quinta-feira, 19 de março de 2015

Um dia pra comemorar

Parte do meu trabalho de pintura a óleo no Ateliê Contraponto

Hoje o Ateliê Contraponto completa um ano que foi inaugurado, no dia exato do meu aniversário! Dia de festejar, de me alegrar com um sonho que está sendo realizado dia a dia. Neste espaço muito charmoso da Travessa Dona Paula, em São Paulo, tenho produzido bastante, junto com meus parceiros; desenhamos quase diariamente, pintamos e damos aulas de pintura a óleo e desenho. E vamos crescendo!

Este Blog está perto de completar 400 mil acessos! Ele também tem sido um espaço importante onde eu possa colocar minhas ideias, meus estudos, minhas pesquisas sobre Arte. Ele tem sido útil para muita gente também, o que me faz muito alegre, porque é para isso que ele também existe.

Um dia desses, recebi um telefonema de Isabel Rocha Mattoso. Não a conheço pessoalmente, ainda. Mas ela me deu um feedback muito incentivador sobre os textos que produzo e publico neste blog. Ela me enviou um poema, que transcrevo abaixo, exatamente hoje, com tanta coisa para comemorar! Obrigada, Isabel, e a todos os leitores deste blog! Obrigada a todos os meus alunos e todos os amigos do Ateliê Contraponto! Obrigada a todos os meus amigos, por serem quem são não minha vida, cada um do seu jeito!

Longa vida ao Ateliê Contraponto!

Longa vida a este Blog que fala de Arte!

Longa vida para todos nós!



Imagens de um mundo sem fim

(Para Mazé, que sabe pintar!)

 Isabel Mattoso


Minha tela é um papel de qualquer cor
O que a  colore de verdade são palavras
Atrozes, algozes, que me forçam ao limite do que sei
Do que não sei, do que penso saber
Do  que virei a  saber, do que jamais saberei.

O que colore o papel  do poeta é a intuição da forma, da cor, das sombras que avançam sobre a tarde evanescente.
É o saber que caminha nos espíritos muito antes de cada nascimento
E que  continuará  sua jornada muito depois de cada morte
Ele apenas atravessa o  ser e tento capturá-lo neste  breve instante
Para  deixá-lo partir nas letras que se amontoam em palavras que se abraçam e tomam  corpo e alma. 
Minha tela de folhas de papel barato   inveja as pinturas  impressionistas, realistas, hiper realistas,
Os mestres do quatroccento, do barroco, do cubismo, fauvismo, do pontilhismo,do expressionismo, do surrealismo... De qualquer movimento,  de todos os tempos,
As gravuras e esculturas  que arranham , modelam , cinzelam matrizes e recriam o mundo.

A fruta sobre a mesa, a dobra da saia, o olhar  que nos alcança do passado
O brinco de pérola, a girafa em chamas, cada madona
O cristo crucificado, o café em paris, o girassol,
O grito , as mulheres da oceania, as bailarinas, as cerâmicas,
O jardim e a ponte , o onda gigante , o oriente num haikai de imagens  de delicadeza sem fim
Jazz, o volga, o sena, as cavernas e os bisões, o desenho da criança e seu traçado incerto...
Os olhos azuis, as bandeirinhas, o sertão
O touro, a dor, um povo, a guerra, o prazer velado e o descarado
A intimidade devassada, ainda que permitida
As portas do inferno se abriram para que pudéssemos  enxergar  além...

Pobre caneta  de tungstênio,
Ridículo  teclado de plástico preto...
Com que instrumentos banais surgem as palavras
Ainda assim , eu as amo  , as persigo em sonhos e devaneios
As amasso, rasgo,  abraço , professo mil desaforos!
Até que me digam a verdade
Que revelem  o que foi segredado pelo espírito
 Então, como um anelo, a vida em mim se faz real.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Picasso e a modernidade espanhola, no CCBB-SP

Cerca de 90 obras pertencentes ao Museu Reina Sofia, de Madrid, Espanha, estarão sendo expostas a partir do próximo dia 25 de março no Centro Cultural Banco do Brasil, centro de São Paulo. Com ênfase em obras de Pablo Picasso, que mostram como este artista influenciou a moderna arte espanhola, a mostra ficará em cartaz até o dia 8 de junho próximo. A entrada é grátis. 


Pablo Picasso
A exposição mostrará um pouco do caminho de Picasso como artista, até chegar à realização de “Guernica”, à sua relação com outros artistas da arte moderna espanhola, como Gris, Miró, Dalí, Domínguez e Tàpies, entre outros presentes na mostra. Mas os holofotes principais desta exposição estarão focando especialmente as obras de um dos grandes mestres da arte do século XX, Pablo Picasso (leia mais sobre ele aqui).

Essa exposição foi organizada e realizada em colaboração com o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía e a Fundación Mapfre. Exposição realizada inicialmente na Fondazione Palazzo Strozzi, Florença, até o mês de janeiro deste ano. Depois de São Paulo, a mostra segue para o Rio, e poderá ser visitada entre 24 de junho e 7 de setembro. Ao todo, serão apresentados 90 trabalhos – metade deles de autoria do mestre cubista. Entre os quadros de Picasso que integram a mostra, estão “Cabeça de Mulher” (1910), “Busto e Paleta” (1932), “Retrato de Dora Maar” (1939) e “O Pintor e a Modelo” (1963).


O catálogo da mesma
mostra na Itália
A arte moderna espanhola mostra a sensibilidade artística dos espanhois e sua forma especial de ver o mundo, como resquícios de uma visão barroca que vem de muito longe. Isto também encontramos no cinema de Luiz Buñuel e Pedro Almodovar. Qualquer um de nós que tenha tido acesso às criações artísticas espanholas consegue identificar uma linha que unifica desde Velázquez ao próprio Almodóvar, numa coisa que podemos chamar de “uma certa espanholice”, conhecida e personificada muito bem por meu amigo Jeosafá Gonçalvez, que descende daquele povo al igual que yo, que traigo en mi nombre un López que viene de hace mucho tiempo...

A arte espanhola é geralmente vista como uma arte de expressão que beira o drama, nunca se identificando com a visão lógica e racional. Não existem medidas lineares na alma espanhola. O próprio Velázquez não obedecia regras vindas “de fora” e se concentrou em seu próprio jeito de pintar, com pinceladas certeiras e livres. Pintava o rei Filipe, mas também os aleijados, os deformados da Corte. Mesmo as tentativas cubistas de Picasso tinham uma razão de ser que vinham do fundo de um artista muito bem informado sobre seu mundo: estraçalhado por uma Europa em frangalhos que em menos de 30 anos passou por duas guerras sanguinolentas. Picasso atravessou diversas circunstâncias históricas, socio-econômicas e políticas que lhe faziam se redefinir gradualmente como artista.


Naquele período a relação com a realidade era difícil: homens matando homens, milhões morrendo na guerra, de fome por causa da guerra, de doenças por causa da guerra. As vidas de todos reviradas. Na Espanha, para piorar, o fascismo de Francisco Franco criou um mundo de terror para os espanhois, milhares dos quais tiveram que fugir de seu país para não morrer, de morte matada ou de fome. Muitos vieram para o Brasil. 

Na minha última viagem à Madrid, em 2013, voltei no avião ao lado de uma senhora espanhola que beirava os 90 anos de idade. Veio conversando comigo as 10 horas de viagem do vôo Madrid-São Paulo, me contando coisas dos tempos de Franco, o fascista. Entre outras coisas, ela me contou: “Era tudo uma loucura! Os vizinhos, os parentes, as pessoas que a gente conhecia, começaram a nos dar medo. Você não podia usar uma correntinha de ouro no pescoço. Teu vizinho ou teu parente te roubava para comprar comida! Em casa, um pão teria que durar vários dias. Minha mãe partia um pequeno pedaço para cada filho, e muitas vezes ela mesma ficava sem o pedaço dela. Meu pai saia atrás de trabalho e não tinha. Todo mundo vivia de cabeça baixa, a gente falava pouco. O medo era geral. A gente ouvia tiros pelas ruas, andava se esgueirando nas calçadas… Meu pai foi preso duas vezes, suspeito de ser comunista.” Por isso, assim como milhares de espanhois, ela - que esqueci o nome - veio morar no Brasil, para onde estava voltando de férias, para visitar umas amigas. Sozinha, e com quase 90 anos. O Brasil é o país que tem o melhor povo do mundo, disse ela.


