domingo, 5 de fevereiro de 2012

Artistas realistas no Rio de Janeiro

Céu da China, 2010, óleo sobre tela, dos três artistas da Guilda de São Francisco
Eu estava pesquisando em sites de museus, quando me deparei com uma novidade que acabava de passar pelo Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro: uma exposição de desenhos de Cláudio Valério Teixeira e outra de pinturas de um grupo chamado Guilda de São Francisco.


Desenho de Cláudio Valério Teixeira
Aos poucos fui descobrindo tudo. Cláudio Valério Teixeira, um dos artistas da Guilda de São Francisco, é um artista plástico com longa carreira e que, na época da ditadura militar no Brasil, havia exposto desenhos onde ele retratava as situações de prisão, tortura e mortes sofridas por pessoas que se opunham ao regime militar. Ele refez todos os desenhos de 1978 - os daquela época foram perdidos - e os expôs no Museu Nacional de Belas Artes, num momento inclusive bastante propício, pois foi recentemente instituída a "Comissão da Verdade" para apurar crimes políticos cometidos pelos militares naquela época e, com isso, "torna-se ainda mais pertinente a remontagem desta exposição", diz ele em seu site.


Através do sítio da exposição "1978 - Desenhos", eu cheguei ao da Guilda de São Francisco, onde pude ver que três artistas plásticos se reuniram para recuperar a pintura que era feita no século XVII, dando uma atenção especial ao pintor flamengo Peter Paul Rubens, assim como a Nicolas Poussin, pintor francês. São eles: Celio Belem, Milton Eulalio e o próprio Cláudio Valério Teixeira. Todos se dizem pintores realistas, que buscam trazer para nossos tempos o modelo de mestres como Velázquez, o mestre de todos os pintores realistas, como diz Cláudio.


Desenho de Cláudio Valério
para a exposição "1978 - Desenhos"
O nome dado ao grupo, Guilda de São Francisco, remete ao jeito antigo dos artistas se reunirem juntos num atelier, em guildas. O nome deve-se ao fato do atelier deles estar localizado no bairro de São Francisco, em Niterói, Rio de Janeiro. Celio, Cláudio e Milton pintam juntos a mesma tela, um continuando o que o outro começou, construindo as pinturas juntos. Os três são amigos, os três compartilham o mesmo gosto estético e a mesma paixão pelas obras dos velhos mestres da pintura. Eles também trabalharam juntos em diversas restaurações de obras de arte, como nos paineis "Guerra e Paz" de Portinari.


Nestes tempos de predomínio e imposição acadêmica onde reina quase absoluta a arte conceitual, parece que um vento sopra novamente para a arte figurativa. Foi esse frescor que senti ao ver duas exposições dessas em um dos principais museus brasileiros, o Museu Nacional de Belas Artes. Pode ser sinal de que nem tudo está perdido, ou dizendo melhor: num mundo onde tudo parece perdido, artistas trabalham em seus ateliês, na calada do dia ou da noite, no silêncio quieto do pincel sobre a tela, debruçados sobre as grandes questões da arte pictórica.


A exposição "1978 - Desenhos", assim como a de pintura "Guilda de São Francisco" ficaram em cartaz de 30 de novembro de 2011 até hoje, dia 5 de fevereiro.


Abaixo, transcrevo um artigo do professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp Jorge Coli, que foi publicado no site do grupo. Ele fala sobre o significado de artistas como estes em meio ao estado atual das Artes Visuais:


A Guilda de São Francisco


Jorge Coli


É bem sabido que a arte de vanguarda, ou moderna, como se quiser, ergueu seus fundamentos no princípio das libertações. Libertação da disciplina escolar, dos cânones acadêmicos, das regras, dos mestres, da tradição. Liberar o solo, dizia Le Corbusier, para a arquitetura. Liberar os poemas de suas rimas e metros. Liberar a prosa de qualquer narrativa. Liberar a música que a velha harmonia aprisionava. Liberar os quadros de toda figura, ou representação.


