terça-feira, 10 de agosto de 2010

Impressões culturais de Berlim

Alexanderplatz, Berlim
Berlim, capital da Alemanha, é uma das cidades mais importantes do velho continente europeu. Sua cultura e os altos e baixos de sua história deixaram marcas profundas, não só no povo alemão mas em todo o mundo.

É a segunda vez que venho a esta cidade, localizada ao norte da Alemanha, muito perto da fronteira com a Polônia. Da primeira vez em que vim aqui, era inverno, a cidade estava coberta de neve, as pessoas trancadas dentro de casa. Desta vez, em pleno e quente verão, as pessoas estão nas ruas, nos cafés, nos bares, andando de bicicleta para cima e para baixo. Impressiona perceber, nesta cidade, como é possível viver numa metrópole sem carros. Não há congestionamentos por aqui, quase não há carros nas ruas, se comparo com uma cidade como São Paulo. Berlim é completamente plana e bem sinalizada para o trânsito de pedestres, automóveis e bicicletas. Aqui todos andam de bicicleta, desde senhoras e senhores de idade, até executivos de terno, moças e rapazes, pessoas de todas as idades.

Andando pelas ruas, deparo com a História a cada esquina. Até 1989 a cidade estava dividida pelo famoso Muro de Berlim, que separava a Berlim socialista, da capitalista. Esse muro acabou virando um ícone daqueles que pregaram o fim do socialismo. Mas o socialismo aqui ainda é muito presente, não somente pelos prédios da parte leste da cidade, mas também por murais, esculturas, monumentos e museus. Há algo na alma desta cidade que não execra a experiência socialista, por mais execrável que pareça ter sido por aqui (não esqueçamos que a mídia é a porta-voz principal daqueles que têm muito interesse em condenar as experiências socialistas pelo mundo). Um dos monumentos importantes do jardim vizinho ao Reischtag – o histórico edifício que abrigou governos alemães, inclusive o de Hitler – é o Monumento ao Soldado Soviético, construído em semicírculo, no centro do qual ergue-se uma coluna que sustenta a escultura de um soldado do exército vermelho. Abaixo dele, um brasão bem grande, com a foice e o martelo modelados em ouro. Notei que alguém havia passado por ali e deixado duas coroas de flores naturais, ainda frescas. Duas faixas envolviam as coroas, escritas em língua russa. Esse monumento é uma homenagem aos dois milhões de soldados soviéticos mortos na II Guerra Mundial.

Ao lado do Reischtag, o famoso Portão de Bradenburgo, construído em 1788. O Bradenbourg Tor foi símbolo da paz e depois do nacionalismo alemão. Com a edificação do Muro, ficou do lado oriental, assim como a famosa praça Alexanderplatz e sua torre de TV, que já foi símbolo da Berlim oriental.
Esta cidade possui mais de 150 museus! Além de dezenas de galerias e ateliers de arte. Na famosa Gemaldegalerie estão expostas obras de Caravaggio, Velasquez, Rembrandt, Rubens, Ticiano, Georges de La Tour, Zurbarán e inúmeros outros pintores italianos, flamengos, espanhois e alemães. Na Alte Nationalgalerie, obras de Gustave Courbet, Degas, Manet, Monet, Rodin, além de salas dedicadas aos realistas alemães, que são muitos, entre os quais Adolph Menzel e Max Lieberman. Sem esquecer também o Museu de Kathe Kollwitz, autora de inúmeras gravuras, assim como de esculturas. Kathe Kollwitz era comunista e dedicou seus desenhos ao esforço pessoal e coletivo de denunciar as barbáries cometidas pelo capitalismo. O povo alemão tem orgulho dela, como pode ser comprovado pela preocupação em guardar por aqui a sua memória.

Também temos a praça Rosa Luxemburgo, assim como a avenida Karl Marx e o Museu Bertolt Brecht. Rosa Luxemburgo foi um dos membros mais importantes do Partido Comunista Alemão na década de 1920, assim como Bertolt Brecht foi um escritor comunista que se dedicou a criar peças de teatro, que ainda hoje influenciam diretores e escolas de teatro pelo mundo.

Por aqui também estão acontecendo, neste momento, eventos culturais muito importantes. Na área da música, está em andamento o Festival Internacional de Música de Berlim, cujos locais de apresentação se espalham entre teatros e igrejas. Todas as noites, às 20h, a catedral metropolitana de Berlim apresenta uma parte dessa programação musical, sob o luxo exagerado de sua nave central, que abriga os caixões mortuários de um antigo rei, Frederico I, e de Sofia Charlotte, a rainha. Essa catedral protestante, chamada por aqui de Berliner Dom, foi reconstruída em 1905, em estilo neobarroco e fica localizada ao lado de diversos museus de arte.

Também está acontecendo a Bienal de Artes de Berlim que, por sua importância, tem sido referência para artistas de várias partes do mundo. Além de apresentar obras de arte contemporânea, a Berlin Bienale está homenageando o importante pintor realista alemão do século XIX, Adolf Menzel.

Paralelamente, duas outras exposições estão atraindo muita gente para os museus. Uma retrospectiva da obra da pintora mexicana Frida Khalo, que foi membro do Partido Comunista Mexicano e casada com o famoso pintor Diego Rivera. Os cartazes anunciando a exposição dela estão por toda a cidade, em pontos de ônibus e dentro das estações do metrô. A outra mostra de peso também é uma exposição de esculturas de origem Greco-romanas, que já passou por museu de Nova Iorque. Claro que não são todas originais, mas o detalhe é que essas cópias das esculturas milenares do povo greco-latino foram colorizadas a partir de estudos de arqueólogos e historiadores da arte que afirmam, baseados em provas, que as esculturas de antigamente, mesmo as de mármore, eram coloridas, e não brancas, como as conhecemos.

Andando pelas ruas, de metrô, de trem e de bonde, vemos como esta cidade atrai imigrantes de outras partes do mundo. Por aqui vemos muitos árabes, muçulmanas de burca, africanos, turcos, latino-americanos, japoneses, etc. Uma cidade do mundo, como é São Paulo, centro de atração de imigrantes. E por aqui também há pobres e mendigos. Eles entram no metrô, ou no trem, pedindo esmolas ou vendendo bugigangas, em alemão. Não encontrei com nenhum mendigo ou vendedor que falasse outra língua. Também entram músicos com os mais variados instrumentos, que tocam uma música entre uma estação e outra em troca de uma moeda, de quem quiser dar. Nas ruas também encontramos moradores de rua, loiros, famintos e sujos. A escória da sociedade capitalista, dormindo embaixo dos letreiros da lojas chiques da avenida Kurfunstendam. Também há por aqui os punks, e os esquisitões super tatuados, com cara de bad boy. E pichações pela cidade, como em qualquer metrópole.

Entre os prédios modernos de Postdamer Platz e os antigos edifícios do Mitte, a vida segue em frente por aqui. Neste bairro, o Mitte, centenas de artistas plásticos de várias partes da Europa, criam uma concentração de ateliers de arte. Os artistas vêm para cá atraídos pelos baixos preços dos imóveis da velha Alemanha Oriental, criando aqui, quem sabe, um novo berço para uma nova arte. Com espaço para todos, para todos os estilos, técnicas e tendências.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Caravaggio, arte e rebeldia

Tocador de alaúde, 1595-96, óleo sobre tela, 94 x 119 cm, Museu Hermitagem, São Petersburgo, Rússia
Neste domingo, 18 de julho de 2010, completaram-se exatos 400 anos da morte de um dos maiores gênios da pintura: Michelangelo Merisi Da Caravaggio, ou simplesmente Caravaggio. Revolucionário em seu tempo, subverteu as regras estéticas impostas pelo Concílio de Trento.

Retrato de Caravaggio, feito por
Ottavio Leoni, 1621
Michelangelo Merisi nasceu no povoado de Caravaggio, na lombardia italiana, em 29/09/1571. Seus pais, Fermo Merisi e Lucia Oratori, morreram cedo. Com apenas 12 anos, foi enviado para estudar no atelier de Simoni Peterzano, que se dizia discípulo de Ticiano (1488-1576). Passou quatro anos vivendo e estudando no atelier desse mestre. Com ele, aprendeu o tratamento das cores segundo o método de Ticiano e o naturalismo da escola pictórica lombarda.

Tendo rompido com seu mestre, parte para Veneza onde observou obras de Ticiano, e a técnica do sfumato de Leonardo da Vinci (1452-1519). A atitude artística do jovem pintor já era de rebeldia contra os convencionalismos de sua época. E o homem Caravaggio também era atraído por brigões, beberrões e vagabundos, freqüentando prostíbulos, jogos e se envolvendo em todo tipo de confusão, inclusive com os sbirri, a polícia. Era um homem agoniado, inquieto.

Mas seu destino era Roma, a cidade que atraía artistas de todo canto, devido à demanda da igreja católica que transformava a cidade num canteiro de obras, com o objetivo de ser o centro da cristandade e do mundo civilizado. Artistas de toda a Europa afluíam à cidade, participando das discussões sobre pintura, estudando os mestres.

Chegando à cidade, foi morar na casa do monsenhor Pandolfo Puzzi, onde viveu em condições tão frugais que apelidou o padre de “monsenhor salada”. Caravaggio perambulava pela cidade, percorrendo ateliês em busca de trabalho. Necessitado, pintava até três quadros por dia, que vendia muito barato.

Amor vincit omnia, 1601-1602,
Museu Staatliche, Berlim, Alemanha
Com o passar do tempo, foi ficando conhecido e, segundo o biógrafo Gilles Lambert, Caravaggio alternava com seus amigos “sessões de trabalho, de festas e de diversões no submundo”. Era amigo de homossexuais e prostitutas, muitos dos quais posaram para ele em seu atelier. Seus modelos eram esses marginalizados, em quem o artista via o desespero da luta cotidiana pela sobrevivência em um ambiente dominado pela miséria. Em plena Roma, a cidade dos papas e cardeais cercados de riqueza e opulência!

No começo, Caravaggio se recusou a pintar quadros com temas religiosos. Mas logo, aconselhado por colegas, viu que essa era uma forma de sobreviver e pintou “São Francisco recebendo os estigmas”, de 1595, considerada a pioneira e a que melhor expressa a estética da arte barroca. Em geral os quadros eram encomendados por ricos burgueses que com eles presenteavam as igrejas, mas muitos de seus quadros foram recusados pelos padres. Nota-se que, nele, a transcendência do divino não surge como um além separado do mundo, mas como realidade da alma humana.


Em maio de 1606, em meio a uma briga de jogo, Caravaggio matou um colega. Condenado à morte, fugiu para Nápoles, depois indo para a ilha de Malta. De lá, fugiu para a Sicília, após agredir um cavaleiro da Ordem de Malta. Cansado, doente, ansioso pelo indulto que o permitiria voltar a Roma para continuar seu trabalho, foi detido no Porto Ercole, por engano, e levado à fortaleza da cidade. Lambert diz que ele foi visto, já livre da prisão, “atarantado, faminto, enfermo, extenuado em busca de um barco” que o levasse de volta a Roma. Estava infectado por feridas e com febre. E assim morreu no dia 18 de julho de 1610, antes de receber a notícia de seu indulto.

Trapaceiros, 1596-98, óleo sobre tela, 94,2x130,9 cm,
Kimbell Art Museum, Texas, EUA
Fora essa vida inquieta e atribulada, Caravaggio foi um pintor original. O aspecto mais notável de sua obra é o tratamento do claro-escuro. Consiste em projetar a luz sobre as figuras com um contraste intenso e brusco com as sombras, o que marca o início de uma das grandes conquistas da pintura barroca. Outra característica primordial de seu estilo é o realismo enfático como reação ao idealismo renascentista. Ao invés de pintar figuras, mesmo as religiosas, com ar solene ou suave, conforme os ditames da igreja, ele as trata com um realismo quase insolente, usando como modelos, o povo das ruas.

Um bom exemplo, entre inúmeros outros, é o quadro O Enterro da Virgem. A figura de Maria foi inspirada no cadáver de uma prostituta afogada no rio Tibre e com o ventre inchado. Maria Madalena foi retratada muitas vezes a partir do modelo de uma jovem amante do pintor, assim como seus vários “João Batista” teve como modelo um rapaz amante de Caravaggio, que era bissexual.

São João Batista, 1599-1600, óleo sobre tela,
132 x 97 cm, Museu do Capitolino, Roma
As personagens principais dos quadros de Caravaggio estão sempre localizados na obscuridade: um cômodo sombrio, um exterior noturno ou simplesmente um fundo escuro. Uma luz poderosa que provém de um ponto da parte superior da tela envolve os personagens à maneira de um projetor de luz sobre uma cena de teatro. O coração da cena é especialmente iluminado e os contrastes produzidos por essa maneira de pintar conferem uma atmosfera dramática ao quadro.

Edward Gombrich, em seu livro História da Arte, diz que Caravaggio queria a verdade, acima de tudo. Por isso não tinha respeito pela beleza idealizada de seu tempo. No quadro São Tomé, os três apóstolos parecem trabalhadores comuns, com os rostos curtidos pelo tempo, testas enrugadas. Ele queria copiar a natureza, fosse ela bela ou feia e fez todo o possível para que as figuras dos textos bíblicos parecessem reais.

Sem Caravaggio não haveria – como diz o crítico de arte Roberto Longhi – “Ribera, Vermeer, La Tour, Rembrandt. E Delacroix, Courbet e Manet teriam pintado de outra maneira”. Poucos artistas têm fascinado a posteridade de artistas e encorajado a ousadia criativa como ele o fez.
Cupido adormecido, 1608, óleo sobre tela, 72 x 105 cm, Palazzo Pitti, Galeria Palatina, Florença, Itália
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POSTS SOBRE CARAVAGGIO E OS CARAVAGGESCOS:

José de Ribera, caravaggesco

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Elifas, o ilustrador da história recente do Brasil


“Elifas Andreatto foi o grande artista
que soube dar forma ao conteúdo
dos anos difíceis da ditadura”.
(Raimundo Pereira, jornalista)

O Memorial da Resistência de São Paulo, local que guarda a memória dos anos trevosos da ditadura militar brasileira, e que funciona no mesmo local onde estava assentado o esquema repressivo do DOPS paulista, está apresentando até outubro próximo uma exposição do grande artista Elifas Andreatto. A exposição intitulada “As Cores da Resistência” apresenta cerca de 100 trabalhos, entre capas de discos, cartazes de peças teatrais, fotos de jornais e de cenários criados pelo artista nos últimos 45 anos.

Elifas AndreattoEram os idos de 1979/80. Eu era ilustradora do material de propaganda do movimento estudantil de São Luís, e arriscava ilustrações também em materiais de divulgação do movimento de resistência à ditadura naquela época, quando morava na capital do Maranhão. Procurava expressar em meus traços tanto a denúncia da falta de liberdade em meu país, que perseguia artistas, estudantes, intelectuais, gente do povo e militantes políticos, como queria mostrar nas páginas do jornalzinho da Comissão Pastoral da Terra o sofrimento e a miséria do povo, especialmente dos camponeses. Foi quando vi pela primeira vez um trabalho do Elifas Andreatto, o ilustrador-mor de toda a história brasileira do período da ditadura militar.

Era um cartaz da UNE, pelo ensino público e gratuito, de 1979. Olhava dezenas de vezes para aquele menino pobre, mal vestido, quase sem rosto, cujas perninhas magras estavam desenhadas com tanto realismo que imediatamente se podia reconhecer o estado de abandono e miséria em que se encontrava o povo brasileiro. Era o próprio retrato de um menino nordestino, magro, moreno, faminto e sem escola. E tinha sido feito por um artista do Paraná, a quem a partir de então eu passei a admirar e que me inspirou tantas vezes.

Fui ao Memorial da Resistência ver de perto seu trabalho. Nele podemos ver nada mais nada menos do que a história recente do Brasil contada por um artista ex-camponês, ex-operário. Talvez seja por isso que ele soube refletir tão bem o momento histórico que o Brasil atravessava, nos árduos anos do regime militar. Luís Inácio Lula, falando de Elifas, disse que se o artista tivesse continuado na fábrica, seria hoje um peão de respeito. Mas preferiu o pincel e o lápis, e disse Lula, quando ainda nem era Presidente da República: “Por onde passo, em cada canto deste país em que há alguém lutando por um Brasil mais justo, encontro Elifas nas paredes, um elo entre os primeiros embates e a utopia que continuamos perseguindo.”

Elifas nasceu no Paraná. Era filho de uma família de camponeses muito pobres. Tendo vindo para São Paulo no começo da adolescência, Elifas era obrigado a uma jornada diária dura para ajudar a sustentar sua mãe e seus cinco irmãos. Até que foi trabalhar numa fábrica de fósforos na Vila Anastácio, onde os papéis de embrulho, em suas mãos, viravam cenários para os bailes dos operários. Em seguida, seus primeiros trabalhos de ilustração foram feitos no jornalzinho da empresa. Aprendeu tardiamente a ler e escrever, e a crescer dentro do seu trabalho de artista. Fez inúmeras capas de discos, dezenas de cartazes, tanto para o teatro quanto para o movimento de resistência à ditadura, outras inúmeras ilustrações para diversos órgãos, participou da redação dos jornais alternativos Opinião e Movimento, fez capas para a antigamente respeitável revista Veja, capas que fizeram história do design de capas, trabalhando junto com Pedro de Oliveira, também artista gráfico e militante do PCdoB até hoje.

A arte de Elifas Andreatto também reflete profundamente a alma cultural do povo brasileiro, alma presente nos versos de Chico Buarque, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Adoniran Barbosa, e tantos outros artistas da música e do teatro que tiveram o privilégio de contar com o talento ilustrador deste artista. Sua leitura da cultura brasileira é visceral, oscilando entre a suavidade e a sensibilidade de um retrato de Clementina de Jesus, por exemplo, até a agudeza dramática das cores que ele escolheu para denunciar a morte de Wladimir Herzog ou a figura pendurada num pau de arara, denunciando a tortura política nos porões da ditadura. Ou os meninos pobres iluminados por estrelas cadentes em seus tantos cartões de natal. Elifas possui “um olho extraordinário para ver seu povo” – todo o povo brasileiro mesmo, pois brasileiro tem todos os sobrenomes do mundo – e passar para o papel sua alma, sua cor (do povo), seu momento e movimento, diz o cartunista Ziraldo.

Para concluir, vale à pena transcrever um trecho do que Elifas escreveu sobre seu papel de artista, na abertura do livro “Impressões”, que trata de sua vida e obra:

“Esta é a minha satisfação: minha arte se liga à história da minha vida, das vidas assemelhadas à minha, e serve para contar o que eu e pessoas semelhantes a mim entendemos seja o mundo, a justiça e a liberdade. Assim deve ser entendida essa trajetória: ela é a soma das impressões fixadas no papel, ao longo de um caminho que começa no Paraná e que não sei onde termina. O que aprendi como autodidata, coloquei a serviço do que acreditava e jamais traí minhas crenças nem as troquei pela melhor oferta.”

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Pablo Picasso, um pintor à esquerda

La suppliante, guache sobre madeira, 1937
Pablo Ruiz Blasco y Picasso é um dos pintores mais conhecidos no mundo. Mas como muitos de seus quadros (especialmente da fase cubista), ele tem muitas faces, várias delas não tão conhecidas do público. Filiado ao Partido Comunista Francês em 1944, foi um artista comprometido com os acontecimentos do mundo de sua época. É este Picasso que a Tate Gallery, em Liverpool, na Inglaterra, apresentará até 30 de agosto próximo. A exposição intitula-se “Paz e Liberdade”.

Pablo Picasso, nascido em Málaga, Espanha, passou por muitas mudanças durante sua vida. Mudou várias vezes de cidade, mudou da Espanha para a França (onde morreu em abril de 1973), mudou de esposas uma meia dúzia de vezes, mudou de ateliers e de estilos, mudaram suas condições de vida...

O que chama a atenção nesse pintor inquieto, e muitas vezes angustiado, é que cada grande mudança trazia reflexos diretos em seus trabalhos. Assim era ele, desde o começo do século XX, quando os tons de azul invadiram suas telas (período conhecido como a Fase Azul), provocadas pela dor do suicídio de seu grande amigo Casagemas, que levou Picasso a um período de depressão.

Por essa característica muito pessoal de Picasso, em quem os movimentos da vida conduziam seus pincéis, movimentaram-no também em direção ao comprometimento com a política de seu tempo. Em 1944, Pablo Picasso filiou-se ao Partido Comunista Francês, e esse período deixou marcas em sua pintura, como disse um dos curadores de sua exposição atual em Liverpool, Christoph Grunemberg. A filiação ao Partido Comunista foi a oficialização de sua relação com os comunistas, muitos dos quais artistas, e próximos a ele.
Picasso nunca vacilou em suas posições. Em 1936, o General Franco, através de um golpe militar, tomou o poder na Espanha, período que ficou conhecido como dos mais sanguinários da história espanhola. Pablo foi convidado a exercer a direção do Museu do Prado, mas recusou-se a isso, uma vez que se opunha ao golpe e ao governo de Franco. No começo de 1937, o pintor apresentou, em contrapartida, uma série de gravuras em água-forte intituladas “Sonho e mentira de Franco”.

Em 26 de abril de 1937, ocorreu o ataque aéreo nazista contra a cidade de Guernica, no país Basco. Era uma ação provocada pelo próprio Hitler em apoio a Franco. Picasso, então, pintou a “Guernica”, uma de suas obras mais conhecidas e que retratava os horrores vividos pela população da pequena cidade. Conta-se que numa das investidas dos soldados nazistas ao pintor, um deles teria perguntado a Picasso, apontando a imensa tela da “Guernica”: quem pintou este quadro? E Picasso respondeu: “Foram vocês!”

Em 1939, recebe a notícia da morte de sua mãe, mas não pode ir aos funerais por causa da Guerra Civil espanhola. Foi em homenagem a ela que, desde o princípio, Pablo assinava seus quadros com o sobrenome Picasso, herdado de sua mãe.

Durante a II Guerra Mundial, apesar das ameaças nazistas que pairavam também sobre ele, decidiu não sair de Paris. As autoridades alemãs negavam-lhe o direito de expor suas obras, e por algum tempo Picasso deixou de pintar.

Em 1945, já filiado ao Partido Comunista, Picasso empenhou-se em denunciar a violência das guerras capitalistas. Em 1945, pintou “O Ossuário”, denunciando o massacre nazista nos campos de concentração. Em 1951, pintou “Massacre na Coréia”, desta vez se colocando contra a invasão norte-americana. Como membro do PC, participou de diversos congressos internacionais e ganhou o Prêmio Lênin.

Nos anos da Guerra Fria, seus quadros mostram o sofrimento nos conflitos e seu permanente desejo de paz. Voltando seu olhar para a pequena ilha de Cuba, durante a conhecida Crise dos Mísseis, (que representou o auge da Guerra Fria entre EUA e URSS, quando o país soviético enviou mísseis de defesa para a ilha contra as ameaças de invasão norte-americana), Pablo Picasso pintou “O Rapto das Sabinas”, um quadro que representa a matança de mulheres e crianças. O que ocorreria, se uma invasão de soldados ianques tivesse acontecido.

Mesmo se afastando do PC na década de 60, sempre foi fiel às idéias do partido. Picasso já era um homem de posses, adquiridas com a venda de seus trabalhos, e com isso financiou e apoiou diversas causas humanitárias e de esquerda. Proferiu diversas conferências e era uma das personalidades mais importante na luta pela paz, nos tempos da Guerra Fria. É desta época seu famoso desenho de uma pomba branca, que virou símbolo universal da paz.

A exposição em Liverpool mostra mais de 160 quadros, esculturas, desenhos e gravuras, além de fotografias, filmes e documentos. Essa mostra seguirá em setembro para Viena, Áustria. Um dos objetivos dos curadores é mostrar um Picasso diferente do que a mídia costuma apresentar como mulherengo e gênio compulsivo. A ideia é mostrar que por trás desse grande pintor havia um grande homem muito preocupado em dar sua contribuição como artista na resolução dos problemas de seu tempo.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Uma Bienal de Artes que quer ser política


A 29ª Bienal de Artes de São Paulo, que já está em processo de organização, será inaugurada no dia 25 de setembro e estará aberta ao público até o dia 12 de dezembro de 2010, apresentando trabalhos de 148 artistas de várias partes do mundo, com ênfase para os latino-americanos.

Em entrevista coletiva concedida na manhã desta terça-feira, 1º de junho, a equipe de curadores liderada por Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, apresentou aos jornalistas presentes a proposta temática para a próxima Bienal de Artes de São Paulo. A intenção é fazer da 29ª Bienal, uma exposição de artes política.

Moacir dos Anjos – pernambucano do Recife e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco desde 1990 – ressaltou que a ideia de fazer dessa Bienal de 2010 uma exposição que tenha essa conotação política, deve-se ao fato de ser necessário resgatar o entendimento tradicional na relação que sempre existiu entre Arte e Política.

Mas não no sentido, diz ele, de que a arte seja um mero transmissor de conhecimento, como o é a filosofia, a ciência ou a religião. “O que interessa é afirmar a potência da arte como fator que pode criar um conhecimento novo sobre o mundo, de como ela própria pode nos fazer ver o mundo de uma maneira diferente, pela capacidade que a arte tem de fazer política”.

Moacir também salientou, em seu discurso inicial, a necessidade de se rever e ampliar o conceito do que seja contemporâneo, como “não só aquilo que é feito no tempo corrente mas como aquilo que, seja quando for feito, não importa quando tenha sido feito, nos ensina a cerca do nosso mundo.” Contemporâneo, para ele, seria, então, “tudo aquilo que nos faz compreender melhor a complexidade do mundo atual.”

Uma outra intenção dos organizadores desta Bienal também é o de dar uma ênfase maior a artistas brasileiros e latino-americanos, com o objetivo de ampliar o conhecimento da arte que se faz na América Latina, e de como tem se dado essa relação entre arte e política que define a cara do nosso continente. O Brasil desponta como liderança internacional, disse Moacir, e por isso desta vez trazemos tantos artistas brasileiros (praticamente um terço dos expositores).

Agnaldo Farias – o outro curador e atualmente professor da FAU/USP – disse que a preocupação da equipe de curadores não é fazer simplesmente uma exposição, mas dando a ela esse caráter político, não poderia “ser eminentemente contemplativa”, sendo fundamental “privilegiar o encontro, o intercâmbio, o contato entre as pessoas”, além de “recuperar uma tradição que este pais já teve: do debate, do encontro, da troca, e de uma certa celebração da política”.

Citando escritores profundamente ligados à cultura brasileira, como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, Farias disse também que a ideia de recuperar o debate entre arte e política, é mostrar ao público “o poder da linguagem, a força da poesia e da produção artística, com a potência transformadora que ela possui”.

A 29ª Bienal trará este ano 148 artistas, sendo quase a metade de brasileiros e latino-americanos. Além dos espaços destinados à apresentação das obras, a Bienal também contará com seis espaços, que estão sendo chamados de terreiros, usando os 30 mil metros quadrados de área disponíveis no Pavilhão do Ibirapuera.

A ideia dos “Terreiros”, para os organizadores, é dar o tom de celebração da política, “uma vez que o terreiro, na cultura brasileira, é um espaço entre o sagrado e o profano, um espaço da troca, da festa, mas também da resistência”, completou Agnaldo. Citando um samba de Assis Valente que diz “meu povo tão cansado de sofrer, inventou a batucada pra deixar de padecer. Salve o prazer, salve o prazer”, ele disse que a celebração da política, para ele, é a celebração do encontro.

Nesses terreiros acontecerão atividades paralelas à exposição, e terão programação diária que incluirá filmes, música, poesia, dança, performances, debates, com a participação de atores de outras linguagens artísticas, como o teatro, a literatura e o cinema.

A 29ª Bienal também pretende realizar uma aproximação com a Educação, fazendo todo um trabalho que inclua 400 mil alunos da rede pública e privada de ensino, mobilizando para isso 40 mil professores. O objetivo, segundo os curadores, é fazer com que a exposição ultrapasse o prédio físico da Bienal e alcance o maior público possível. Para isso também será inaugurado um site específico para a exposição. Esse projeto congrega vinte e duas instituições de artes de São Paulo e atuará na formação dos educadores que guiarão os visitantes na Mostra.

Os custos de produção desta versão de 2010 foi cotado em cerca de 30 milhões de reais, com o “apoio fundamental” do Ministério da Cultura, disse Heitor Martins, presidente da Fundação Bienal de São Paulo.

Espera-se, desta forma, que a instituição dê a volta por cima do vazio que foi se criando em torno desse evento bi-anual, cujo ápice de crise se deu por ocasião da 28ª Bienal, em 2008, intitulada de Bienal do Vazio. Trazendo como mote um verso de um poema de Jorge de Lima “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”, pode ser que o vazio – e o esvaziamento – da Bienal de Artes de São Paulo, seja preenchido por esse mar político. Espera-se.