terça-feira, 17 de agosto de 2010

As Bienais de Arte

No dia 25 de setembro próximo, será aberta ao público a 29ª Bienal de Artes de São Paulo. Um pouco antes, em uma série de três dias consecutivos, haverão sessões abertas à imprensa e a convidados especiais, bem de acordo com o glamour que faz o gosto de certa elite. Não importa muito as obras lá expostas, importa bastante  circular pelas rodinhas que se farão, ser visto, ver as tais celebridades.


Estive no final de julho, começo de agosto, em Berlim, Alemanha. Um dos lugares de visita programados era a Bienal de Artes de Berlim. Fui em quatro dos seis prédios que abrigam a Bienal de lá, concentrados basicamente no bairro Kreuzberg. A Bienal alemã neste ano resolveu homenagear o pintor realista alemão do século XIX Adolf Menzel, cujas obras ocupavam grande parte do espaço da Old National Galery.


Mas também fui ver o que se expunha nos outros cinco lugares que formam a Bienal. No primeiro, um prédio velho, deteriorado, mal cuidado, abrigava uma parte bem grande dos expositores. Estranhei ao chegar ao local. Não tem fila??? Incrivelmente vazio, durante toda a minha visita aos quatro andares encontrei com não mais do que dez pessoas! Completamente diferente dos museus que expõem pinturas e esculturas dos mestres, lotados de gente, com filas permanentes nas entradas, os prédios da Bienal estavam vazios, entregues às moscas. Literalmente. Jovens provavelmente ligados ao mundo da arte contemporânea alemã, faziam as vezes dos seguranças, tomavam conta das salas. Sentados, lendo algum livro para passar o tempo, pareciam se surpreender quando avistavam alguém chegando para ver o que estava exposto.


E o que estava exposto mostrava o que o poeta Afonso Romano de Sant'Anna já falara antes sobre as bienais de arte: uma instituição que está falindo. Muitas fotografias, ao invés de pinturas, o que me fez pensar que alguém deve estar sentindo falta de arte figurativa, já que há tanta fotografia - figurativa! - para se ver! Além de fotografias, vídeos, em salas mal instaladas, mostravam pequenos documentários: entrevistas de europeus com pobres negros africanos, como se sua pobreza fosse algo tão exótico que era necessário saber como se vive se sendo tão pobre; cenas de sexo explícito; duas velhinhas brigando; alguma manifestação em algum canto da Europa, como um momento de espetáculo. 

Era isso a Bienal de Berlim. Ah, sim, esqueci... Havia instalações, claro! As famosas e ultra-repetitivas instalações conceituais que nada mais apresentam de novidade, e nem de longe arranham a criatividade inicial de um artista como o russo Vladimir Tatlin, do começo do século XX. Instalações repetitivas, como disse, e um tanto quanto melancólicas. Mas talvez a melancolia fosse minha... realmente Arte, como eu compreendo, não havia naquela Bienal de Artes de Berlim. Que, diga-se enfaticamente, não se interessa (parece) pelo estado glamouroso que tanto excita a elite que vai à Bienal de São Paulo. Em Berlim, pelo menos, a Bienal não tem glamour. Nenhum!


Aqui? Veremos! Muito provavelmente não será muito diferente do que vi pela cidade alemã. A diferença da Bienal de São Paulo é mesmo que ela se torna um encontro de beldades artísticas ou não, repleta de holofotes sobre os curadores, que não se cansam de se apresentar à mídia. Uma Bienal Política? Veremos!

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Kathe Kollwitz, uma artista em Berlim


Kathe Kollwitz, desenhista e gravadora alemã, é uma das mulheres mais importantes da historia alemã do final do século XIX até meados do século XX. A envergadura do seu trabalho faz com que ela seja conhecida e respeitada também fora do seu país, não somente por sua qualidade técnica, com traços de realismo e expressionismo, mas também como artista com preocupação humanitária, retratando os operários desempregados, a fome, a guerra e a pobreza, males do capitalismo.

Conhecendo um pouco de sua história. Kathe nasceu na pequena cidade de Konigsberg, na época pertencente à antiga Prússia, entre Stutgart e Leipzig, em 8 de julho de 1867. Antes dos 20 anos de idade, ela foi estudar desenho em Berlim e Munique. Casa-se, logo em seguida, com o médico Karl Kollwitz, com quem vai morar em Berlim, no bairro Prenzlauer. Em 1892 e 96 nascem, respectivamente, seus dois filhos, Jean e Pierre, o segundo morto no começo da I Guerra Mundial.
Em plena atividade como artista, ela expõe pela primeira vez em 1898 na "Grande Exposição Berlinense de Arte Contemporânea". Em seguida, começa a dar aulas de desenho na Escola de Arte Feminina de Berlim. De 1902 a 1908, Kathe Kollwitz trabalha em uma série de gravuras em água-forte, com o tema "A guerra dos camponeses". Em 1904, ela e seu marido vão morar em Paris por três anos, onde ela aprende as bases das artes plásticas na Academia Julian, além de frequentar o atelier do escultor Auguste Rodin. Após a temporada em Paris, o casal passa o próximo ano em Florença, na Itália, fazendo com que ela também tomasse contato com a arte italiana.
Em 1914, seu filho Pierre é morto na guerra que começava. A morte do filho refletiu-se em seu trabalho, tornando-o ainda mais dramático, fazendo com que a artista expusesse ainda mais suas próprias feridas e as de todos os que sofrem com a guerra, em seus desenhos. A morte, a perda maior, é um dos temas recorrentes em seu trabalho. Ela viveu o trágico período entre o começo do século XX e a II Guerra mundial, onde a morte rondava a todos, especialmente os alemães. Em 1919, Kathe Kollwitz foi nomeada professora da Academia de Belas Artes de Berlim, mas não chegou a dar aulas. Por ser mulher, simplesmente, uma vez que o governo daquela época não aceitava mulheres ocupando cargos públicos.
De 1920 a 1925 ela produz a serie de gravuras com os temas "Guerra" e "Proletariado", além de produzir numerosos cartazes de propaganda da luta dos trabalhadores e do povo pela paz. Em 1927, viaja a Moscou, onde recebe uma atenção especial do governo soviético e dos artistas plásticos russos.
De volta a Berlim, em 1928, ela dirige um atelier de artes gráficas na Academia de Belas Artes. Em 1933, é obrigada a deixar a Academia, por suas posições políticas ao lado dos operários alemães. Em 1936, sai uma interdição oficial, por parte do governo do partido nazista, para ela expor. Durante o período da segunda guerra mundial, entre 1943-44, ela se refugia, já viúva, no povoado de Moritzburg, próximo a Dresden e morre no dia 22 de abril de 1945, com 77 anos de idade.
Estive, semana passada, no Museu Kathe Kollwitz, aqui em Berlim. Funciona numa antiga casa de quatro andares, todos repletos de seu trabalho: desenhos, gravuras, esculturas. Foi uma das experiências de visitas a museus mais marcantes da minha vida. Conheço o trabalho de Kathe Kollwitz desde 1979 quando, ilustradora do movimento estudantil no Maranhão, me deparei com uma gravura dessa artista, da qual jamais esqueci, porque refiz o desenho dela em estêncil para o jornalzinho do DCE-UFMA, impresso em miméografo. Agora o original estava ali, na minha frente!
É uma experiência de contemplação profunda, observar seus traços, seu desenho, seus temas, sua sensibilidade ao ser humano que sofre. Ela era a artista dos mais pobres, dos famintos, dos renegados socialmente. No período do século XX que vai até a II guerra mundial, a Alemanha, onde vivia Kathe Kollwitz, era um país sombrio, o que se refletiu profundamente em seu trabalho. Na década de 1920, apos a I Guerra, os alemães estavam desempregados, famintos, doentes, e com medo. O filme do diretor Ingman Bergman, "O Ovo da Serpente", dá um quadro bem real do que era viver em Berlim naquela época. Vale a pena assisti-lo para compreender melhor como aqueles tempos angustiantes.
Mas uma característica especial salta aos olhos ao observar o trabalho de Kathe Kollwitz: grande parte de suas gravuras usa a imagem da mulher, especialmente da mãe. A mãe, como detentora potencial da vida, aquela que supre e nutre, a que cura e protege. Em várias de suas gravuras há uma mãe, ou grupos de mães unidas, protegendo os corpos de seus filhos com seus próprios corpos. E toda sua energia. Parecia que a artista queria mostrar, através da imagem simbólica da mãe, que a sociedade deveria ser a mãe que agrega, ao invés de dividir; que envolve, ao invés de desprezar; que protege, ao invés de abandonar. Essa sociedade, basta uma olhada rápida para qualquer rua hoje, não é dentro do sistema capitalista.
Talvez por ter perdido seu próprio filho na guerra, haja tantas mães em seus desenhos, defendendo seus filhos da morte. E talvez por ser uma mulher vivendo em uma época dura, ela tantas vezes sentiu necessidade de se auto-retratar, como se tentasse encontrar nos traços do seu rosto algum delineamento coerente. Ou pode ser que tentasse se rever como mulher, diante do próprio espelho, com rosto atualizado, vendo o processo do envelhecimento deixar marcas em sua face.
Mas... por trás dessa aparente tristeza presente em sua obra que escancara as zonas sombrias da vida, existe uma força nos traços, uma força pulsante e latente, a força da vida, da mulher que não se rende, da mãe que não se acomoda, da artista inquieta. Seu trabalho mostra, acima de tudo, a energia da vida, a fortaleza, a determinação e a consciência que inspiram aqueles que se engajam na luta por um mundo mais humano. Tudo isso mostrado dentro de um trabalho que apresenta gravuras, esculturas e desenhos que falam por si só, de tão imensa e tecnicamente belos!

Impressões culturais de Berlim

Alexanderplatz, Berlim
Berlim, capital da Alemanha, é uma das cidades mais importantes do velho continente europeu. Sua cultura e os altos e baixos de sua história deixaram marcas profundas, não só no povo alemão mas em todo o mundo.

É a segunda vez que venho a esta cidade, localizada ao norte da Alemanha, muito perto da fronteira com a Polônia. Da primeira vez em que vim aqui, era inverno, a cidade estava coberta de neve, as pessoas trancadas dentro de casa. Desta vez, em pleno e quente verão, as pessoas estão nas ruas, nos cafés, nos bares, andando de bicicleta para cima e para baixo. Impressiona perceber, nesta cidade, como é possível viver numa metrópole sem carros. Não há congestionamentos por aqui, quase não há carros nas ruas, se comparo com uma cidade como São Paulo. Berlim é completamente plana e bem sinalizada para o trânsito de pedestres, automóveis e bicicletas. Aqui todos andam de bicicleta, desde senhoras e senhores de idade, até executivos de terno, moças e rapazes, pessoas de todas as idades.

Andando pelas ruas, deparo com a História a cada esquina. Até 1989 a cidade estava dividida pelo famoso Muro de Berlim, que separava a Berlim socialista, da capitalista. Esse muro acabou virando um ícone daqueles que pregaram o fim do socialismo. Mas o socialismo aqui ainda é muito presente, não somente pelos prédios da parte leste da cidade, mas também por murais, esculturas, monumentos e museus. Há algo na alma desta cidade que não execra a experiência socialista, por mais execrável que pareça ter sido por aqui (não esqueçamos que a mídia é a porta-voz principal daqueles que têm muito interesse em condenar as experiências socialistas pelo mundo). Um dos monumentos importantes do jardim vizinho ao Reischtag – o histórico edifício que abrigou governos alemães, inclusive o de Hitler – é o Monumento ao Soldado Soviético, construído em semicírculo, no centro do qual ergue-se uma coluna que sustenta a escultura de um soldado do exército vermelho. Abaixo dele, um brasão bem grande, com a foice e o martelo modelados em ouro. Notei que alguém havia passado por ali e deixado duas coroas de flores naturais, ainda frescas. Duas faixas envolviam as coroas, escritas em língua russa. Esse monumento é uma homenagem aos dois milhões de soldados soviéticos mortos na II Guerra Mundial.

Ao lado do Reischtag, o famoso Portão de Bradenburgo, construído em 1788. O Bradenbourg Tor foi símbolo da paz e depois do nacionalismo alemão. Com a edificação do Muro, ficou do lado oriental, assim como a famosa praça Alexanderplatz e sua torre de TV, que já foi símbolo da Berlim oriental.
Esta cidade possui mais de 150 museus! Além de dezenas de galerias e ateliers de arte. Na famosa Gemaldegalerie estão expostas obras de Caravaggio, Velasquez, Rembrandt, Rubens, Ticiano, Georges de La Tour, Zurbarán e inúmeros outros pintores italianos, flamengos, espanhois e alemães. Na Alte Nationalgalerie, obras de Gustave Courbet, Degas, Manet, Monet, Rodin, além de salas dedicadas aos realistas alemães, que são muitos, entre os quais Adolph Menzel e Max Lieberman. Sem esquecer também o Museu de Kathe Kollwitz, autora de inúmeras gravuras, assim como de esculturas. Kathe Kollwitz era comunista e dedicou seus desenhos ao esforço pessoal e coletivo de denunciar as barbáries cometidas pelo capitalismo. O povo alemão tem orgulho dela, como pode ser comprovado pela preocupação em guardar por aqui a sua memória.

Também temos a praça Rosa Luxemburgo, assim como a avenida Karl Marx e o Museu Bertolt Brecht. Rosa Luxemburgo foi um dos membros mais importantes do Partido Comunista Alemão na década de 1920, assim como Bertolt Brecht foi um escritor comunista que se dedicou a criar peças de teatro, que ainda hoje influenciam diretores e escolas de teatro pelo mundo.

Por aqui também estão acontecendo, neste momento, eventos culturais muito importantes. Na área da música, está em andamento o Festival Internacional de Música de Berlim, cujos locais de apresentação se espalham entre teatros e igrejas. Todas as noites, às 20h, a catedral metropolitana de Berlim apresenta uma parte dessa programação musical, sob o luxo exagerado de sua nave central, que abriga os caixões mortuários de um antigo rei, Frederico I, e de Sofia Charlotte, a rainha. Essa catedral protestante, chamada por aqui de Berliner Dom, foi reconstruída em 1905, em estilo neobarroco e fica localizada ao lado de diversos museus de arte.

Também está acontecendo a Bienal de Artes de Berlim que, por sua importância, tem sido referência para artistas de várias partes do mundo. Além de apresentar obras de arte contemporânea, a Berlin Bienale está homenageando o importante pintor realista alemão do século XIX, Adolf Menzel.

Paralelamente, duas outras exposições estão atraindo muita gente para os museus. Uma retrospectiva da obra da pintora mexicana Frida Khalo, que foi membro do Partido Comunista Mexicano e casada com o famoso pintor Diego Rivera. Os cartazes anunciando a exposição dela estão por toda a cidade, em pontos de ônibus e dentro das estações do metrô. A outra mostra de peso também é uma exposição de esculturas de origem Greco-romanas, que já passou por museu de Nova Iorque. Claro que não são todas originais, mas o detalhe é que essas cópias das esculturas milenares do povo greco-latino foram colorizadas a partir de estudos de arqueólogos e historiadores da arte que afirmam, baseados em provas, que as esculturas de antigamente, mesmo as de mármore, eram coloridas, e não brancas, como as conhecemos.

Andando pelas ruas, de metrô, de trem e de bonde, vemos como esta cidade atrai imigrantes de outras partes do mundo. Por aqui vemos muitos árabes, muçulmanas de burca, africanos, turcos, latino-americanos, japoneses, etc. Uma cidade do mundo, como é São Paulo, centro de atração de imigrantes. E por aqui também há pobres e mendigos. Eles entram no metrô, ou no trem, pedindo esmolas ou vendendo bugigangas, em alemão. Não encontrei com nenhum mendigo ou vendedor que falasse outra língua. Também entram músicos com os mais variados instrumentos, que tocam uma música entre uma estação e outra em troca de uma moeda, de quem quiser dar. Nas ruas também encontramos moradores de rua, loiros, famintos e sujos. A escória da sociedade capitalista, dormindo embaixo dos letreiros da lojas chiques da avenida Kurfunstendam. Também há por aqui os punks, e os esquisitões super tatuados, com cara de bad boy. E pichações pela cidade, como em qualquer metrópole.

Entre os prédios modernos de Postdamer Platz e os antigos edifícios do Mitte, a vida segue em frente por aqui. Neste bairro, o Mitte, centenas de artistas plásticos de várias partes da Europa, criam uma concentração de ateliers de arte. Os artistas vêm para cá atraídos pelos baixos preços dos imóveis da velha Alemanha Oriental, criando aqui, quem sabe, um novo berço para uma nova arte. Com espaço para todos, para todos os estilos, técnicas e tendências.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Caravaggio, arte e rebeldia

Tocador de alaúde, 1595-96, óleo sobre tela, 94 x 119 cm, Museu Hermitagem, São Petersburgo, Rússia
Neste domingo, 18 de julho de 2010, completaram-se exatos 400 anos da morte de um dos maiores gênios da pintura: Michelangelo Merisi Da Caravaggio, ou simplesmente Caravaggio. Revolucionário em seu tempo, subverteu as regras estéticas impostas pelo Concílio de Trento.

Retrato de Caravaggio, feito por
Ottavio Leoni, 1621
Michelangelo Merisi nasceu no povoado de Caravaggio, na lombardia italiana, em 29/09/1571. Seus pais, Fermo Merisi e Lucia Oratori, morreram cedo. Com apenas 12 anos, foi enviado para estudar no atelier de Simoni Peterzano, que se dizia discípulo de Ticiano (1488-1576). Passou quatro anos vivendo e estudando no atelier desse mestre. Com ele, aprendeu o tratamento das cores segundo o método de Ticiano e o naturalismo da escola pictórica lombarda.

Tendo rompido com seu mestre, parte para Veneza onde observou obras de Ticiano, e a técnica do sfumato de Leonardo da Vinci (1452-1519). A atitude artística do jovem pintor já era de rebeldia contra os convencionalismos de sua época. E o homem Caravaggio também era atraído por brigões, beberrões e vagabundos, freqüentando prostíbulos, jogos e se envolvendo em todo tipo de confusão, inclusive com os sbirri, a polícia. Era um homem agoniado, inquieto.

Mas seu destino era Roma, a cidade que atraía artistas de todo canto, devido à demanda da igreja católica que transformava a cidade num canteiro de obras, com o objetivo de ser o centro da cristandade e do mundo civilizado. Artistas de toda a Europa afluíam à cidade, participando das discussões sobre pintura, estudando os mestres.

Chegando à cidade, foi morar na casa do monsenhor Pandolfo Puzzi, onde viveu em condições tão frugais que apelidou o padre de “monsenhor salada”. Caravaggio perambulava pela cidade, percorrendo ateliês em busca de trabalho. Necessitado, pintava até três quadros por dia, que vendia muito barato.

Amor vincit omnia, 1601-1602,
Museu Staatliche, Berlim, Alemanha
Com o passar do tempo, foi ficando conhecido e, segundo o biógrafo Gilles Lambert, Caravaggio alternava com seus amigos “sessões de trabalho, de festas e de diversões no submundo”. Era amigo de homossexuais e prostitutas, muitos dos quais posaram para ele em seu atelier. Seus modelos eram esses marginalizados, em quem o artista via o desespero da luta cotidiana pela sobrevivência em um ambiente dominado pela miséria. Em plena Roma, a cidade dos papas e cardeais cercados de riqueza e opulência!

No começo, Caravaggio se recusou a pintar quadros com temas religiosos. Mas logo, aconselhado por colegas, viu que essa era uma forma de sobreviver e pintou “São Francisco recebendo os estigmas”, de 1595, considerada a pioneira e a que melhor expressa a estética da arte barroca. Em geral os quadros eram encomendados por ricos burgueses que com eles presenteavam as igrejas, mas muitos de seus quadros foram recusados pelos padres. Nota-se que, nele, a transcendência do divino não surge como um além separado do mundo, mas como realidade da alma humana.


Em maio de 1606, em meio a uma briga de jogo, Caravaggio matou um colega. Condenado à morte, fugiu para Nápoles, depois indo para a ilha de Malta. De lá, fugiu para a Sicília, após agredir um cavaleiro da Ordem de Malta. Cansado, doente, ansioso pelo indulto que o permitiria voltar a Roma para continuar seu trabalho, foi detido no Porto Ercole, por engano, e levado à fortaleza da cidade. Lambert diz que ele foi visto, já livre da prisão, “atarantado, faminto, enfermo, extenuado em busca de um barco” que o levasse de volta a Roma. Estava infectado por feridas e com febre. E assim morreu no dia 18 de julho de 1610, antes de receber a notícia de seu indulto.

Trapaceiros, 1596-98, óleo sobre tela, 94,2x130,9 cm,
Kimbell Art Museum, Texas, EUA
Fora essa vida inquieta e atribulada, Caravaggio foi um pintor original. O aspecto mais notável de sua obra é o tratamento do claro-escuro. Consiste em projetar a luz sobre as figuras com um contraste intenso e brusco com as sombras, o que marca o início de uma das grandes conquistas da pintura barroca. Outra característica primordial de seu estilo é o realismo enfático como reação ao idealismo renascentista. Ao invés de pintar figuras, mesmo as religiosas, com ar solene ou suave, conforme os ditames da igreja, ele as trata com um realismo quase insolente, usando como modelos, o povo das ruas.

Um bom exemplo, entre inúmeros outros, é o quadro O Enterro da Virgem. A figura de Maria foi inspirada no cadáver de uma prostituta afogada no rio Tibre e com o ventre inchado. Maria Madalena foi retratada muitas vezes a partir do modelo de uma jovem amante do pintor, assim como seus vários “João Batista” teve como modelo um rapaz amante de Caravaggio, que era bissexual.

São João Batista, 1599-1600, óleo sobre tela,
132 x 97 cm, Museu do Capitolino, Roma
As personagens principais dos quadros de Caravaggio estão sempre localizados na obscuridade: um cômodo sombrio, um exterior noturno ou simplesmente um fundo escuro. Uma luz poderosa que provém de um ponto da parte superior da tela envolve os personagens à maneira de um projetor de luz sobre uma cena de teatro. O coração da cena é especialmente iluminado e os contrastes produzidos por essa maneira de pintar conferem uma atmosfera dramática ao quadro.

Edward Gombrich, em seu livro História da Arte, diz que Caravaggio queria a verdade, acima de tudo. Por isso não tinha respeito pela beleza idealizada de seu tempo. No quadro São Tomé, os três apóstolos parecem trabalhadores comuns, com os rostos curtidos pelo tempo, testas enrugadas. Ele queria copiar a natureza, fosse ela bela ou feia e fez todo o possível para que as figuras dos textos bíblicos parecessem reais.

Sem Caravaggio não haveria – como diz o crítico de arte Roberto Longhi – “Ribera, Vermeer, La Tour, Rembrandt. E Delacroix, Courbet e Manet teriam pintado de outra maneira”. Poucos artistas têm fascinado a posteridade de artistas e encorajado a ousadia criativa como ele o fez.
Cupido adormecido, 1608, óleo sobre tela, 72 x 105 cm, Palazzo Pitti, Galeria Palatina, Florença, Itália
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POSTS SOBRE CARAVAGGIO E OS CARAVAGGESCOS:

José de Ribera, caravaggesco

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Elifas, o ilustrador da história recente do Brasil


“Elifas Andreatto foi o grande artista
que soube dar forma ao conteúdo
dos anos difíceis da ditadura”.
(Raimundo Pereira, jornalista)

O Memorial da Resistência de São Paulo, local que guarda a memória dos anos trevosos da ditadura militar brasileira, e que funciona no mesmo local onde estava assentado o esquema repressivo do DOPS paulista, está apresentando até outubro próximo uma exposição do grande artista Elifas Andreatto. A exposição intitulada “As Cores da Resistência” apresenta cerca de 100 trabalhos, entre capas de discos, cartazes de peças teatrais, fotos de jornais e de cenários criados pelo artista nos últimos 45 anos.

Elifas AndreattoEram os idos de 1979/80. Eu era ilustradora do material de propaganda do movimento estudantil de São Luís, e arriscava ilustrações também em materiais de divulgação do movimento de resistência à ditadura naquela época, quando morava na capital do Maranhão. Procurava expressar em meus traços tanto a denúncia da falta de liberdade em meu país, que perseguia artistas, estudantes, intelectuais, gente do povo e militantes políticos, como queria mostrar nas páginas do jornalzinho da Comissão Pastoral da Terra o sofrimento e a miséria do povo, especialmente dos camponeses. Foi quando vi pela primeira vez um trabalho do Elifas Andreatto, o ilustrador-mor de toda a história brasileira do período da ditadura militar.

Era um cartaz da UNE, pelo ensino público e gratuito, de 1979. Olhava dezenas de vezes para aquele menino pobre, mal vestido, quase sem rosto, cujas perninhas magras estavam desenhadas com tanto realismo que imediatamente se podia reconhecer o estado de abandono e miséria em que se encontrava o povo brasileiro. Era o próprio retrato de um menino nordestino, magro, moreno, faminto e sem escola. E tinha sido feito por um artista do Paraná, a quem a partir de então eu passei a admirar e que me inspirou tantas vezes.

Fui ao Memorial da Resistência ver de perto seu trabalho. Nele podemos ver nada mais nada menos do que a história recente do Brasil contada por um artista ex-camponês, ex-operário. Talvez seja por isso que ele soube refletir tão bem o momento histórico que o Brasil atravessava, nos árduos anos do regime militar. Luís Inácio Lula, falando de Elifas, disse que se o artista tivesse continuado na fábrica, seria hoje um peão de respeito. Mas preferiu o pincel e o lápis, e disse Lula, quando ainda nem era Presidente da República: “Por onde passo, em cada canto deste país em que há alguém lutando por um Brasil mais justo, encontro Elifas nas paredes, um elo entre os primeiros embates e a utopia que continuamos perseguindo.”

Elifas nasceu no Paraná. Era filho de uma família de camponeses muito pobres. Tendo vindo para São Paulo no começo da adolescência, Elifas era obrigado a uma jornada diária dura para ajudar a sustentar sua mãe e seus cinco irmãos. Até que foi trabalhar numa fábrica de fósforos na Vila Anastácio, onde os papéis de embrulho, em suas mãos, viravam cenários para os bailes dos operários. Em seguida, seus primeiros trabalhos de ilustração foram feitos no jornalzinho da empresa. Aprendeu tardiamente a ler e escrever, e a crescer dentro do seu trabalho de artista. Fez inúmeras capas de discos, dezenas de cartazes, tanto para o teatro quanto para o movimento de resistência à ditadura, outras inúmeras ilustrações para diversos órgãos, participou da redação dos jornais alternativos Opinião e Movimento, fez capas para a antigamente respeitável revista Veja, capas que fizeram história do design de capas, trabalhando junto com Pedro de Oliveira, também artista gráfico e militante do PCdoB até hoje.

A arte de Elifas Andreatto também reflete profundamente a alma cultural do povo brasileiro, alma presente nos versos de Chico Buarque, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Adoniran Barbosa, e tantos outros artistas da música e do teatro que tiveram o privilégio de contar com o talento ilustrador deste artista. Sua leitura da cultura brasileira é visceral, oscilando entre a suavidade e a sensibilidade de um retrato de Clementina de Jesus, por exemplo, até a agudeza dramática das cores que ele escolheu para denunciar a morte de Wladimir Herzog ou a figura pendurada num pau de arara, denunciando a tortura política nos porões da ditadura. Ou os meninos pobres iluminados por estrelas cadentes em seus tantos cartões de natal. Elifas possui “um olho extraordinário para ver seu povo” – todo o povo brasileiro mesmo, pois brasileiro tem todos os sobrenomes do mundo – e passar para o papel sua alma, sua cor (do povo), seu momento e movimento, diz o cartunista Ziraldo.

Para concluir, vale à pena transcrever um trecho do que Elifas escreveu sobre seu papel de artista, na abertura do livro “Impressões”, que trata de sua vida e obra:

“Esta é a minha satisfação: minha arte se liga à história da minha vida, das vidas assemelhadas à minha, e serve para contar o que eu e pessoas semelhantes a mim entendemos seja o mundo, a justiça e a liberdade. Assim deve ser entendida essa trajetória: ela é a soma das impressões fixadas no papel, ao longo de um caminho que começa no Paraná e que não sei onde termina. O que aprendi como autodidata, coloquei a serviço do que acreditava e jamais traí minhas crenças nem as troquei pela melhor oferta.”