quinta-feira, 2 de junho de 2011

Romantismo em São Paulo e Londres


WILLIAM TURNER:
Pescadores no mar, 1796, óleo sobre tela, 
91 x 122 cm, Tate Gallery
Duas exposições - em São Paulo e Londres - trazem à mostra pinturas que têm origem no século XIX, de artistas do movimento conhecido como Romantismo. Esses artistas expressavam em sua arte os novos pensamentos que passavam a dominar o mundo, ideias que fervilhavam nos diversos movimentos revolucionários da época, especialmente na França. Ideias de Socialismo, inclusive, como alternativa às injustiças geradas pelo capitalismo industrial.

JOHN CONSTABLE:
A casa do almirante em Hampstead, 1821,
óleo sobre tela, 60x50 cm, Alte Nationalgalerie, Berlim
Mas no século XIX, especialmente em Paris, os pintores também se rebelavam contra o estilo Neoclássico, que uniformizava o mundo dentro do padrão da estética clássica, grega e romana. Pintores, mas também escritores, não queriam mais guardar fidelidade a esses modelos antigos, que limitavam a criatividade e as manifestações da individualidade, com duras e dogmáticas regras para as artes (para se ter uma ideia, havia receitas para se pintar bem, dentro dos cânones neoclássicos; havia uma receita de mistura de tonalidades de cores que eram usadas para pintar a pele das pessoas, por exemplo).

Os românticos - como ficaram conhecidos esses artistas rebeldes - pregavam a livre efusão dos sentimentos, a visão e a experiência individual do mundo. Eles não acreditavam num Belo absoluto, universal e eterno. O Belo era, para eles, transitório, relativo. Mesmo a feiúra do mundo era Bela. Podemos lembrar de um poema de Baudelaire que falava de uma carniça, assim como podemos buscar exemplos em vários poemas de seu livro Les Fleurs du Mal. Mas isso eu deixo para meu amigo Jeosafá Gonçalves, literato e estudioso de artes literárias.

WILLIAM BLAKE:
O Corpo de Abel Encontrado por Adão e Eva,
1825. Aquarela sobre madeira.
A origem da palavra Romântico, segundo vários estudiosos, vem do inglês "romantic", no sentido de pitoresco e até de bizarro. Na França, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um dos pensadores que não somente influenciaram o Romantismo francês mas a própria Revolução Francesa, com suas ideias de Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Segundo Carlos Cavalcanti (professor brasileiro de História da Arte, já falecido) o Romantismo nasce como consequência ao individualismo burguês que gerou o liberalismo econômico e político, que nasceram na Revolução Industrial.

Além de grande influência sobre as mudanças profundas que mudavam a história da França e da Europa, o Romantismo trouxe um novo tipo de artista: o excêntrico, o esquisito, o inconformado e rebelde contra os valores da burguesia industrial. Ser artista passou a ser sinônimo de uma pessoa desvairada, boêmia e de conduta antisocial. São os sonhadores, os poetas malditos, os que morriam de tuberculose e de fome. Eram aqueles que se negavam a pertencer a um mundo que trazia tão desagradável realidade: injustiça social, divisão de classes, preconceitos sociais, visão utilitária - leia-se comercial - do mundo e das relações. Foram os Românticos os primeiros pintores politizados, os artistas que pintavam a vida social. E os que, numa visão entre sentimental e utópica do mundo, recebiam com bons olhos as ideias socialistas nascentes.

EUGENE DÉLACROIX: A Liberdade guiando o povo, 1830,
Museu do Louvre, Paris.

Nesse meio, surgiram - para ficar só nas artes plásticas - Henry Fuseli, William Turner, John Constable, Samuel Palmer, William Blake, El Greco, Jeronimus Bosch, Théodore Géricault, Eugene Délacroix, Camille Corot, Charles Daubigny, Théodore Rousseau, Jean François Millet, além de outros tantos, entre os quais o famoso ilustrador de obras literárias Gustave Doré. No Brasil, um nome se destaca: João Batista da Costa (1865-1926) que, influenciado pela Escola de Barbizon (movimento de artistas românticos franceses), deu aulas de pintura e dirigiu a nossa Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Na exposição em Londres, o foco são os artistas da Grã-Bretanha, suas origens, inspirações e legados. São obras da coleção da própria Tate Britain, onde se mostram grandes obras de Henry Fuseli, William Turner, John Constable e Samuel Palmer, bem como as obras recém-adquiridas de William Blake.

No Brasil, no MASP, podem ser vistas obras de El Greco, Bosch, Turner, mas também de pintores impressionistas como Gauguin, Van Gogh, Renoir, Monet e Manet, todos também pertencentes ao acervo do Museu de Arte de São Paulo.

JEAN-FRANÇOIS MILLET: As respigadeiras, 1857,
Museu D'Orsay, Paris.
É uma excelente oportunidade para ver de perto obras que ilustram a história da arte, em especial a pintura que representou um verdadeiro momento de ruptura na tradição, um movimento revolucionário nas artes que acontecia em momentos de revoluções profundas, em especial na França, como lembra Gombrich, o historiador da arte e autor de vários livros sobre o assunto.

Na Tate Britain, a exposição vai até 31 de julho de 2011. No Masp, a exposição foi aberta no ano passado e não tem previsão de encerramento.
THÉODORE GÉRICAULT:
A barca da medusa, 1817-1818, óleo sobre tela, Museu do Louvre, Paris.


quarta-feira, 1 de junho de 2011

Desenhos de mar


"... cantando espalharei por toda parte

se a tanto me ajudar o engenho e a arte"
(Os Lusíadas, de Camões)



Tempos desses, numa praia do sul, no inverno, sem vento, mar gelado. E aquilo tudo ali à minha frente: mar, pequenos barcos, gaivotas, ondas, areia... deu a impressão de que o Real se magnificou ali na minha frente, e registrei aquilo ali em desenhos e no poema abaixo: 



À beira-mar


Onde está o vento?
Tento mais a mais me adaptar
ao imprevisto sopro dos ventos
me inventando a cada instante
criando a mim mesma
para ser possível a dança do momento.


Mas agora não há vento por aqui:
há um mar gelado, gaivotas, nuvens... e faz frio...
Hoje eu não sou o vento que sopra de todas as partes.
Hoje?
      - Eu aguardo o rumo dos acontecimentos
        sem o vento
        eu, como este barco solitário e inerte
        aguardo meu marinheiro...


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O poema veio original e estranhamente em francês:


Au bord de la mer

Où est le vent?
J'essay de plus en plus m'adapter
au imprévu souffle des vents
en inventant à moi même à chaque instant
en créeant à moi même
pour être possible la dance du moment.

Mais maintenant n'a pas de vent ici
il y a une mer de glace, des mouettes, des nues... il fait froid...
Aujourd'hui je ne suis pas le vent qui souffle de toutes parts
Aujourd'hui?
      - J'attends le chemin des èvènements
      sans les vents
      Moi, comme cette barque solitaire et inerte,
      j'attends mon marin.


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Enquanto isso, outras histórias se passavam por ali:
Um urubu tava por ali comendo um pedaço de peixe...


... e outro urubu se aproximava
mas as gaivotas eram maioria...
elas se espalhavam pela praia e pelo trapiche...

disputando com pessoas que iam ver o mar.

domingo, 29 de maio de 2011

Estudo de Arte Realista

Alguns dos que estudam Arte Realista com Maurício Takiguthi, em seu atelier
em São Paulo. Maurício é o de camiseta preta, frente ao cavalete.
Neste sábado à tarde, umas 20 pessoas se reuniram lá no Atelier Maurício Takiguthi, como fazemos uma vez por mês, para estudar mais um capítulo do livro de Heinrich Wölfflin, "Conceitos Fundamentais de História da Arte", desta vez sobre Pluralidade e Unidade na Pintura. Vimos como a pintura clássica era basicamente feita de partes autônomas dentro do quadro, não só pela diversidade de figuras mas também pela forma técnica da pintura, mais linear. Vimos como depois, no Barroco, as várias partes de uma pintura formam um todo único, sem ser possível deslocar um pedaço qualquer do contexto do quadro sem que a parte deslocada perca sentido. No Barroco (Caravaggio, Rembrandt, Rubens, Vermeer, Vélazquez...) é que podemos observar um entrelaçamento nas cores, uma espécie de espalhamento das massas, uma inter-relação entre todas as partes e figuras. O quadro, como um todo, conversa entre si.


Assunção de Maria, de Rubens
Mas Wölfflin alerta que isso não significa necessariamente um julgamento de valor, que um fosse superior ao outro, somente aponta que a Unidade estética do quadro surge como algo totalmente novo. Na pintura clássica as partes possuem uma função autônoma. Nesta pintura de Rubens (1577-1640) - ao lado - dá bem para ver que o quadro poderia ser dividido em dois, por exemplo, sem muito prejuízo do conjunto. E mesmo que os olhares se dirijam sobretudo para a figura de Maria no céu, os diversos personagens parece que não possuem relação entre si.


O que não é possível com este outro quadro, de Rembrandt (1606-1669) - abaixo - pois, como dá para ver, as partes se encontram interconectadas num todo indivisível e não seria possível destacar nenhum pedaço da cena, sem que ela sofresse prejuízo. Até mesmo no estudo de uma simples cabeça dá para se perceber claramente esses dois conceitos de unidade e de pluralidade dentro da História da Arte. E aqui vale lembrar que a Arte não se encontra separada do resto da vida, mas reflete as mudanças que vão ocorrendo no mundo e na sociedade ao longo do tempo. Até o pré-Renascimento, por exemplo, o poder da Igreja Católica influenciava diretamente a Pintura, com os padres dando as regras inclusive do uso das cores e fazendo uma grande diferenciação entre o mundo celeste e o mundo terreno. A partir do Renascimento, com o capitalismo mercantil trazendo mudanças profundas em todos os níveis, as coisas do céu foram perdendo importância e mesmo que os assuntos religiosos continuem sendo um tema na pintura, os seres humanos que aparecem nela já tem mais realidade e mais valor do que nas pinturas de períodos anteriores. Não dá mais para separar a terra e o céu. 


Nos detivemos também um pouco mais detalhadamente no estudo do quadro do grande pintor holandês Jan Vermeer (1632-1675) "Alegoria da Pintura", de 1666. O quadro é um grande exemplo de como um artista pode ser minucioso sem ser detalhista. Quando ampliamos ao máximo qualquer trecho dessa pintura vemos como Vermeer trabalhava com a ideia de que bastam pequenos toques do pincel, por exemplo, para dar o efeito desejado. Vermeer, assim como Rembrandt, são considerados pictóricos e não lineares, ou seja, dão preferência às massas de cor, aos valores, aos efeitos da luz. Um exemplo entre muitos em Vermeer: o lustre no alto da sala é trabalhado com muita minúcia em termos de uso da massa, do efeito da luz e da sombra, da massa que ultrapassa a forma, etc. Nos olhos e nos lábios da modelo, vemos como apenas pequenas pinceladas configuram a expressão doce e suave que ela aparenta. Isso mostra a diferença entre ser minucioso (na aplicação das regras da arte pictórica) e não detalhista.

Alegoria da Pintura, de Vermeer
Enfim, o estudo detalhado desta pintura, por si só, já serve como um curso inteiro sobre como funciona a pintura realista. Há uma profunda unidade na forma, nas cores, no tema, na composição, nos valores, na luminosidade.


Tributo à ética protestante do trabalho, de Jeremy Geddes
Um exemplo de pintura detalhista e linear é o do pintor hiper-realista contemporâneo Jeremy Geddes, um pintor australiano. Nesta tela a óleo pintada em 2009, que se intitula "A Tribute to the Protestant Work Ethic", podemos ver que: - é uma pintura linear, mais próxima da acadêmica; há uma preocupação muito grande em ser detalhista até nos mínimos efeitos; no conjunto do quadro, parece que o artista está mais preocupado em mostrar o quanto ele é bom. Diferentemente desse outro quadro de Vermeer, onde o pintor até aparece, mas de costas. O que importa não é ele, Vermeer, mas sim importa mostrar como a representação da realidade pode se dar de forma pessoal, suscinta, simples, elegante. 


Coisas como essas são bastante elucidativas de como a arte de uma época é o reflexo não somente daquele período histórico, mas mostra também o quanto um mestre é feito não somente de técnica, de execução perfeita, mas também de Pensamento, de Conceito, de Conhecimento. E de visão de mundo.


No Atelier de Arte Realista, em pleno século XXI, buscamos aprender a técnica do desenho e da pintura em profundidade, mas também nos interessa - a mim, pelo menos - compreender conceitualmente o que significa ser, hoje, uma pintora realista.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Os novos Maneiristas – arte-espetáculo

Uma grande leiloeira de obras de arte, a Christie’s nova-iorquina, realizou entre 26 e 27 de maio, um grande leilão com obras de 150 artistas latino-americanos, porque a bola da vez do restritíssimo mercado de arte agora é a América Latina. Um empreendimento altamente lucrativo para investidores em obras de arte, que deve movimentar em torno de 25 milhões de dólares, segundo os organizadores. E muito lucrativo também para os artistas que o mercado escolheu, entre os quais as brasileiras Beatriz Milhazes e Adriana Varejão.


Estou preparando uma pesquisa sobre o assunto Arte e Mercado, que devo publicar em breve neste blog. Mas desde já adianto algumas indagações, que considero importantes, com vistas a provocar uma reflexão maior sobre os termos atuais que gestam o que nestes tempos se chamam de “artes visuais”.


A Fonte, de Duchamp
Antes de mais nada, vale sempre lembrar de uma historinha que sempre funciona como pano de fundo para as coisas esquisitas que teimam em acontecer hoje, na chamada “arte contemporânea”. Em 1917 – há 94 anos, portanto! – o francês Marcel Duchamp mandou para uma exposição que acontecia em Nova Iorque, um urinol de parede, que ele intitulou “A Fonte”. Inaugurou, na História da Arte, o período da chamada “arte conceitual”, a arte da boa ideia ou, como diz Ferreira Gullar, a “arte da caninha 51”.


Hoje (um hoje que já dura muito, e dura porque existe um sistema muito organizado por trás dele), os Neo-Maneiristas se revezam em imitar artistas do passado. Houve um tempo em que os pintores imitavam outros pintores, que eles consideravam grandes Mestres, ou seja, pintavam “à maneira de” Da Vinci, de Ticiano, de Rafael... Eram os Maneiristas. Viviam na Europa no mesmo período em que o Brasil começava a se formar, lá pelos idos de 1520-1600. Eles tinham muito orgulho de fazerem cópias perfeitas dos seus mestres, pois dominavam a técnica do desenho e da pintura da época, de forma excelente (veja abaixo).


Os maneiristas de hoje também se satisfazem em repetir ideias de artistas passados, dos tempos de Duchamp (antes de Marcel Duchamp, devem pensar eles, será que o mundo existia???)


O artista e sua obra: Damien Hirst
e seu cadáver de tubarão,
conservado em formol
 
Não parece que hoje o que importa é causar frisson estético, e chamar a atenção do mercado para que o artista – o neo-maneirista – ganhe lá também os seus dólares e abocanhe a sua fração vantajosa financeiramente? Mesmo que seja como autor de um espetáculo que beire a crueldade, para dizer o mínimo? “Isto vai desde obras\espetáculos onde, por exemplo, se incendeia uma galinha, fatia-se um boi, tortura-se um inseto, até a utilização do corpo humano em cenas de mutilação”, diz Affonso Romano de Sant’Anna, em O Enigma Vazio.


Já se fez de tudo na “Arte Conceitual”, depois do penico de Duchamp... Já foram usados todos os meios e todos os líquidos humanos para serem apresentados como obras de arte em galerias e museus da moda: sangue, esperma, saliva, suor, menstruação e... merda! 


O artista e sua obra: a merda
enlatada de Piero Manzoni
Literalmente. Em maio de 1961, Piero Manzoni transformou suas próprias fezes em uma obra, que ele vendeu muito bem: mais 1 milhão de libras por latinhas com a merda do artista, etiquetadas com o título “Merda d’artista”. Em 2004, o britânico Damien Hirst vendeu – como obra de arte – um tubarão mergulhado em formol, por 12 milhões de dólares, ao administrador de fundos norteamericano Steve Cohen.


Seria uma ideia fazer aqui uma lista das coisas que já foram expostas como obras de arte, mas em respeito a quem acompanha este blog, vou dispensá-los do mal-estar físico - além de intelectual - que essa lista causaria...


Mas não posso deixar de falar sobre uma exposição que está acontecendo neste momento no Rio de Janeiro, na Casa França-Brasil, um espaço que pertence ao governo do Estado do Rio: A exposição “2892”, inaugurada em 14 de maio último, de Daniel Senise.


Os lençois expostos na Casa França-Brasil. Mais vale
olhar para o teto do prédio!
Consta que em 1993, esse artista doou lençóis brancos ao Instituto Nacional do Câncer e a um Motel do Rio de Janeiro. Obra de caridade? - Não, Arte Conceitual, amigo! 


À maneira de Duchamp (e tantos d’outros) Senise iria recolher esses lençois mais de 15 anos depois para apresentá-los numa exposição assinada por ele, esta que está ocorrendo neste momento. O título dessa exposição é o número das pessoas que se enrolaram nesses... lençóis(?). Agora fico sem saber se chamo de lençois algo que foi elevado à condição de obra de arte. De um lado, os lençóis que passaram pelos clientes do Motel. Do outro, os que enrolaram os doentes com câncer... No meio, um corredor macabro, onde o visitante desavisado pode ser surpreendido por sua imaginação que irá visualizar ali todas as “marcas de amor” naqueles lençois e, do outro lado, marcas de doentes de câncer... Sangue, esperma, líquidos humanos... 


E “isso” é Arte? 


Que mundo é este, onde a arte que fazemos é ESSE tipo de arte? Será que não há uma tremenda coerência com essa produção de arte contemporânea atual e essa sociedade neoliberal que acha cada vez mais legal ser de direita, como disse Marcelo Rubens Paiva recentemente? Uma sociedade que aplaude o preconceito, a discriminação, a elitização, o jogo midiático manipulador e o consumismo, teria que tipo de artistas para ilustrar seu pensamento? Uma sociedade dominada pela caretice evangélica, por falsos mas milionários profetas, por pensadores medíocres mas ilustres que usam meia dúzia de palavras para arrancar risadinhas nervosas da classe média, teria outro tipo de artista, que não os escolhidos do mercado e do sistema?


Como diz o poeta e crítico de arte Affonso Romano de Sant’Anna, a arte contemporânea já não é mais assunto para quem é especialista em Artes, mas em Psicanálise...


OS MANEIRISTAS JÁ FORAM BONS NO PASSADO!

Retrato de Maximilien II e sua família,
atribuída a Giuseppe Arcimboldo, por volta de 1563

terça-feira, 17 de maio de 2011

O Realismo atravessa os tempos

Acabei de ler o livro de Carlos Cavalcanti, edição de 1967, "Conheça os estilos de Pintura". É um livro esgotado nas livrarias, há muito tempo. Encontrei-o em minha viagem ao Rio de Janeiro, mês passado, em plena Cinelândia, na Feira de Livros. Paguei dez reais por um livro que dá um panorama histórico da pintura, desde a Idade da Pedra Lascada até o século XIX.


Narciso, de Caravaggio, óleo sobre tela, 110x92cm,
Galleria Nazzionale d'Art Antica, Roma, Italia
Quem lê livros, sabe o que acontece quando acabamos de ler a última linha de um livro que tanto nos prendeu e interessou! Cria-se um vácuo, um "não sei o que fazer agora", o que ler em seguida, como viver a partir deste momento... Um bom livro mexe profundamente, move e remove ideias, cria novas, faz recuar em preconceitos, avançar em conceitos, em conhecimento. Dá vida!


Pois bem! Um bom lastro de conhecimento sobre a história da pintura aumentou mais ainda meu interesse sobre o tema do Realismo nas artes. Isso vai dar muito pano pra manga, pois alguns dados colhidos são realmente interessantes. A realidade - esse contato direto do homem com o mundo à sua volta - tem gerado interesse, curiosidade, investigação, conhecimento, ciência e arte. Ao longo de milhares de anos, o Real tem intrigado o homem, tem movido o homem, tem inspirado o homem.

Pintura palelolítica, caverna de Montinac-Lascaux, França
Artistas realistas não são uma novidade do século XIX, pois como diz Carlos Cavalcanti - além de outros - os primeiros realistas apareceram na Idade da Pedra Lascada "com os desenhistas e pintores madalenianos, decoradores de cavernas, armas e utensílios" que estudavam e desenhavam com muita eloquência os movimentos e o caráter dos animais.

Os egípcios antigos eram ao mesmo tempo figurativos e abstratos como pintores, influenciados diretamente pela religião e suas crenças, onde sacerdotes orientavam artistas dentro de regras rígidas. Mas mesmo assim, os escultores egípcios eram realistas. Também na Roma dos velhos tempos, os pintores - os primeiros muralistas - eram também realistas, pintavam em enormes afrescos murais públicos, cenas da vida, da história.

Estudos de Michelângelo Buonarrotti (1475-1564)
A última fase da pintura Gótica e a primeira fase dos Renascentistas trouxeram excelentes pintores realistas, como Tommaso Masaccio (1400-1428) que para representar cenas bíblicas - moda na época - ia buscar nos bairros pobres de Florença, na Itália, os modelos para seus quadros. Ele é considerado o segundo grande mestre do começo da pintura ocidental, depois de Giotto (1266-1337), exatamente porque ele abriu caminhos para a interpretação realista do mundo, sem a mística da Idade Média. Foi nele que se inspiraram, séculos depois, Michelângelo, Leonardo Da Vinci, Rafael e outros.

Um outro pré-renascentista, Filippino Lippi (1457-1504) - que era filho de um padre (também pintor) com uma freira - também trazia elementos que o diferenciavam dos pintores de seu tempo, influenciados pela mística bizantina: pintava anjos com as unhas sujas, nossas senhoras com a cara das mulheres que se viam nas ruas.
Lição de Anatomia, de Rembrandt, 1632, Museu de Haia, Holanda
Também na Holanda, ainda no século XV, os irmãos Van Eick pintavam o que viam com uma verdade "às vezes quase cruel, dos seres e das coisas", diz Cavalcanti.


No Renascimento que cultuava as formas idealizadas dos gregos antigos, os pintores realistas são em número muito grande! O Barroco, que trazia intensidades dramáticas expressas nas artes, era sobretudo um movimento realista, e de inspiração popular. Não precisamos fazer uma lista de nomes, porque um só deles já basta para atestar esta constatação: O Mestre Caravaggio! Ele era odiado pelos seguidores dos maneirismos aristocráticos de seu tempo, que o chamavam de anticristo da pintura, o pintor maldito, o pintor que vivia com os pés sujos. Caravaggio não ligava, pintava com intensidade a realidade crua que via diante dos olhos.


Nos séculos XVII e XVIII, pintores flamengos e holandeses criaram obras onde interpretavam os interesses da já "opulenta e laboriosa" burguesia mercantil e manufatureira. Nesse período, primorosos pintores realistas pintaram desde retratos até a paisagem de suas terras, além do cotidiano doméstico, encontrando beleza e graça nas cozinhas e nos dormitórios modestos do povo dos Países Baixos.


Mesmo na França do período do Rococó mundano e superficial de uma "aristocracia em decomposição", diversos pintores, ao invés de se inspirarem nos temas em voga, preferiam buscar inspiração na vida laboriosa dos trabalhadores rurais e mesmo na vidinha besta da pequena burguesia provinciana.

Velha fritando ovos, de Vélazquez, 1618, 100x120cm,
National Gallery of Scotland, Edimburgo.
 
Então, diz bem Carlos Cavalcanti, entendida como representação objetiva da realidade, o Realismo na pintura não é uma novidade trazida pelo século XIX, porque, diz, a "Realidade em si mesma, limpa das deformações do sentimento ou dos atavios estéticos, mais de uma vez tem parecido bela aos olhos humanos" desde a remota antiguidade.


Mas foi no século XIX, com Gustave Courbet, que se funda oficialmente o movimento conhecido como Realista, primeiros passos para todos os movimentos modernistas que vieram a seguir. O Realismo do século XIX veio junto com ideias revolucionárias contra a burguesia já no poder, que já de revolucionária não tinha mais nada. Se mostrava conservadora, anti-reformista e autoritária. Citando Arnold Hauser, um dos teóricos do período, Cavalcanti lembra que as intensas discussões daquela época em torno da "arte pura", distante da realidade e da história, eram incentivadas pela burguesia no poder que queria afastar o artista das ideias políticas.


O atelier do pintor, Gustave Courbet, 1855, óleo sobre tela,
361x598 cm, Museu D'Orsay, Paris, França
Hoje, nesta salada contemporânea, assuntos como este voltam de vez em quando. O eterno debate sobre o papel da arte nunca saiu de cena, o que é compreensível, uma vez que o homem como artista é um homem com sentidos diferentes de percepção do mundo, mas um homem que somente se satisfaz quando transmite sua percepção pessoal do mundo aos semelhantes. Há os que criam um diálogo com suas obras, fazem pensar, dão prazer estético. Mas há os que vão simplesmente na onda da moda e, se se preocupam em criar um diálogo com seus semelhantes, esses semelhantes são bem semelhantes mesmo, porque pertencem a uma casta que fala uma língua que a imensa maioria não é capaz de compreender...

Le déjeuner sur l'herbe, de Édouard Manet, 1863,
Museu do Louvre, Paris, França
Do meu lado, sou parte daqueles que gostam de conversar com todo mundo: Masaccio, Van Eyck, Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Vermeer, Velazquez, Murillo, Ribera, Zurbarán, Dürer, Goya, Rubens, Rafael, Van Dyck, El Greco, David, Ingres, Sargent, Courbet, Delacroix, Manet, Toulouse-Lautrec, Monet, Millet, Rousseau, Géricault, Corot, Fantin-Latour, Doré, Daumier, Turner, Constable, Rossetti, Degas, Almeida Junior, Visconti, Anita Malfatti, Portinari, Di Cavalcanti... a lista é imensa! Nem todos realistas, claro, mas todos gênios em seus cavaletes onde geraram as grandes obras que inspiram nossa humanidade, e que espelham os rostos de todos nós.


Os músicos, de Caravaggio, óleo sobre tela,
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA