sexta-feira, 16 de julho de 2010

Caravaggio, arte e rebeldia

Tocador de alaúde, 1595-96, óleo sobre tela, 94 x 119 cm, Museu Hermitagem, São Petersburgo, Rússia
Neste domingo, 18 de julho de 2010, completaram-se exatos 400 anos da morte de um dos maiores gênios da pintura: Michelangelo Merisi Da Caravaggio, ou simplesmente Caravaggio. Revolucionário em seu tempo, subverteu as regras estéticas impostas pelo Concílio de Trento.

Retrato de Caravaggio, feito por
Ottavio Leoni, 1621
Michelangelo Merisi nasceu no povoado de Caravaggio, na lombardia italiana, em 29/09/1571. Seus pais, Fermo Merisi e Lucia Oratori, morreram cedo. Com apenas 12 anos, foi enviado para estudar no atelier de Simoni Peterzano, que se dizia discípulo de Ticiano (1488-1576). Passou quatro anos vivendo e estudando no atelier desse mestre. Com ele, aprendeu o tratamento das cores segundo o método de Ticiano e o naturalismo da escola pictórica lombarda.

Tendo rompido com seu mestre, parte para Veneza onde observou obras de Ticiano, e a técnica do sfumato de Leonardo da Vinci (1452-1519). A atitude artística do jovem pintor já era de rebeldia contra os convencionalismos de sua época. E o homem Caravaggio também era atraído por brigões, beberrões e vagabundos, freqüentando prostíbulos, jogos e se envolvendo em todo tipo de confusão, inclusive com os sbirri, a polícia. Era um homem agoniado, inquieto.

Mas seu destino era Roma, a cidade que atraía artistas de todo canto, devido à demanda da igreja católica que transformava a cidade num canteiro de obras, com o objetivo de ser o centro da cristandade e do mundo civilizado. Artistas de toda a Europa afluíam à cidade, participando das discussões sobre pintura, estudando os mestres.

Chegando à cidade, foi morar na casa do monsenhor Pandolfo Puzzi, onde viveu em condições tão frugais que apelidou o padre de “monsenhor salada”. Caravaggio perambulava pela cidade, percorrendo ateliês em busca de trabalho. Necessitado, pintava até três quadros por dia, que vendia muito barato.

Amor vincit omnia, 1601-1602,
Museu Staatliche, Berlim, Alemanha
Com o passar do tempo, foi ficando conhecido e, segundo o biógrafo Gilles Lambert, Caravaggio alternava com seus amigos “sessões de trabalho, de festas e de diversões no submundo”. Era amigo de homossexuais e prostitutas, muitos dos quais posaram para ele em seu atelier. Seus modelos eram esses marginalizados, em quem o artista via o desespero da luta cotidiana pela sobrevivência em um ambiente dominado pela miséria. Em plena Roma, a cidade dos papas e cardeais cercados de riqueza e opulência!

No começo, Caravaggio se recusou a pintar quadros com temas religiosos. Mas logo, aconselhado por colegas, viu que essa era uma forma de sobreviver e pintou “São Francisco recebendo os estigmas”, de 1595, considerada a pioneira e a que melhor expressa a estética da arte barroca. Em geral os quadros eram encomendados por ricos burgueses que com eles presenteavam as igrejas, mas muitos de seus quadros foram recusados pelos padres. Nota-se que, nele, a transcendência do divino não surge como um além separado do mundo, mas como realidade da alma humana.


Em maio de 1606, em meio a uma briga de jogo, Caravaggio matou um colega. Condenado à morte, fugiu para Nápoles, depois indo para a ilha de Malta. De lá, fugiu para a Sicília, após agredir um cavaleiro da Ordem de Malta. Cansado, doente, ansioso pelo indulto que o permitiria voltar a Roma para continuar seu trabalho, foi detido no Porto Ercole, por engano, e levado à fortaleza da cidade. Lambert diz que ele foi visto, já livre da prisão, “atarantado, faminto, enfermo, extenuado em busca de um barco” que o levasse de volta a Roma. Estava infectado por feridas e com febre. E assim morreu no dia 18 de julho de 1610, antes de receber a notícia de seu indulto.

Trapaceiros, 1596-98, óleo sobre tela, 94,2x130,9 cm,
Kimbell Art Museum, Texas, EUA
Fora essa vida inquieta e atribulada, Caravaggio foi um pintor original. O aspecto mais notável de sua obra é o tratamento do claro-escuro. Consiste em projetar a luz sobre as figuras com um contraste intenso e brusco com as sombras, o que marca o início de uma das grandes conquistas da pintura barroca. Outra característica primordial de seu estilo é o realismo enfático como reação ao idealismo renascentista. Ao invés de pintar figuras, mesmo as religiosas, com ar solene ou suave, conforme os ditames da igreja, ele as trata com um realismo quase insolente, usando como modelos, o povo das ruas.

Um bom exemplo, entre inúmeros outros, é o quadro O Enterro da Virgem. A figura de Maria foi inspirada no cadáver de uma prostituta afogada no rio Tibre e com o ventre inchado. Maria Madalena foi retratada muitas vezes a partir do modelo de uma jovem amante do pintor, assim como seus vários “João Batista” teve como modelo um rapaz amante de Caravaggio, que era bissexual.

São João Batista, 1599-1600, óleo sobre tela,
132 x 97 cm, Museu do Capitolino, Roma
As personagens principais dos quadros de Caravaggio estão sempre localizados na obscuridade: um cômodo sombrio, um exterior noturno ou simplesmente um fundo escuro. Uma luz poderosa que provém de um ponto da parte superior da tela envolve os personagens à maneira de um projetor de luz sobre uma cena de teatro. O coração da cena é especialmente iluminado e os contrastes produzidos por essa maneira de pintar conferem uma atmosfera dramática ao quadro.

Edward Gombrich, em seu livro História da Arte, diz que Caravaggio queria a verdade, acima de tudo. Por isso não tinha respeito pela beleza idealizada de seu tempo. No quadro São Tomé, os três apóstolos parecem trabalhadores comuns, com os rostos curtidos pelo tempo, testas enrugadas. Ele queria copiar a natureza, fosse ela bela ou feia e fez todo o possível para que as figuras dos textos bíblicos parecessem reais.

Sem Caravaggio não haveria – como diz o crítico de arte Roberto Longhi – “Ribera, Vermeer, La Tour, Rembrandt. E Delacroix, Courbet e Manet teriam pintado de outra maneira”. Poucos artistas têm fascinado a posteridade de artistas e encorajado a ousadia criativa como ele o fez.
Cupido adormecido, 1608, óleo sobre tela, 72 x 105 cm, Palazzo Pitti, Galeria Palatina, Florença, Itália
------------------------------------------

POSTS SOBRE CARAVAGGIO E OS CARAVAGGESCOS:

José de Ribera, caravaggesco

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Elifas, o ilustrador da história recente do Brasil


“Elifas Andreatto foi o grande artista
que soube dar forma ao conteúdo
dos anos difíceis da ditadura”.
(Raimundo Pereira, jornalista)

O Memorial da Resistência de São Paulo, local que guarda a memória dos anos trevosos da ditadura militar brasileira, e que funciona no mesmo local onde estava assentado o esquema repressivo do DOPS paulista, está apresentando até outubro próximo uma exposição do grande artista Elifas Andreatto. A exposição intitulada “As Cores da Resistência” apresenta cerca de 100 trabalhos, entre capas de discos, cartazes de peças teatrais, fotos de jornais e de cenários criados pelo artista nos últimos 45 anos.

Elifas AndreattoEram os idos de 1979/80. Eu era ilustradora do material de propaganda do movimento estudantil de São Luís, e arriscava ilustrações também em materiais de divulgação do movimento de resistência à ditadura naquela época, quando morava na capital do Maranhão. Procurava expressar em meus traços tanto a denúncia da falta de liberdade em meu país, que perseguia artistas, estudantes, intelectuais, gente do povo e militantes políticos, como queria mostrar nas páginas do jornalzinho da Comissão Pastoral da Terra o sofrimento e a miséria do povo, especialmente dos camponeses. Foi quando vi pela primeira vez um trabalho do Elifas Andreatto, o ilustrador-mor de toda a história brasileira do período da ditadura militar.

Era um cartaz da UNE, pelo ensino público e gratuito, de 1979. Olhava dezenas de vezes para aquele menino pobre, mal vestido, quase sem rosto, cujas perninhas magras estavam desenhadas com tanto realismo que imediatamente se podia reconhecer o estado de abandono e miséria em que se encontrava o povo brasileiro. Era o próprio retrato de um menino nordestino, magro, moreno, faminto e sem escola. E tinha sido feito por um artista do Paraná, a quem a partir de então eu passei a admirar e que me inspirou tantas vezes.

Fui ao Memorial da Resistência ver de perto seu trabalho. Nele podemos ver nada mais nada menos do que a história recente do Brasil contada por um artista ex-camponês, ex-operário. Talvez seja por isso que ele soube refletir tão bem o momento histórico que o Brasil atravessava, nos árduos anos do regime militar. Luís Inácio Lula, falando de Elifas, disse que se o artista tivesse continuado na fábrica, seria hoje um peão de respeito. Mas preferiu o pincel e o lápis, e disse Lula, quando ainda nem era Presidente da República: “Por onde passo, em cada canto deste país em que há alguém lutando por um Brasil mais justo, encontro Elifas nas paredes, um elo entre os primeiros embates e a utopia que continuamos perseguindo.”

Elifas nasceu no Paraná. Era filho de uma família de camponeses muito pobres. Tendo vindo para São Paulo no começo da adolescência, Elifas era obrigado a uma jornada diária dura para ajudar a sustentar sua mãe e seus cinco irmãos. Até que foi trabalhar numa fábrica de fósforos na Vila Anastácio, onde os papéis de embrulho, em suas mãos, viravam cenários para os bailes dos operários. Em seguida, seus primeiros trabalhos de ilustração foram feitos no jornalzinho da empresa. Aprendeu tardiamente a ler e escrever, e a crescer dentro do seu trabalho de artista. Fez inúmeras capas de discos, dezenas de cartazes, tanto para o teatro quanto para o movimento de resistência à ditadura, outras inúmeras ilustrações para diversos órgãos, participou da redação dos jornais alternativos Opinião e Movimento, fez capas para a antigamente respeitável revista Veja, capas que fizeram história do design de capas, trabalhando junto com Pedro de Oliveira, também artista gráfico e militante do PCdoB até hoje.

A arte de Elifas Andreatto também reflete profundamente a alma cultural do povo brasileiro, alma presente nos versos de Chico Buarque, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Adoniran Barbosa, e tantos outros artistas da música e do teatro que tiveram o privilégio de contar com o talento ilustrador deste artista. Sua leitura da cultura brasileira é visceral, oscilando entre a suavidade e a sensibilidade de um retrato de Clementina de Jesus, por exemplo, até a agudeza dramática das cores que ele escolheu para denunciar a morte de Wladimir Herzog ou a figura pendurada num pau de arara, denunciando a tortura política nos porões da ditadura. Ou os meninos pobres iluminados por estrelas cadentes em seus tantos cartões de natal. Elifas possui “um olho extraordinário para ver seu povo” – todo o povo brasileiro mesmo, pois brasileiro tem todos os sobrenomes do mundo – e passar para o papel sua alma, sua cor (do povo), seu momento e movimento, diz o cartunista Ziraldo.

Para concluir, vale à pena transcrever um trecho do que Elifas escreveu sobre seu papel de artista, na abertura do livro “Impressões”, que trata de sua vida e obra:

“Esta é a minha satisfação: minha arte se liga à história da minha vida, das vidas assemelhadas à minha, e serve para contar o que eu e pessoas semelhantes a mim entendemos seja o mundo, a justiça e a liberdade. Assim deve ser entendida essa trajetória: ela é a soma das impressões fixadas no papel, ao longo de um caminho que começa no Paraná e que não sei onde termina. O que aprendi como autodidata, coloquei a serviço do que acreditava e jamais traí minhas crenças nem as troquei pela melhor oferta.”

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Pablo Picasso, um pintor à esquerda

La suppliante, guache sobre madeira, 1937
Pablo Ruiz Blasco y Picasso é um dos pintores mais conhecidos no mundo. Mas como muitos de seus quadros (especialmente da fase cubista), ele tem muitas faces, várias delas não tão conhecidas do público. Filiado ao Partido Comunista Francês em 1944, foi um artista comprometido com os acontecimentos do mundo de sua época. É este Picasso que a Tate Gallery, em Liverpool, na Inglaterra, apresentará até 30 de agosto próximo. A exposição intitula-se “Paz e Liberdade”.

Pablo Picasso, nascido em Málaga, Espanha, passou por muitas mudanças durante sua vida. Mudou várias vezes de cidade, mudou da Espanha para a França (onde morreu em abril de 1973), mudou de esposas uma meia dúzia de vezes, mudou de ateliers e de estilos, mudaram suas condições de vida...

O que chama a atenção nesse pintor inquieto, e muitas vezes angustiado, é que cada grande mudança trazia reflexos diretos em seus trabalhos. Assim era ele, desde o começo do século XX, quando os tons de azul invadiram suas telas (período conhecido como a Fase Azul), provocadas pela dor do suicídio de seu grande amigo Casagemas, que levou Picasso a um período de depressão.

Por essa característica muito pessoal de Picasso, em quem os movimentos da vida conduziam seus pincéis, movimentaram-no também em direção ao comprometimento com a política de seu tempo. Em 1944, Pablo Picasso filiou-se ao Partido Comunista Francês, e esse período deixou marcas em sua pintura, como disse um dos curadores de sua exposição atual em Liverpool, Christoph Grunemberg. A filiação ao Partido Comunista foi a oficialização de sua relação com os comunistas, muitos dos quais artistas, e próximos a ele.
Picasso nunca vacilou em suas posições. Em 1936, o General Franco, através de um golpe militar, tomou o poder na Espanha, período que ficou conhecido como dos mais sanguinários da história espanhola. Pablo foi convidado a exercer a direção do Museu do Prado, mas recusou-se a isso, uma vez que se opunha ao golpe e ao governo de Franco. No começo de 1937, o pintor apresentou, em contrapartida, uma série de gravuras em água-forte intituladas “Sonho e mentira de Franco”.

Em 26 de abril de 1937, ocorreu o ataque aéreo nazista contra a cidade de Guernica, no país Basco. Era uma ação provocada pelo próprio Hitler em apoio a Franco. Picasso, então, pintou a “Guernica”, uma de suas obras mais conhecidas e que retratava os horrores vividos pela população da pequena cidade. Conta-se que numa das investidas dos soldados nazistas ao pintor, um deles teria perguntado a Picasso, apontando a imensa tela da “Guernica”: quem pintou este quadro? E Picasso respondeu: “Foram vocês!”

Em 1939, recebe a notícia da morte de sua mãe, mas não pode ir aos funerais por causa da Guerra Civil espanhola. Foi em homenagem a ela que, desde o princípio, Pablo assinava seus quadros com o sobrenome Picasso, herdado de sua mãe.

Durante a II Guerra Mundial, apesar das ameaças nazistas que pairavam também sobre ele, decidiu não sair de Paris. As autoridades alemãs negavam-lhe o direito de expor suas obras, e por algum tempo Picasso deixou de pintar.

Em 1945, já filiado ao Partido Comunista, Picasso empenhou-se em denunciar a violência das guerras capitalistas. Em 1945, pintou “O Ossuário”, denunciando o massacre nazista nos campos de concentração. Em 1951, pintou “Massacre na Coréia”, desta vez se colocando contra a invasão norte-americana. Como membro do PC, participou de diversos congressos internacionais e ganhou o Prêmio Lênin.

Nos anos da Guerra Fria, seus quadros mostram o sofrimento nos conflitos e seu permanente desejo de paz. Voltando seu olhar para a pequena ilha de Cuba, durante a conhecida Crise dos Mísseis, (que representou o auge da Guerra Fria entre EUA e URSS, quando o país soviético enviou mísseis de defesa para a ilha contra as ameaças de invasão norte-americana), Pablo Picasso pintou “O Rapto das Sabinas”, um quadro que representa a matança de mulheres e crianças. O que ocorreria, se uma invasão de soldados ianques tivesse acontecido.

Mesmo se afastando do PC na década de 60, sempre foi fiel às idéias do partido. Picasso já era um homem de posses, adquiridas com a venda de seus trabalhos, e com isso financiou e apoiou diversas causas humanitárias e de esquerda. Proferiu diversas conferências e era uma das personalidades mais importante na luta pela paz, nos tempos da Guerra Fria. É desta época seu famoso desenho de uma pomba branca, que virou símbolo universal da paz.

A exposição em Liverpool mostra mais de 160 quadros, esculturas, desenhos e gravuras, além de fotografias, filmes e documentos. Essa mostra seguirá em setembro para Viena, Áustria. Um dos objetivos dos curadores é mostrar um Picasso diferente do que a mídia costuma apresentar como mulherengo e gênio compulsivo. A ideia é mostrar que por trás desse grande pintor havia um grande homem muito preocupado em dar sua contribuição como artista na resolução dos problemas de seu tempo.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Uma Bienal de Artes que quer ser política


A 29ª Bienal de Artes de São Paulo, que já está em processo de organização, será inaugurada no dia 25 de setembro e estará aberta ao público até o dia 12 de dezembro de 2010, apresentando trabalhos de 148 artistas de várias partes do mundo, com ênfase para os latino-americanos.

Em entrevista coletiva concedida na manhã desta terça-feira, 1º de junho, a equipe de curadores liderada por Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, apresentou aos jornalistas presentes a proposta temática para a próxima Bienal de Artes de São Paulo. A intenção é fazer da 29ª Bienal, uma exposição de artes política.

Moacir dos Anjos – pernambucano do Recife e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco desde 1990 – ressaltou que a ideia de fazer dessa Bienal de 2010 uma exposição que tenha essa conotação política, deve-se ao fato de ser necessário resgatar o entendimento tradicional na relação que sempre existiu entre Arte e Política.

Mas não no sentido, diz ele, de que a arte seja um mero transmissor de conhecimento, como o é a filosofia, a ciência ou a religião. “O que interessa é afirmar a potência da arte como fator que pode criar um conhecimento novo sobre o mundo, de como ela própria pode nos fazer ver o mundo de uma maneira diferente, pela capacidade que a arte tem de fazer política”.

Moacir também salientou, em seu discurso inicial, a necessidade de se rever e ampliar o conceito do que seja contemporâneo, como “não só aquilo que é feito no tempo corrente mas como aquilo que, seja quando for feito, não importa quando tenha sido feito, nos ensina a cerca do nosso mundo.” Contemporâneo, para ele, seria, então, “tudo aquilo que nos faz compreender melhor a complexidade do mundo atual.”

Uma outra intenção dos organizadores desta Bienal também é o de dar uma ênfase maior a artistas brasileiros e latino-americanos, com o objetivo de ampliar o conhecimento da arte que se faz na América Latina, e de como tem se dado essa relação entre arte e política que define a cara do nosso continente. O Brasil desponta como liderança internacional, disse Moacir, e por isso desta vez trazemos tantos artistas brasileiros (praticamente um terço dos expositores).

Agnaldo Farias – o outro curador e atualmente professor da FAU/USP – disse que a preocupação da equipe de curadores não é fazer simplesmente uma exposição, mas dando a ela esse caráter político, não poderia “ser eminentemente contemplativa”, sendo fundamental “privilegiar o encontro, o intercâmbio, o contato entre as pessoas”, além de “recuperar uma tradição que este pais já teve: do debate, do encontro, da troca, e de uma certa celebração da política”.

Citando escritores profundamente ligados à cultura brasileira, como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, Farias disse também que a ideia de recuperar o debate entre arte e política, é mostrar ao público “o poder da linguagem, a força da poesia e da produção artística, com a potência transformadora que ela possui”.

A 29ª Bienal trará este ano 148 artistas, sendo quase a metade de brasileiros e latino-americanos. Além dos espaços destinados à apresentação das obras, a Bienal também contará com seis espaços, que estão sendo chamados de terreiros, usando os 30 mil metros quadrados de área disponíveis no Pavilhão do Ibirapuera.

A ideia dos “Terreiros”, para os organizadores, é dar o tom de celebração da política, “uma vez que o terreiro, na cultura brasileira, é um espaço entre o sagrado e o profano, um espaço da troca, da festa, mas também da resistência”, completou Agnaldo. Citando um samba de Assis Valente que diz “meu povo tão cansado de sofrer, inventou a batucada pra deixar de padecer. Salve o prazer, salve o prazer”, ele disse que a celebração da política, para ele, é a celebração do encontro.

Nesses terreiros acontecerão atividades paralelas à exposição, e terão programação diária que incluirá filmes, música, poesia, dança, performances, debates, com a participação de atores de outras linguagens artísticas, como o teatro, a literatura e o cinema.

A 29ª Bienal também pretende realizar uma aproximação com a Educação, fazendo todo um trabalho que inclua 400 mil alunos da rede pública e privada de ensino, mobilizando para isso 40 mil professores. O objetivo, segundo os curadores, é fazer com que a exposição ultrapasse o prédio físico da Bienal e alcance o maior público possível. Para isso também será inaugurado um site específico para a exposição. Esse projeto congrega vinte e duas instituições de artes de São Paulo e atuará na formação dos educadores que guiarão os visitantes na Mostra.

Os custos de produção desta versão de 2010 foi cotado em cerca de 30 milhões de reais, com o “apoio fundamental” do Ministério da Cultura, disse Heitor Martins, presidente da Fundação Bienal de São Paulo.

Espera-se, desta forma, que a instituição dê a volta por cima do vazio que foi se criando em torno desse evento bi-anual, cujo ápice de crise se deu por ocasião da 28ª Bienal, em 2008, intitulada de Bienal do Vazio. Trazendo como mote um verso de um poema de Jorge de Lima “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”, pode ser que o vazio – e o esvaziamento – da Bienal de Artes de São Paulo, seja preenchido por esse mar político. Espera-se.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Por falar em Grécia...


Nas últimas semanas, a Grécia voltou a ser assunto e a chamar a atenção do mundo. Manifestações de trabalhadores tomaram conta do país, contra a política econômica do governo de George Papandreou, e o FMI. Por trás das câmeras da mídia sedenta de más notícias, divisamos o azul profundo daquele país cercado de mar, de história e de Arte.

Então falemos de Arte.

Há mais de 2.700 anos atrás, na ilha de Creta, entre Atenas e o norte da África, começou a ser desenvolvida uma arte tão refinada e bela, que causou profunda impressão na corte do faraó do Egito e influenciou todo o continente grego. Até então, a arte que se produzia no mundo antigo concentrava-se no Egito, nos oásis dos grandes desertos, onde o sol queima de forma implacável. Os artistas – escultores e pintores – aprendiam as regras de sua arte desde muito cedo. As estátuas sentadas deviam ter as mãos pousadas sobre os joelhos; o corpo dos homens era pintado com um tom de cor mais escuro que o das mulheres; o rosto estava sempre de perfil, mas o olho é visto de frente, assim como o tronco. Ninguém queria e fazia nada diferente disso, e por milhares de anos essas regras foram repetidas.

Mais ao norte, no meio do imenso mar, os cretenses, que não estavam submetidos à vontade do faraó, desenvolveram sua arte de forma mais independente. Nessa ilha, como em outras, habitavam marinheiros aventureiros, que percorriam aqueles mares de canto a canto, trazendo para seus reis piratas a riqueza conquistada em outras plagas. Esses reis, ricos e poderosos, enviavam emissários ao Egito e, com eles, sua arte que impressionou o país dos faraós. Mas quase nada restou da beleza que se produziu naqueles tempos. Mais ou menos por volta do ano 1.000 a.C., tribos bárbaras que vinham da Europa combateram e derrotaram os antigos cretenses. Edward Grombrich, autor do célebre livro “História da Arte”, diz que “somente nas canções que narram essas batalhas sobrevive algo do esplendor e da beleza da arte” que era produzida em meio ao azul profundo dos mares gregos.

Mas a influência já tinha se espalhado, e a arte grega evoluiu, ao longo de sua história, de forma tão densa que simplesmente tem sido, por milhares de anos, a referência e a inspiração para toda a arte que se produziu no ocidente desde então. Por volta do ano 600 a.C., os arquitetos gregos que até então faziam suas construções em madeira, começaram a fazer uso da pedra para erguer seus templos. Mas eles não se satisfaziam em simplesmente erguer pilares quadrados. Eles modelavam cada coluna, e o resultado ainda hoje é visto na Acrópole, cujas colunas dóricas, que se afunilam em direção ao topo, dão uma visão de leveza ao conjunto gigantesco do Partenon.

Mas a grande diferença da arte grega está em outro lugar. Os primeiros artistas ainda pintavam as figuras humanas seguindo algo da regra egípcia antiga. Mas os gregos descobriram o escorço, que é a representação em perspectiva da figura humana, ou de qualquer objeto, pois até então, desenhos e pinturas eram bidimensionais. Foi nesse tempo que o povo grego começou a contestar as antigas tradições e as estórias sobre os deuses. Foi o início da ciência, como forma de observação da natureza do mundo e das coisas, sem preconceitos religiosos.

Os artistas de então trabalhavam para viver, em suas oficinas de escultura e pintura, fazendo seu trabalho com as mãos. Passavam os dias, diz Gombrich, labutando em suas forjas, sujos de fuligem, suados, como os operários das pedreiras e canteiros de obras. Por isso eram tidos como seres de categoria inferior. Mas tinham vida ativa na política de suas cidades, pois a Grécia vivia uma democracia onde até mesmo os humildes trabalhadores tinham direito à participação. No mais alto nível da democracia ateniense, foi onde as artes atingiram seu apogeu. Nessa época, o grande escultor Fídias se destaca com suas estátuas esculpidas no mais refinado mármore, plenas de suavidade e beleza. Já estava longe a crença de que demônios horríveis habitavam nas estátuas, e Fídias esculpia seguindo o modelo humano. Sócrates, o grande filósofo ateniense, que também se aventurara como escultor, dizia que se devia também incluir nas artes pictóricas e escultóricas a representação da vida interior do ser humano, ou seja, que ele não fosse representado na forma antiga, fria e vazia. Desta vez, se incluíam os sentimentos humanos.

Além do profundo estudo de Anatomia. Livres das superstições e caminhando lado a lado com a ciência que então se desenvolvia (teorias sobre a matéria, a matemática, a medicina, etc) os artistas se puseram a explorar a anatomia dos ossos e músculos da figura humana, uma vez que conhecer a forma das coisas era de muita importância para eles. Já se faziam estudos com modelo vivo, e não mais de memória, como era feito no Egito. Além disso, os retratados já não eram quase-deuses, mas pessoas comuns também começaram a ter seus próprios retratos. Escavações feitas na cidade de Olímpia, por exemplo, descobriram inúmeros pedestais sem suas estátuas, que como a maioria era feita de bronze, tudo deve ter sido derretido quando começou a faltar bronze na Idade Média.

Outra grande descoberta do artista grego foi o movimento. Olhando-se para a estátua “Discóbolo” (cerca de 450 a.C) do escultor ateniense Míron, percebe-se o estudo minucioso que ele fez não só da anatomia, mas desta em função do movimento. No final do século V a.C, os artistas gregos já eram mestres, e a arte tinha tomado um tal desenvolvimento que um número crescente de pessoas começou a se interessar por obras de artes. Os gregos discutiam arte, como liam poemas e iam ao teatro. Praxíteles, maior artista desse período, tinha aperfeiçoado de tal modo o seu estudo de anatomia que suas estátuas mostram músculos e ossos sob a pele macia. As estátuas desse período demonstravam como o artista grego tinha atingido a perfeição escultórica baseado no conhecimento adquirido por longos estudos. A arte caminhando junto com a ciência.

Uns dois séculos depois, mais uma novidade. Além da perfeição atingida com a figura humana, os artistas se aventuraram desta vez em retratar guerras, possivelmente inspirando-se em cenas do teatro para obter fortes efeitos no espectador, com cenas de violência, de sofrimento, de agonia. A arte já tinha perdido seus antigos laços com a religião e a magia. A preocupação do artista agora era se desenvolver, vencendo todas as dificuldades de representação. Sabe-se que os mestres mais famosos da arte grega eram pintores, e não escultores. Mas quase nada sobrou da pintura dessa época, a não ser por registros que chegaram até nós, e que testemunham também que os pintores representavam cenas da vida cotidiana, de peças teatrais, de ofícios da época. Na cidade de Pompéia, por exemplo, lá na Itália, que foi sepultada pelas cinzas do monte Vesúvio em 70 d.C, foram descobertos vestígios de que praticamente todas as casas tinham pinturas, colunatas, esculturas e quadros emoldurados.

Também quase nada sobrou das maravilhosas esculturas gregas, a não ser pelas cópias em mármore feitas por artistas romanos, que dão uma ideia do que era a riqueza cultural daquele povo. Quando o cristianismo começou a se alastrar, era ordenado que se destruíssem todas as estátuas e figuras que se encontrassem pela frente, nas guerras de conquista e de pilhagem. Era sagrado dever destruir figuras dos “deuses pagãos”, e as esculturas que podemos ver hoje em alguns museus do mundo são simples reprodução das originais, que foram todas destruídas.

Mas... isso me faz terminar este texto com uma pergunta: não é uma espécie de repetição de ataque à arte figurativa, a atitude tomada pelo sistema de arte contemporâneo que endeusa a abstração conceitual, e deplora a figuração? Não seriam esses os novos modos fundamentalistas?