Ruínas de Guernica, cidade espanhola,
após o bombardeio nazista
Mas voltemos à exposição do CCBB. O público também poderá ver estudos e esboços que resultaram na obra-prima “Guernica”, um painel que Picasso pintou em 1937, e que representa as atrocidades cometidas pelas ações da direita fascista e nazista durante a Guerra Civil Espanhola, que durou de 1936 a 1939. O painel, de 3,49 metros de altura por 7,76 metros de comprimento expõe os horrores causados pelos aviões da força aérea alemã nazista contra a população da pequena cidade de Guernica. Aliados do general Franco, os alemães fizeram deste ataque um treino para posteriores ações contra os aliados. Foram lançados 300 quilos de bombas contra o povo da pequena cidade dos bascos.

Em 2001 eu parei diante deste painel durante umas duas horas, dentro do Museu Reina Sofia aonde ele se encontra, em Madrid. Minha alma chorava. Aqueles corpos despedaçados, desesperados, e aquele cavalo em agonia, me mostravam um mundo em que não vivi, mas que nunca deve ser esquecido, para que esse horror não mais se repita. Mas me levava também a lembrar do horror da ditadura militar no Brasil - que vivi! - que assassinou e torturou centenas de pessoas como eu. Quando vi “Guernica”, para minha sorte, ele já não estava mais protegido por vidro blindado e eu pude vê-lo frente a frente.


Do lado esquerdo do quadro, junto com uma mãe gritando de dor com seu filho no colo, aparece a cabeça de um bovino. Seria a representação do antigo Minotauro, criatura mítica - da antiga mitologia grega - um ser com a cabeça de um touro e o corpo de um homem, ou seja, oscilando entre o humano e o bestial. Picasso já tinha feito, no começo da década de 1930, uma série de estudos sobre a saga do minotauro, relacionando-o com as famosas Touradas do seu país. Picasso acabou colocando a imagem do monstro como parte de sua representação da tragédia do povo de Guernica.

O quadro parece uma constelação de relações nem sempre apreensíveis. No meio do quadro, há um cavalo que relincha sobre corpos esquartejados. Picasso era comunista, o cavalo representava o povo: mesmo com a cabeça cortada, e com uma expressão de dor, mas não de derrota, o cavalo luta. Acima de sua cabeça, uma luz se acende e um braço estendido apresenta uma lamparina acesa. Por todo lado, corpos esfacelados. Mas há luz, há esperança. Esta é a grande mensagem de Picasso.

Esta exposição do CCBB, portanto, será uma boa oportunidade para ver de perto as obras deste artista espanhol, além dos outros, e em especial, seus estudos para a “Guernica”. Tomara que mais uma vez 400 mil pessoas façam fila para ver uma grande exposição, como o fizeram para ver Ron Mueck. E que a arte dos espanhois sirva para despertar reflexões sobre os momentos em que vivemos nos dias atuais: momentos “peligrosos”, em que forças bestiais subterrâneas resolveram colocar a cabeça para fora… No mundo, e no Brasil.


"Guernica", painel de Pablo Picasso, óleo sobre tela, 1937

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Ron Mueck e a condição humana


Viver nesta São Paulo dos dias de hoje - com os problemas hiperbólicos de uma metrópole repleta por milhões de pessoas - talvez faça com que todos busquemos formas as mais diversas para viver nossa humanidade, relegada ao segundo plano naqueles dias em que todos lutamos para sobreviver. Nestes dias, milhares de paulistanos buscaram as dezenas de blocos para dançar seu carnaval; outros milhares fugiram, como sempre, para o litoral ou o interior; outros, buscaram os parques, os passeios na avenida Paulista, os bares e restaurantes, as salas de cinema, as salas de teatro, os concertos musicais, as exposições de arte.


Porta do Inferno, Rodin, 1880-1890,
Bronze, 635 x 400 cm
Ontem (22/02) foi o último dia para ver a exposição de esculturas hiperrealistas do australiano Ron Mueck. A mostra bateu todos os recordes de público na Pinacoteca do Estado de São Paulo: 402.119 pessoas passaram por lá, desde 14 de novembro passado. Somente a mostra da “Porta do Inferno” do escultor francês Auguste Rodin, em 2001, tinha recebido tanta gente: 300 mil pessoas! Nesta mostra de Mueck, filas se formaram durante todos os dias. Segundo pesquisa feita pela diretoria de Relações Institucionais da Pinacoteca, 80% dos que visitaram esta exposição que terminou ontem, nunca tinham ido a um museu antes. A entrada era gratuita.


Também em São Paulo, o Museu da Imagem e do Som (MIS) recebeu 410 mil pessoas entre o mês de julho passado e o começo deste ano que foram ver uma outra exposição: “Castelo Rá-Tim-Bum - a exposição”.


Tudo isto quer dizer alguma coisa… Ou muita coisa!

Fiquei pensando, durante todos estes dias, após analisar algumas imagens das esculturas de Ron Mueck: não estamos diante de um trabalho de um artista que nos provoca reflexões sobre a nossa condição humana? Para mim, suas figuras solitárias e pensativas, descritas nos mais mínimos detalhes dos pêlos e rugas do corpo humano, me fazem refletir sobre a existência no mundo em que todos vivemos atualmente. Me faz pensar sobre a condição humana, e a minha. Me traz comparações do tipo: como sou pequena em meio à multidão que, por sua vez, é tão miúda diante do sistema dominante! Mas multidão sempre se torna grande em grandes momentos da história...


Esses seres gigantes ou pequenos de Ron Mueck (sempre fora da escala humana) são reconhecidos por todos, independente de origem geográfica ou cultural, como representações de seres humanos. Isso parece óbvio. Mas será que essa representação universal da humanidade mostra o Homem Universal, independente de contexto e história? Ou cada um que vê de perto essas esculturas - enormes ou pequenas - é capaz de passar além da admiração para a contemplação, e se olhar no espelho e refletir sobre sua própria condição? Por que 402 mil pessoas enfrentaram horas de fila para ver um casal de velhos enormes, pensativos, solitários em seu mundo interior? Ou para ver uma mãe gigante com olhar cansado sendo observada pelo seu bebê pendurado no seu colo? Ou um menino grande como um titã, agachado, como se se protegesse contra alguém ou alguma coisa?


São Paulo, São Paulo… Talvez seja o fato de morar em São Paulo o que me inspire esta interpretação. Aqui não vivemos nós todos como estátuas imensas ou minúsculas, trancadas cada uma dentro do seu próprio mundo, querendo buscar saídas e andando ao encontro das multidões que nos arranquem de nossos solipsismos? Encarar quatro horas numa fila? Isso não é nenhum problema, quando buscamos uma saída, uma janela aberta para outros mundos possíveis, outra percepção do mundo e da realidade. Isto a arte pode nos dar! 

Que bom que mais brasileiros estão descobrindo essa forma de se distrair do mundo do trabalho que nos suga até a última gota! E o que é “distrair”? De certa forma é esquecer da rotina, do corre-corre, é buscar o foco em outro ponto, mesmo que seja o de se admirar com a performance técnica do autor das esculturas hiperrealistas… E entre um espasmo de espanto e outro, diante da técnica, mesmo que seja por um segundo apenas, se ver refletido nos olhos ou até na barba mal feita do artista que escancara nossa condição humana… Ou se ver, de repente, como aquele homem completamente nu sentado dentro de um barco velho e lembrar da frase do poeta português que diz que “navegar é preciso, viver não é preciso”...


Durante os últimos dias da exposição, na frente da Pinacoteca, um garoto-ator, contratado por uma organização que cuida de crianças de rua, estava de cócoras - como o garoto de Mueck - sobre um cartaz que perguntava algo como: “você se importa com seres humanos reais?” Talvez alguém, entre os que estavam na fila, tenha se incomodado com a pergunta e se perguntado porque estava ali para ver pessoas de fibra de vidro e silicone, sendo que em nossas ruas sujas do centro temos tantos espécimes reais, velhos e novos, ao gosto do freguês e para quem quiser ver. 

Mas quem quer ver hordas de zumbis noiados de crack, famílias inteiras famintas e imundas, quadrilhas de moleques pardos ameaçadores, bandos de gente sem casa e sem destino? Isso já vemos todos os dias! Isso é o nosso Real, que carregamos todos os dias em meio ao trânsito, aos ônibus insuficientes, às procissões imensas e diárias dentro dos buracos do metrô, representações reais e bem humanas da vida de gado que levamos neste sistema que nos domina… Esta é nossa condição humana atual. Aquela, a do Mueck, é a que nos distrai do dia a dia e nos faz esquecer, um pouco, da vida que corre lá fora; ao mesmo tempo, nos mostra a vida que corre dentro de nós… Arte é para isso.

Arte é para nos fazer pensar. E pensar incomoda. A arte incomoda. Nos tira do mundo pequeno da existência e nos atira no mundo grande da vida. Vida é movimento. Arte é movimento. Movimentos...