade de fazer uma cópia da pintura “O tocador de pífano” do artista francês Édouard Manet. Comecei a procurar a imagem em alta resolução e, após baixá-la em meu computador, comecei um processo inicial de estudo da obra. Esta obra esteve exposta aqui em São Paulo no começo do ano passado, na exposição do CCBB sobre os impressionistas (leia sobre isso aqui).


"O tocador de pífano", Édouard Manet, 1866,
óleo sobre tela, 161 x 97 cm, Museu d'Orsay, Paris
Observei, entre outras coisas, que o menino que toca a flauta está disposto em um espaço que não descreve nada, além do próprio menino. Não há objetos, nem um ambiente, ou mesmo uma paisagem onde ele pudesse estar. O espaço é neutro. O foco é o menino com sua flauta.

Esta tela foi recusada no Salão de Outono de Paris de 1867, que ainda vivia sob o domínio da estética acadêmica. Manet apresenta um menino humilde, que parece ser um pouco manco, vestido com o mesmo uniforme usado pelos filhos dos oficiais da Guarda Imperial de Napoelão III, que também usavam calças vermelhas com listras laterais pretas, jaquetas pretas com botões dourados, uma faixa branca na cintura, além do boné. Não bastasse isso, Manet o pintou em tamanho grande, o que gerou escândalos numa época em que as pinturas em formato grande era restrita às pinturas históricas ou de personalidades influentes.

Mas a minha pesquisa me levou ainda para mais longe! Fui procurar entender porque Manet fez esta pintura e descobri que ele havia passado por Madrid um ano antes e tinha ficado absolutamente fascinado por uma tela de Diego Velázquez, no Museu do Prado, intitulada “Pablo de Valladolid”. Esta obra tem 2,10 m de altura por 1,23m. Foi pintada em 1633 e seu modelo era um bobo da corte, desses personagens cômicos cuja profissão era fazer rir aos reis e seus séquitos nos palácios europeus.

Pablo de Valladolid

Diego Velázquez era o pintor oficial da corte do rei Felipe IV, desde os 24 anos de idade. Sua obrigação era retratar não só reis e rainhas, mas também a aristocracia com seus filhos e criados. Como trabalhador da corte, Velázquez convivia com os outros criados do palácio, que incluía anões, palhaços, bobos e toda sorte de homens e mulheres que deveriam servir ao rei e sua família.

Muitos destes eram seres com alguma deformidade física, o que também servia para fazer rir à corte. Isto devia tocar Velázquez muito profundamente, pois pintou vários destes criados do palácio demonstrando uma delicadeza especial no tratamento àqueles que eram deformados fisicamente, dando-lhes sempre um ar de dignidade, mostrando-os em sua humanidade mais terna, de forma bem diferente de outros pintores que também tiveram que pintar esses seres mais humildes, mas simplesmente os retrataram com aparente indiferença.


"Pablo de Valladolid", Diego Velázquez, 1632-1637,
óleo sobre tela, 213,5 cm × 125 cm,
Museu do Prado, Madrid
Pablo de Valladolid se apresenta na tela de Velázquez não como um bobo da corte exatamente, mas mais parece um poeta em pleno ato declamatório. A tela é grande, eu a vi de perto em abril do ano passado em Madrid. Ali há um homem em toda sua dignidade e até pode ter alguma deformidade física, pode ser manco, corcunda… mas isso não chama a atenção na tela pintada por Velázquez. Fiquei muito emocionada frente a esta tela! É uma verdadeira ode ao ser humano, à dignidade humana, à justiça e à igualdade de posição e de tratamento que todos deveriam ter.

Mas isto ainda não é tudo!

“Pablo de Valladolid” é simplesmente a primeira tela pintada no Ocidente cujo fundo não mostra nada a não ser espaço. Diz-se que ela é uma das mais assombrosas realizações da perspectiva aérea velazqueana. Pablo se encontra solidamente apoiado sobre uma superfície criada só com luz e sombra. Velázquez parece querer ter dito: aqui o que importa é este homem e nada deve retirar o foco de atenção em sua figura!

O Espaço

Esta pesquisa, que começou com o menino flautista de Manet e me levou a Pablo de Valladolid, também me encaminhou para uma outra temática: a do tratamento do espaço por esses grandes mestres.

A ideia de “espaço” é um dos grandes conceitos filosóficos e mesmo científicos que nos tem feito pensar desde a Grécia antiga. Platão - filósofo idealista - expõe em seu livro “Timeu” suas ideias sobre o espaço e relaciona o mundo dos corpos (objetos) físicos com formas geométricas. Segundo ele, o universo seria formado por 4 elementos essenciais: água, terra, fogo e ar. Mas já se apoiava na ideia de que o átomo dava forma a tudo o que existe. E criou aquela ideia dos cinco “corpos” (que ficaram depois conhecidos como “corpos platônicos”): a pirâmide, o cubo, o octógono, o dodecaedro e o icosaedro. Ou seja, ele tentava elaborar as primeiras ideias sobre a “ideia” do espaço.

Já Aristóteles ligava a ideia de espaço à ideia de movimento. O espaço é apreendido a partir da noção de “lugar”. Para ele não há o “vazio” e o espaço seria a soma de todos os lugares ocupados por todos os corpos. Mas não vamos entrar muito mais aí no reino da Filosofia, porque isso nos levará a complicações maiores.

Porém, continuemos ainda um pouco falando de “espaço”. Podemos dizer que a característica principal do espaço é aquela de algo que contém as coisas. Temos nossos espaços pessoais, como nossa casa, e nossos espaços coletivos, como templos, museus, escolas… Pronto! Ficamos mais tranquilos quando damos um “nome” a uma ideia tão abstrata quanto é esta do espaço. E por isso este tema tem tido um peso tão grande dentro do pensamento ocidental.

E da Arquitetura, que é a forma criada pelo homem para organizar os espaços, de criar lugares de acolhimento, de proteção da vida.

Que trouxe para a pintura um complexo problema: o da perspectiva. Como representar um espaço tridimensional no espaço bidimensional formado pela tela? Foi somente depois do século XV que as primeiras tentativas foram feitas, começando por desenhar menor aquilo que estava mais longe e maior o que estava mais perto do observador. Foi quando um tal Filippo Brunelleschi (1377-1446) criou o Ponto de Fuga, ou seja, descobriu que todas as linhas podem convergir para um mesmo ponto.

Esses estudos passaram por Leonardo da Vinci, por físicos e filósofos, e no século XVII teve novas contribuições teóricas a partir dos estudos de Isaac Newton e René Descartes. Mas mesmo que tenham sido ideias que fizeram evoluir ainda mais o conceito de espaço, elas ainda ligavam a ideia de espaço à de Natureza e continuam interpretando o Real como ele é percebido pelos nossos sentidos. Hoje as pesquisas científicas avançaram e dentro da ideia de espaço surgiram teses como a Teoria da Relatividade do Espaço e do Tempo, a tese do Big Bang, a Teoria do Caos, a teoria dos Multiversos, etc. Hoje convivemos diariamente com um espaço “virtual” que amplia enormemente nossos espaços pessoais dentro do sistema chamado Web.

Mas vamos voltar para Pablo de Valladolid e tentar fazer com que tudo isto faça algum sentido.

O fundo do quadro de Velázquez fascina, não só por ter sido o primeiro, mas por representar a ideia de espaço em toda a sua abstração, “com a concepção matemática da época”, na observação do matemático espanhol Francisco Martín Casalderrey, um estudioso das relações entre a matemática e a pintura. E acrescenta:

“É o espaço de Descartes e Newton, plasmado genialmente em sua mínima expressão, apenas um pouco de cor, apenas sobras de sua palheta, sem arestas, contínuo, infinito, imóvel, sem relação a nada externo, com a única intenção de ressaltar a figura de Pablo de Valladolid”.

Por isso, quando olhamos para este quadro não vemos somente um homem humilde em sua profissão de fazer rir seus patrões: vemos um homem gigante em sua dignidade, cheio de vida. E vemos pela primeira vez retratado na pintura o Espaço cartesiano que contém esse homem que Velázquez fez grande.

Por isso agora compreendemos toda o fascínio causado em Édouard Manet quando este foi a Madrid e viu esta tela. E na mesma fonte do mestre espanhol, o mestre francês bebeu. Pintou seu pequeno tocador de flauta da mesma forma, dando-lhe dignidade, roupas honradas, porte de grande artista, não só de um simples saltimbanco ou “musicien ambulant”, como os que existiam nas ruas naquela época em Paris.

São duas telas pintadas por dois grandes mestres, nas quais o recado é o mesmo, e que serve para os dias de hoje: todos os seres humanos são iguais e dignos de toda a consideração!

sexta-feira, 7 de março de 2014

Uma trilha sonora para o inferno?

Jardim das Delícias, Hieronymus Bosch, 1503-1504, Museu do Prado, Madrid, Espanha


Retrato de Hieronymus Bosch,
anônimo, pintado por volta de 1575
Hieronymus Bosch, célebre pintor do Renascimento, tem sido citado diversas vezes nos últimos dias depois que uma estudante da Universidade Cristã de Oklahoma, EUA, resolveu decifrar as notas musicais que o pintor inscreveu na bunda de uma de suas figuras contidas no célebre quadro “Jardim das Delícias”.

Amelia Hamrick (nome da estudante) resolveu analisar o tríptico pintado por Bosch e viu que em uma das figuras dispostas no local onde seria o “inferno” havia uma inscrição de notas musicais. Ela resolveu transcrever essas notas e tocá-las para ver o resultado, que pode ser ouvido num vídeo divulgado no Youtube (veja abaixo).


Detalhe do "Jardim das Delícias"
Curiosidades e brincadeiras à parte, o pintor que teria pensado numa música para o reino de Hades, era muito sério. Este quadro - “Jardim das Delícias” - se encontra no acervo do Museu do Prado em Madrid. Foi pintado em 1504 e descreve a história da criação e os reinos dos céus e dos infernos. Mas essa pintura também representa simbolicamente as angústias e superstições das pessoas que viviam na mesma época do pintor holandês. Ele é o maior dos quadros pintados por Bosch e o mais intrigante. É composto de três partes, por isso chamado de tríptico.


Ampliação do detalhe
A primeira parte representa o Paraíso, expresso em cores claras em tons de verde, azul, amarelo e ocre. Tudo parece tranquilo, harmonioso. A parte central é uma verdadeira explosão de cores vivas e de figuras nuas, parecendo mostrar um paraíso um pouco mais voluptuoso. Na terceira parte do tríptico, as cores são mais escuras como preto, azul escuro e cinza, e diversos instrumentos musicais surgem como se fossem instrumentos de tortura, em meio a cenas de crimes, de guerras e de incêndio, a própria imagem do caos. Numa das figurinhas que se encontram embaixo de uma espécie de violoncelo e de uma harpa, Bosch tatuou em sua bunda uma anotação musical.

Vamos ver quem foi esse pintor que há 600 anos apresentava uma pintura tão intrigante.

Seu nome verdadeiro era Jeroen Anthonissen van Aeken e nasceu em 1450 na Holanda, num lugar chamado Hertogenbosch, numa família modesta, cujo pai e avô foram também pintores. Quase todos os membros de sua família foram pintores, incluindo seu irmão mais velho Goessen. Por isso acredita-se que ele tenha recebido sua formação no próprio estúdio do pai ou do avô.


"Julgamento", 1476-1516
Mas Bosch se casou com uma moça da rica aristocracia em 1478, e por causa disso foi aceito como “membro notável” da Confraria de Nossa Senhora, uma sociedade religiosa fundada em 1318, que era dedicada ao culto da Virgem Maria. Bosch vivia então uma vida tranquila, entre sua casa, seu ateliê e a Confraria. Logo seu nome passou a ser conhecido longe de sua terra natal.

Desde 1490 ele passou a assinar seus quadros como “Hieronymus Bosch”, sendo que o “Bosch” seria uma referência à sua terra de nascimento, Hertogenbosch.

A partir de suas leituras da Bíblia e dentro da atmosfera de misticismo que reinava em toda a Idade Média, Bosch abandonou a iconografia tradicional desde o começo de sua pintura para buscar representar coisas que seriam “sacrílegas” e pecaminosas. A danação infernal era um tema de grande inspiração para ele. Mas tudo se misturava, céus e infernos, e ele também não deixou de satirizar a moral da época. Bosch parecia se preocupar com a ideia da condenação eterna para a humanidade que vivia em pecado. Além do “Jardim das Delícias”, onde ele pintou o inferno, fez também o “Os sete pecados capitais” entre 1475-1480.


"Dois monstros", desenho feito por Bosch
com pena e tinta marrona sobre papel
No começo do século XVI, Hieronymus Bosch fez uma viagem à cidade italiana de Veneza, que lhe influencia no sentido de passar a pintar quadros com mais espaços e paisagens, que ele inseriu em suas telas representando a vida de santos. Por volta de 1510 havia surgido uma nova forma de pintar figuras nos quadros: aquelas que apareciam com somente a metade dos corpos, inclusive em primeiro plano.

O estilo de Bosch é basicamente caracterizado por apresentar personagens caricaturizados e figuras que pertenciam ao repertório imaginativo da Idade Média. Seu estilo foi imitado depois por vários artistas, incluindo Pieter Brueghel, o Velho, além de ter influenciado até mesmo a pintura expressionista do começo do século XX, assim como os surrealistas.

Por outro lado, pintores alemães como Martin Schongauer, Matthias Grünewald e Albrecht Dürer influenciaram a obra de Bosch.

Além de sua religiosidade voltada ao culto de Maria, especula-se também que ele teria participado de seitas que se dedicavam à prática do ocultismo. Mas não se tem prova disso porque pouco se conhece sobre sua vida. Mas em alguns de seus quadros se encontram símbolos ligados à alquimia, assim como cenas que parecem ter sido retiradas de seus sonhos ou pesadelos. Vale lembrar também que o ano de 1500 representava para as pessoas do século XV o ano do fim do mundo, quando a besta do Apocalipse seria solta sobre a terra e Deus iria julgar os bons e os maus, enviando estes últimos para queimar eternamente nas chamas do inferno.

O Museu do Prado possui a maior coleção das pinturas de Bosch, pelo fato do rei Filipe II da Espanha ter sido um ávido admirador e colecionador de obras do pintor holandês. Isso é muito curioso, pois parece combinar muito com a cultura e o espírito espanhol que gerou um Miguel de Cervantes e artistas como Francisco Goya, El Greco e mesmo Salvador Dali. No Prado podem ser encontradas obras como “O carro de feno”, “O jardim das Delícias”, “Os sete pecados capitais”. Em nosso Masp - Museu de Arte de São Paulo - podemos ver um suposto estudo seu para o quadro “As tentações de Santo Antão”, cujo original se encontra em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga. Na Espanha, Bosch é também conhecido como “El Bosco”.

Bosch entrou para a história como “criador de demônios” e pintor satírico. Mas sua importância é particularmente importante por ter inovado a pintura de seu tempo, criando novas composições.

Hieronymus Bosch morreu em agosto de 1516.


"As tentações de Santo Antão", Bosch, óleo sobre madeira, entre 1495-1515


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Ouça a música "copiada" por Amelia Hamrick:


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O incansável artista Gustave Doré

Os Saltimbancos, Gustave Doré, 1874, óleo sobre tela
Gustave Doré
Paul Gustave Louis Christophe Doré é o nome completo do artista francês Gustave Doré. O Museu d’Orsay de Paris acabou de abrir uma exposição com uma parte de sua obra que ficará exposta de 12 de fevereiro a 11 de maio de 2014.

Gustave Doré é um dos mais prodigiosos artistas do século XIX. Com apenas 15 anos ele começa sua carreira de caricaturista e e, em seguida, de ilustrador profissional. Ao longo de sua vida ele também desenvolveu-se como pintor, aquarelista, gravador e escultor.

Com seu imenso talento, Doré passou por diversos gêneros que vão da ilustração satírica até às de história, assim como executou grandes e pequenas telas, fez gravuras, esculpiu. Como ilustrador, ele aceitou o desafio de ilustrar nada mais nada menos do que estes grandes autores: Dante Alighieri, Rabelait, Perrault, Miguel de Cervantes, Milton, Shakespeare, Victor Hugo, Balzac, Edgar Allan Poe… Por causa de sua prolífica carreira de ilustrador, Doré tem sido a referência até os dias de hoje não só para ilustradores, mas também para as diversas gerações de artistas dos Quadrinhos.


Ilustração para o "Inferno", de Dante Alighieri
Gustave Doré nasceu em Strasbourg, no nordeste da França, no dia 6 de janeiro de 1832 e faleceu em Paris no dia 23 de janeiro de 1883, de ataque cardíaco, com apenas 51 anos de idade. Seu pai era engenheiro e foi convidado a ir a Bourg-en-Bresse coordenar a construção de uma ponte. Levou junto sua família e matriculou o pequeno Gustave na escola local, onde ele logo cedo chama a atenção pelos seus desenhos e caricaturas. Quando tinha 12 anos, um gráfico local resolveu publicar suas primeiras litografias com o tema “Os Trabalhos de Hércules”. Em seguida, foi orientado a ir para Paris. A partir de 1847 ele começa a estudar no Liceu Carlos Magno. Ao mesmo tempo em que frequentava o colégio, Doré também fazia caricaturas para o “Jornal para rir”. Rapidamente ele se torna conhecido e participa com dois desenhos do Salão de 1848.

Mesmo com a imensa capacidade de trabalho de Doré, nem ele foi imune à acidez dos críticos de quem se considerava uma vítima, especialmente por causa de suas pinturas a óleo.


Ilustração para o "Paraíso Perdido" de Milton
Gustave Doré foi também um grande leitor, especialmente dos grandes autores da literatura que lhe despertavam a imaginação, criando universos próprios, como é o caso da Divina Comedia, de Dante, cujo “Inferno” recebeu suas melhores ilustrações. Mas também se interessou pelas Fábulas de La Fontaine, pelos contos de Perrault, o “Paraíso Perdido” de John Milton, o “Dom Quixote” de Cervantes, o livro de Victor Hugo “Notre Dame de Paris”, assim como diversas peças teatrais de William Shakespeare. E se debruçou sobre a Bíblia, criando para este livro sagrado dos cristãos ilustrações que até hoje povoam as mentes e as lendas da cultura popular.

Uma espécie de herdeiro de outro grande caricaturista, Honoré Daumier, Doré também se dedicou a satirizar a sociedade e a política. Com apenas 16 anos de idade, ele colabora com o “Jornal para rir”, um folhetim satírico que nasceu após a Revolução de 1848. Gustave Doré satirizava a todos e a tudo, desde os políticos, a burguesia, os próprios artistas. Tudo, sob seu desenho, se transformava em algo cômico..


"A prisão de Newgate", gravura
Ele também gostava muito de viajar pela Europa, especialmente para a Espanha e Londres. Na capital do império britânico que na época era a cidade mais rica do mundo ocidental, ele também se volta para a periferia da cidade, onde habitavam aquelas pessoas que viviam sob a mais completa pobreza. Ele fez uma série de desenhos intitulada “Londres: uma peregrinação”, publicada em livro após a guerra de 1870. Nessa série, Doré mostra as contradições de uma cidade próspera da era vitoriana, em que o luxo agredia os miseráveis, e a arquitetura parecia esmagar as pessoas. Lugar de residência da alta sociedade e da aristocracia inglesa, Londres também era o lugar dos pobres que viviam em seus pequenos cubículos, famintos e mal vestidos. O escritor inglês Charles Dickens descreveu muito bem como era esse ambiente naquela cidade rica. Na Espanha, atrás da terra de Dom Quixote, Gustave Doré foi procurar viver suas aventuras, buscando registrar como viviam desde dançarinos até os contrabandistas, mendigos e músicos.


Uma mãe pobre londrina
Por tudo isso Gustave Doré também é considerado um dos grandes cronistas dos anos 1840-1880. Ele expõe as condições sociais em que viviam seus contemporâneos. Uma gravura, como “A prisão de Newgate”, que foi copiada por Van Gogh, é o retrato mais sombrio de como era a vida prisional na época. A guerra de 1870 foi para ele também tema para um grande número de telas. Como exemplo, a tela “O Enigma”, de 1871, que se encontra no Museu d’Orsay. Pintada no calor da guerra franco-prussiana, ela é testemunha dos momentos sombrios em que viviam os franceses.

Doré foi também pintor. Suas telas com temas religiosos parecem apresentar seu próprio catecismo. Também se dedicou à pintura histórica, sempre com seu modo pessoal de ver as coisas, que oscilava entre o olhar romântico e o simbolismo que impregnava sua alma. Mais tarde na vida, ele se dedicou também a pintar paisagens.

Depois dos 45 anos, ele se voltou também para a escultura, de forma autodidata. Sempre demonstrando uma certa característica teatral, que inclusive lhe rende o reconhecimento de ter sido um dos precursores do cinema.

Uma informação bem interessante - e útil - para quem desenha. Gustave Doré se orgulhava de ter feito, até os 33 anos de idade, mais de 100 mil desenhos! E ele mesmo reinvindicava para si o mérito de ser um dos maiores desenhistas de seu século. Alguém contesta?

Abaixo, mais algumas obras desse grande artista:


Ilustração para o livro "Orlando Furioso" de Ludovico Ariosto
O Enigma, gravura feita durante a guerra franco-prussiana
"Estocada", gravura feita na Espanha
O fidalgo Dom Quixote de la Mancha, ilustração para o livro de Miguel de Cervantes

Chapeuzinho Vermelho, dos contos de Charles Perrault