Tal liberdade era determinante para que o artista pudesse criar, e criar queria dizer: inventar o novo. A dupla liberdade e novidade moveu a criação moderna. Ela determinava que o retorno ao passado só poderia ocorrer ou como “releitura”, para empregar um termo hoje na moda, ou como alusão distante, inspiração remota.


Celio Belem, Cláudio Valério Teixeira e
Milton Eulálio trabalhando juntos na mesma tela
Boa fórmula axiológica: liberdade + novidade = modernidade. Porém, todas as proclamações, todas as invenções, originalidades, choques, não eliminam desses imperativos sua dimensão profundamente autoritária. O artista é livre para o que quiser, menos para uma coisa: não ser moderno. A fórmula de São Cipriano, caracterizando o universal da Igreja poderia ser aplicada aqui: fora dela, da modernidade, não há salvação. Trata-se de uma opressão que condenou os artistas apegados às tradições; as palavras que os caracterizaram fizeram-se insultantes: “passadista”, “acadêmico”.


Hoje, os valores, e mais que eles, as intuições e sentimentos modernos entraram em crise. Seus poderes, no entanto, ainda são fortes. Poderes que a Guilda de São Francisco desacata. Num formidável prazer de trabalhar juntos, abolindo o princípio de autoria individual, colaborando com gosto e alegria numa camaradagem cúmplice, eles decidiram voltar às lições dos de outras eras. Não como citações, embora um conjunto de nus possa remeter a Manet, e por trás dele, a Rafael; ou um grupo encaminhe a memória para algum Poussin. Mas, ao conceber o quadro como construção refletida, em que a figura humana, o nu, a paisagem, a natureza morta monumental retomam seus direitos esses artistas tentam encontrar antigos caminhos. Ao descobrir feituras técnicas, processos de representação e de composição que ocorreram no passado, ao avançar pondo o pé nas pegadas dos velhos mestres, escaparam à tirania já meio caduca da modernidade.


Nas obras da Guilda, há discretas referências ao nosso tempo, como essas pequenas centrais nucleares perdidas que se perfilam diante de um pôr-do-sol; ou esse skyline de cidade contemporânea. Mas essas referências discretas, um pouco bizantinas ou cabalísticas, não são necessárias para sabermos que esses quadros foram feitos hoje. Há neles não sei que espírito de malícia e de júbilo que os denuncia.


De qualquer modo, o grande equívoco dos modernos, aquilo que não entenderam é a impossibilidade de não ser atual. A marca deixada pelo agora em qualquer obra que seja, incorpora-se a ela de modo indelével: Borges enunciou com humor esse princípio no seu paradoxo de Pierre Ménard.


O torniamo all’antico que segue a Guilda de São Francisco revela, por tudo isso, uma considerável novidade. Graças ao domínio técnico exigente, graças ao evidente prazer que seus pintores demonstram em expandi-lo nessas telas de belo formato, graças à cumplicidade reforçada pelo trabalho coletivo e pelo estímulo que dele resulta, produzem uma arte que desafia – sem nenhuma intenção militante – as estéticas conformadas.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

"Por ti, Portinari"

“Vim da terra vermelha e do cafezal. As almas penadas,
os brejos e as matas virgens acompanham-me
como o espantalho, que é o meu auto-retrato.
Todas as coisas frágeis e pobres se parecem comigo.”
(Candido Portinari)

Em 6 de fevereiro, há 50 anos, morreu o artista brasileiro de maior reconhecimento internacional: Candido Portinari. Duas homenagens à altura desse pintor acontecerão neste primeiro semestre de 2012: a escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel desfilará no sambódromo do Rio de Janeiro em homenagem ao artista, e o Memorial da América Latina em São Paulo passará a exibir os dois painéis “Guerra” e “Paz”, que depois passarão por outros países: Rússia, China, Índia e África do Sul.


Guerra e Paz


Após uma completa restauração realizada no Rio de Janeiro, os dois gigantescos paineis de Portinari serão exibidos ao público no Memorial da América Latina em São Paulo. É uma rara oportunidade de ver essas duas gigantescas telas de 14 metros por 10 cada uma, doadas pelo governo brasileiro à sede da ONU em Nova Iorque, Estados Unidos. Além de ser possível observar cerca de 100 estudos preparatórios que Portinari fez para os paineis, assim como uma amostra do Projeto Portinari, organizada pelo seu filho João Candido. No Memorial também está o painel Tiradentes, pintado por ele entre 1948-49.
Painel Guerra, de Portinari, 14 metros de altura por 10 metros de largura
Os paineis Guerra e Paz foram encomendados no final de 1952 ao pintor, para um espaço de 280 metros quadrados, maior do que o espaço que Michelangelo tinha para a pintura da Capela Sistina.


Portinari, em 1952, já havia sido proibido de pintar a óleo, por recomendação dos médicos, uma vez que ele já sofria com sintomas de intoxicação pelas tintas. Mesmo assim, Portinari aceitou o convite. Ele sabia que corria risco de morte ao aceitar esse trabalho, mas foi "uma decisão consciente e coerente com toda uma vida de militância", disse o filho do artista, João Candido Portinari, ao jornal Folha de São Paulo. "Foram nove meses pintando e ele saiu disso muito fragilizado."


Foi no auditório dos estúdios da antiga TV Tupi que durante 4 anos Portinari trabalhou na confecção de 180 estudos, esboços, maquetes e as pinturas para os murais, que foram entregues em 5 de janeiro de 1956 ao Ministro das Relações Exteriores Macedo Soares, para a doação à ONU.


Mas antes de embarcarem para os EUA, Guerra e Paz foram montados no fundo do palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e em fevereiro de 1956 foram inaugurados pelo então Presidente da República Juscelino Kubitschek. Na ocasião, ele entregou a Portinari a Medalha de Ouro de Melhor Pintor do Ano de 1955, concedida pelo International Fine Arts Council de Nova York. Logo depois os paineis foram enviados à sede da ONU, mas somente no dia 6 de setembro de 1957, Guerra e Paz foram inaugurados em cerimônia oficial.


Mas sem a presença do pintor. Portinari era ligado ao Partido Comunista do Brasil, e o macartismo terrivelmente anticomunista que dominava os Estados Unidos naquele período, impediu que fosse concedido o visto de entrada a Portinari. Ele foi representado pelo chefe da delegação brasileira, o embaixador Cyro de Freitas-Valle, que lamentou publicamente a ausência do artista.


Portinari, com tamanho desafio à frente, realizou, só para o painel Guerra, cerca de 150 desenhos e 14 telas a óleo, como informa a pesquisadora Annateresa Fabris, da USP. Com seu traço marcantemente expressionista, ele resume nesses dois paineis todo o seu modo de ver a realidade do mundo: mães em desespero por seus filhos mortos, crianças esquálidas, retirantes, camponeses e trabalhadores sofridos, fazem do painel Guerra uma verdadeira denúncia dos horrores cometidos pelas guerras que dominaram o século XX, considerado o século mais sangrento de toda nossa história.


Nesse período, a resistência à guerra e ao nazismo e fascismo tinha alcançado também os artistas. Assim como Pablo Picasso e Bertolt Brecht, entre outros artistas humanistas, Portinari não podia se furtar a denunciar o que via em seu tempo: as consequências de duas sangrentas guerras mundiais, de massacres como nunca tinham sido vistos antes, quando homens mataram homens em conflitos bélicos, “acentuando climas de intolerância e regimes de terror, com a proliferação dos fascismos de diferentes formas - da Alemanha à Itália, da Espanha a Portugal”, como diz, em artigo, o sociólogo Emir Sader.


Não bastasse o sangue derramado nas duas guerras, duas bombas foram atiradas sobre Hiroshima e Nagasaki, o que levou o poeta Vinicius de Moraes a escrever “A rosa de Hiroshima”. Observando os detalhes da pintura de Portinari, nos sofrimentos ali expostos, nas mãos suspensas das mulheres em desespero, podemos lembrar dos versos do poeta: “Pensem nas crianças mudas telepáticas (...) Pensem nas mulheres, rotas alteradas...”


Emir Sader completa, em seu artigo: “Foi nesse marco - o da resistência e o do triunfo democrático - que uma geração notável de artistas e homens de cultura brasileiros se integraram a esse movimento internacional com o melhor de sua capacidade criativa. Os poemas de Carlos Drummond de Andrade sobre o assassinato de Federico Garcia Lorca, sobre a resistência de Stalingrado, ao lado das telas de Portinari Guerra e Paz se destacam como expressões maiores desse movimento”.
Painel Paz, de Portinari, 14 metros de altura por 10 metros de largura
No painel Paz, pessoas se movimentam, pessoas trabalham. Uma mãe está com seu bebê no colo, o filho de volta, pequeno, cheio de futuro. Um grupo de jovens canta. Muitas crianças brincam. É o recado do artista: a Paz deve ser para todos. As crianças representam o futuro da humanidade, um futuro de paz verdadeira, sem interesses bélicos que lancem as pessoas umas contra as outras, como nas guerras imperialistas.


Mas o mundo ainda não viveu esse dia. Estamos observando o desenrolar de uma crise que mais uma vez envolve os EUA e os países poderosos da Europa: há um cheiro de guerra no ar, quando ouvimos falar da Síria ou do Irã. A lição ainda não foi aprendida pelo senhores da guerra e os EUA, principalmente, ainda insistem na solução da morte para se imiscuir nos problemas internos da nações soberanas do mundo.


Guerra e Paz vão voltar à sede da ONU em 2013. Os poderosos do mundo vão continuar passando através deles, na entrada e na saída do prédio. E o recado do artista estará lá, em seu grito silencioso. Até que um dia os povos do mundo façam esse grito ser ouvido...


Serviço:
Exposição dos paineis GUERRA e PAZ
Memorial da América Latina
Barra Funda - São Paulo
De 6 de fevereiro a 21 de abril


O Samba para Portinari


Mas... como o mundo não é só guerra e o Brasil é também o país da celebração, a Mocidade Independente de Padre Miguel vai levar a arte de Candido Portinari para a Marquês Sapucaí no próximo carnaval, com o enredo “Por Ti, Portinari. Rompendo a tela, a realidade”.


O carnavalesco Alexandre Louzada pretende mostrar a infância do pintor em Brodowski, os grandes murais, pinturas como “Os retirantes”, as favelas e o carnaval que Portinari pintou. E lá também estarão representados os paineis "Guerra e Paz".


Este é o samba-enredo, de autoria de Diego Nicolau, Gabriel Teixeira e Gustavo Soares:


Por Ti, Portinari. Rompendo a tela, a realidade


Eu guardei
A mais linda inspiração
Pra exaltar em tua arte
A brasilidade de sua expressão
Desperta gênio pintor
Mostra teu talento, revela o dom
Deixa a estrela guiar
Faz do firmamento, seu eterno lar


Solto no céu feito pipa a voar
Quero te ver qual menino feliz
Planta a semente do sonho em verde matiz
Emoção, me leva...
Livre pincel a deslizar
Vou navegar, desbravador
Um errante sonhador
Voar pelas asas de um anjo
Num céu de azulejos pedir proteção
Vida de um retirante
No sol escaldante que queima o sertão


Moinhos vencer... Histórias de amor
Riscar poesias em lápis de cor
Você, que do morro fez vida real
Pintou nossos lares num lindo mural
Você, retratando a alma, se fez ideal
Meu samba canta mensagens de "Guerra e Paz"
Seu nome será imortal em nosso Carnaval
É por ti que a Mocidade canta
Portinari, minha aquarela
Rompendo a tela, a realidade
Nas cores da felicidade
-------------------------
Mais textos sobre Candido Portinari neste blog:


 Candido Portinari no MAM de São Paulo
 Um samba para Portinari
 Portinari de todos os tempos


Links para o Projeto Portinari:


Projeto Portinari
Paineis Guerra e Paz


-------------------------


Veja abaixo o video onde o presidente Lula, na ONU, apresentou os paineis GUERRA e PAZ de Portinari: