segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O registro das cidades pelos desenhistas urbanos

Vista de Delft, de Jan Vermeer, 1660-61, óleo sobre tela, 96,5 x 177,5 cm, Cabinet Royal de Peinturesm La Haye
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Artigo publicado originalmente na Revista Princípios n. 120, setembro de 2012
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Há dois anos, tomei conhecimento a respeito dos desenhistas urbanos reunidos no site com o título Urban Sketchers. São pessoas que começam a se agrupar, em vários lugares do mundo, simplesmente para fazer desenhos de observação de suas cidades, ou das cidades por onde passam em suas viagens. Reunidos anualmente já no III Simpósio Internacional, que este ano aconteceu na República Dominicana, eles começaram um movimento de interação, de troca de experiências, juntando gente das mais diferentes línguas para se encontrarem numa mesma linguagem: a dos que desenham suas cidades e suas experiências pessoais com elas.

Aqui no Brasil, após o II Simpósio Internacional de Lisboa, foi criado o movimento – e o site – dos desenhistas urbanos brasileiros, numa iniciativa de Eduardo Bajzek, João Pinheiro e Juliana Russo, três artistas com anos de experiência na arte do desenho de observação. Por enquanto, esse movimento está mais concentrado em São Paulo, mas vários Estados brasileiros já possuem algum correspondente desenhista urbano. A intenção desse grupo – do qual também faço parte – é poder abarcar todos os Estados com pelo menos uma pessoa como correspondente desenhista. Nossa ideia é organizar encontros estaduais, regionais e nacional dos desenhistas urbanos.

Desenho meu no Pátio do Colégio, 2012
Mas o grupo é ainda maior do que os Urban Sketchers. Em várias cidades do Brasil e do mundo, pessoas – individualmente ou em grupo – tem desenhado o cotidiano de suas ruas, bairros e cidades, a partir da observação direta, seja nas ruas ou em ambientes internos como bares, bibliotecas, casas, livrarias, shows, teatros, parques. São desenhos que contam a história das cidades e das pessoas que moram nelas, ajudando a dar um olhar mais humano para essas aglomerações onde convivem milhares, senão milhões de pessoas.

Mas essa forma de prática artística não é uma novidade. Somente para dar dois exemplos: o pintor holandês Jan Vermeer (1632-1675) registrou em sua pintura a cidade holandesa de Delft, por volta de 1660. Essa pintura de Vermeer (acima), além de deixar um registro daquele tempo, inspirou o escritor francês Marcel Proust, que dedicou uma parte do seu livro Em Busca do tempo Perdido a falar sobre essa obra que o apaixonava. Um segundo exemplo mais próximo de nós é o do artista francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que viveu 15 anos aqui no Brasil, integrando a Missão Francesa, e fez dezenas de desenhos e aquarelas enquanto percorria os Estados fazendo registros da costa brasileira, das casas, das paisagens da mata nativa, assim como retratos de índios, negros e brancos em seu cotidiano. Debret registrou até mesmo as festas e tradições populares, deixando uma rica documentação sobre um período histórico brasileiro que já se perdeu no tempo.

Três desenhistas urbanos de São Paulo

Para tornar este artigo um pouco mais rico, resolvi conversar com três grandes desses “croquiseiros” urbanos que moram e trabalham nessa grande metrópole brasileira, uma cidade onde todos os números tendem a cifras enormes: milhões de carros trafegam pelas ruas, milhões de pessoas se deslocam diariamente de casa para seus locais de trabalho, centenas de bairros formam esta cidade, com milhares de ruas, milhões de casas, milhares de pessoas se cruzando em suas avenidas...

Carla Caffé

Obra de Carla Caffé para a exposição
"A(e)rea Paulista", na Sala Funarte e na
passagem subterrânea da Rua da Consolação
A primeira que entrevistei foi a arquiteta Carla Caffé, formada pela FAU-USP no início da década de 1990, que foi também diretora de arte do filme “Central do Brasil”, além de outros filmes e peças de teatro. Carla mantém um ateliê em São Paulo, onde desenvolve diversos projetos de desenho, assim como de arquitetura e direção de arte.

Carla Caffé tem 47 anos e começou a desenhar na rua desde cedo. Ela mesma conta que desde os tempos de colégio já andava com seu caderno de desenho e até mesmo quando estava esperando pelo ônibus “era um convite para rabiscar” o que via à sua volta. “Eu tinha mais vontade de desenhar na rua do que em casa”, diz ela.

Foi fazer Arquitetura já “com a perspectiva de que não seria arquiteta”, mas com a intenção de aproveitar essa formação acadêmica para que pudesse continuar desenhando. Mas ela diz gostar muito da Arquitetura pois aprendeu muito como pensar a partir de seus conceitos: espacialidade, proporcionalidade, circulação, lógica...

Mas uma das experiências mais marcantes que Carla Caffé teve no início de sua carreira de desenhista urbana, foi a de ter conhecido uma cidade como Nova York, quando foi acompanhar a Companhia de Teatro Ópera Seca. Ela complementa: “Nos intervalos do trabalho, eu saia para desenhar nos museus. Mas as ruas de New York são mais interessantes que os museus, então passei a desenhar nas ruas como forma de conhecer e absorver o lugar. Um desenho de investigação, de registro. Nessa época sonhava em ser Corto Maltese, ou melhor Hugo Pratt, desenhista de Corto que viajava desenhando as estórias em Quadrinhos”. Ela tomou gosto por isso e não parou mais de desenhar, quando voltou a São Paulo.

Desenho de Carla Caffé
E me contou que sempre se interessou pelo tema do Urbano, pela vida urbana, que a fascina “assim como um gesto arquitetônico”. “Saio nas ruas e os pensamentos que me invadem geralmente são questões urbanas. Por ora estou muito envolvida com a questão da mobilidade urbana”, acrescenta ela, que aponta que esse movimento de incentivo ao uso cada vez maior das bicicletas nas cidades podem “desenhar” cidades mais humanas.

Pergunto a Carla como ela vê esse tipo de registro de observação das cidades por onde passa? E ela diz que acha muito importante, porque “o que o desenho registra é diferente do registro fotográfico. O desenho tem a questão de permanência, da escuta, um tempo diferente de um clique. Com o desenho você também pode aproximar, afastar, inverter, costurar, pode moldar a paisagem de acordo com o seu coração.” E complementa dizendo que a Arte é parte intrínseca de sua vida, uma “forma de sanidade”, lembrando o que diz a artista Louise Bourgeois. Para Carla Caffé, viver numa cidade tão grande como São Paulo e poder desenhá-la é uma forma de “dar um sentido a tudo isso, a essa passagem pelo plano terrestre"

Carla Caffé publicou, em 2009, um livro com desenhos que ela fez da Avenida Paulista em São Paulo, pela Editora Cosac&Naify.

Hugo Paiva

Depois de Carla, me dirigi a outro arquiteto também formado pela FAU, neste ano de 2012. Seu nome é Hugo Alves Paiva, de apenas 29 anos de idade, mas que já projeta grandes planos como desenhista urbano para sua vida.

Sketch de Hugo Paiva do centro de São Paulo
O sonho de Hugo é poder fazer uma longa viagem ao redor do mundo com um sketchbook (caderno de desenho) nas mãos. Em sua recente experiência acadêmica, Hugo teve que apresentar um trabalho de conclusão de curso que ele voltou para o desenho urbano. Passou por várias cidades brasileiras, de São Luís do Maranhão a Fortaleza, no Ceará, além de outras cidades, registrando o que via em seu caderno de desenho. O resultado disso ele colocou num livro que conta toda essa experiência como uma espécie de solitário peregrino desenhador das ruas. De São Paulo especialmente, onde mora.

Hugo conta que começou a desenhar antes mesmo de saber escrever. “Minhas primeiras referências relacionadas ao “drama”, que mais tarde eu redescobriria nos quadros de Rembrandt, ou nos edifícios de Frank Lloyd Wright de uma forma muito mais intensa; ou aos feitos heroicos muito melhor construídos nas epopeias de Ulisses ou Hércules, foram os programas vespertinos de super heróis japoneses, como o Jaspion ou Changeman. A emoção que eu tinha ao ver os gigantes daqueles programas infantis em conflito, que hoje me lembram os gigantes magistralmente pintados por Goya, de certa forma me acompanham até os dias de hoje. Sempre tento passar este sentimento aos trabalhos que faço.”

Desenho de Hugo Paiva
Ele diz que resolveu seguir pela carreira da Arquitetura por causa de seu interesse relacionado aos edifícios que, desde sua infância, o impressionavam pela grandiosidade e imponência. “Porém, apesar de ter em mente a responsabilidade social que temos como profissionais dessa área, como o problema latente de moradias, ou mesmo o crescimento desordenado de nossas cidades a cada dia mais doentes, acabei me reaproximando de questões mais relacionadas ao desenho e à percepção da imagem da cidade”, ele diz.

Como eu, Hugo Paiva faz parte do movimento dos Urban Sketchers brasileiro e sai para desenhar nas ruas de São Paulo, ou sozinho, ou unido ao nosso grupo que se reúne mensalmente em algum canto de São Paulo para desenhar. E acrescenta: “Apesar de ter feito alguns desenhos e croquis durante os exercícios propostos pela faculdade, foi no ano de 2010 que comecei a realizar essa atividade de uma forma mais sistematizada. Frequento o ateliê do pintor Mauricio Takiguthi há algum tempo, e durante as conversas nas aulas, surgiu a ideia de sair e desenhar pelas ruas. O arquiteto Eduardo Bajzek, também aluno do Takiguthi, já tinha experiência em fazer registros urbanos e me passou muito do que eu atualmente sei. Após alguns encontros, os desenhos começaram a se suceder de forma natural.”

Desenho de Hugo Paiva
Nessa relação com outros artistas, Hugo considera muito importante essa troca de experiências, as possibilidades de diálogo que se abrem. “Sair pelas ruas e desenhar, muda de sentido a cada momento. Mas basicamente, o prazer está em, através das ferramentas do desenho, traduzir os sentimentos dos lugares, além do desafio de registrar a dança das luzes no ambiente urbano.”

Hugo acrescenta que o ato de desenhar na cidade “nos coloca na condição de estrangeiros ao nos recortarmos da realidade” e que fazer isso em cidades diferentes “nos coloca duplamente nessa situação”. Ele cita o escritor algeriano Albert Camus que disse que isso “amplifica nossa percepção, faz com que observemos as coisas de uma forma muito mais intensa. Assim como Eugène Delacroix – continua Hugo – que viu em Marrocos muitos motivos dos quadros que viria a pintar, desenhar em outras cidades nos traz a experiências muito intensas”.

João Pinheiro

O terceiro artista que escolhi para entrevistar sobre o tema, é o ilustrador João Pinheiro. Sua história de vida, sua formação, seu caminho como desenhista, é diferente dos dois artistas anteriores, mas o desejo que o move é o mesmo que nos move a todos os que gostamos de registrar aquilo que vemos em nossas cidades.

Desenho de João Pinheiro
João Pinheiro tem 31 anos e mora na Zona Leste de São Paulo. “Até os meus 15 anos esse foi o meu mundo conhecido, minha Macondo, onde vi e aprendi a maior parte do que sei da vidinha da gente”, diz ele.

Desde criança, João se interessou pelos desenhos das revistas em quadrinhos: “desenhava em folhas de sulfite, direto com caneta Bic, sem esboço, e depois colava as folhas e fazia a capa com cartolina”, conta ele. Aos 13 anos se matriculou em dois cursos na Oficina Cultural Alfredo Volpi, que fica no bairro de Itaquera, que “felizmente funciona até hoje”. Naquela época, 1994, ele começou a aprender os fundamentos do desenho e da pintura: anatomia, perspectiva, movimento e também a escrever roteiros e todo processo de criação de uma história em quadrinhos.

Foi através do professor de pintura, Jair Glass, que João Pinheiro conheceu a história do pintor Alfredo Volpi. “Na época, lembro que não gostei muito das suas pinturas, mas fiquei encantado com a sua história. Parecia um romance. Um operário que virou pintor. Um pintor de paredes que pintou sua primeira obra de arte numa caixa de charutos e que mais tarde seria consagrado com o prêmio de melhor pintor nacional na segunda Bienal de São Paulo em 1953. Uma bela história. Depois de ouvi-la, pensei: ‘Quando crescer eu quero ser pintor ou desenhista ou algo mais ou menos por aí. Enfim, sei que quero trabalhar com desenho’”.
Mas sua primeira experiência com desenho de observação na rua aconteceu quando o professor o levou para desenhar uma igreja numa ruazinha perto da oficina. Eles eram 15 alunos. E João diz que esse “foi um dos dias mais felizes da minha vida e a primeira vez que fiz um desenho de observação na rua”.

Desenho de João Pinheiro
Aos 19 anos, João Pinheiro ingressou na Faculdade Paulista de Artes para cursar Artes Plásticas e voltou a fazer desenhos de observação diariamente. Seu caderno de desenho, a partir de então, nunca mais saiu de sua mochila.

Inicialmente ele desenhava como exercício, fazia esboços, anotava ideias que mais tarde pudessem ser utilizadas em pinturas ou ilustrações. “Com o tempo, depois de preencher alguns cadernos, explorar novos temas, percebi que os desenhos que eu fazia de observação tinham evoluído, meu traço tinha melhorado e eu tinha tomado gosto por observar”, acrescenta. E conta que atualmente seu trabalho pessoal está concentrado, quase que em sua totalidade, nos cadernos e nos desenhos de observação.

E afirma que o desenho de observação direta nas ruas, para ele “significa tudo o que aprendi até hoje, minha melhor escola”. E completa dizendo que sabia de antemão que tinha descoberto um caminho e não um fim, “porque o desenho urbano não tem fim”. Através da observação da cidade João Pinheiro diz que aprendeu muito, mas também viu com isso que há muito ainda o que aprender, sempre.

João Pinheiro tem predileção por desenhar pessoas no metrô, nos ônibus, assim como a arquitetura antiga e excêntrica da cidade, os postes elétricos, as árvores. “Gosto, principalmente, dos locais não turísticos, como periferias, locais abandonados e deteriorados pelo tempo”, complementa.

Essa ideia de carregar um caderno de desenho para onde quer que se vá, de desenhar nele e anotar ideias que surgem em plena área pública é uma ideia muito bonita, diz João. “Fico contente em saber que tantas pessoas hoje em dia compartilham dessa minha paixão, aliás, um número cada vez maior”.

E se pergunta: “O que essas pessoas estão fazendo? Registrando suas vidas? Tentando ver além da camada grosseira da nossa percepção comum? Registrando seu tempo? Anotando lembranças? Treinando o seu desenho? Criando arquivos de paisagens na mente? Transformando o olhar para as futuras gerações? Certamente tudo isso e muito mais.”

Desenho meu na Estação da Luz
Assim como para Hugo Paiva, João Pinheiro diz que desenhar o cotidiano é um “exercício de sentir-me um estrangeiro em minha própria terra e com isso conseguir ver as coisas cotidianas por outro prisma, completamente novo, além do superficialmente conhecido.” Quando se desenha algo que se vê diariamente pelo caminho, sejam pessoas ou lugares conhecidos, é como se os estivesse vendo pela primeira vez, é como se começasse a entendê-los. E João aponta que essa prática do desenho torna a pessoa cada vez mais criativa, lembrando-se do que disse o arquiteto e paisagista James Richards: “Não há melhor maneira de alimentar a criatividade do que desenhar”.

Esse universo do desenhista das ruas e cidades é parte do grande universo da arte, que mobiliza as pessoas há séculos. João Pinheiro lembrou uma frase do diretor de cinema russo Andrei Tarkovski que escreveu em seu livro Esculpindo o tempo: “De qualquer modo, fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte – a menos, por certo, que ela seja dirigida ao ‘consumidor’ como se fosse uma mercadoria – é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão.”

João Pinheiro é o autor, roteirista e ilustrador, da HQ Kerouak, publicada em 2011 pela Devir Editora, além de diversos livros de ilustração infantil, entre os quais o mais recente: uma adaptação do conto O Espelho de Machado de Assis para a linguagem dos quadrinhos, com roteiro do poeta e escritor Jeosafá Gonçalves.
Desenho de João Pinheiro, uma rua da zona leste de São Paulo
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Para saber mais:

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Neoconservadorismo: há algo no ar além dos aviões de carreira...

Quadro de William Blake, no qual
Urizen reza diante do mundo que
ele mesmo criou
Diria o Barão de Itararé a respeito de uma intuição de que algo muito estranho está acontecendo, de forma um tanto velada ainda, mas que se escancara as poucos.

Na quarta-feira, dia 12 de setembro, Jorge Coli, professor titular de História da Arte e História da Cultura do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, fazia uma palestra dentro do ciclo “O futuro não é mais o que era”, organizado pelo filósofo Adauto Novaes, quando soube que a transmissão pela internet ao vivo tinha sido cortada. A Academia Brasileira de Letras (ABL), responsável pela transmissão, censurou a conferência quando o professor Coli apresentou a imagem de uma pintura do francês Gustave Courbet “A Origem do Mundo” (abaixo).

O tema da palestra era “O sexo não é mais o que era”, que trazia à tona o contexto atual de ascensão do conservadorismo e moralismo e como o erotismo, a sexualidade e a pornografia se localizam nestes tempos atuais. Ao apresentar o quadro de Courbet e dizer a palavra “buceta”, a transmissão foi sumariamente interrompida, por ordens da diretoria da ABL, responsável pela transmissão da palestra.

No site do ciclo "Mutações", o professor Coli publicou esta nota:

“Ontem dei uma conferência na Academia Brasileira de Letras, intitulada: Sexo não é mais o que era. Tratava-se de uma análise reflexiva sobre as noções de pornografia, erotismo e sexualidade dentro das artes. Ela sublinhava o caráter conservador do moralismo atual e criticava os puritanismos repressivos que oprimem o imaginário, e não apenas ele. A conferência deveria ter sido transmitida via internet. Soube hoje que ela foi censurada, e que essa censura teria vindo por ‘ordem da diretoria’. De início, as imagens que a ilustravam foram suprimidas da transmissão (eu começava com duas obras de Jeff Koons). E, quando citei o trecho de um autor que continha algumas palavras indelicadas (crítica de Philippe Murray ao quadro de Courbet, a Origem do mundo, publicada em 1991 na revista Art Press), a palestra foi interrompida. Ou seja, a ABL ilustrou, de modo preciso, o acerto de minha tese sobre a hipocrisia pudibunda (termo no qual certamente ela ainda censurará as duas últimas sílabas) de nosso tempo. Não apenas os acadêmicos são imortais: eles também não têm sexo, como os anjos.”

"A Origem do Mundo",
pintura de Gustave Courbet,
óleo sobre tela, 1866, 46x55cm,
Museu d'Orsay, Paris.
A conferência acabou recebendo uma ilustração concreta do conservadorismo e do moralismo atual: foi censurada pela Academia Brasileira de Letras, uma entidade que, em tese, deveria ser, como a Universidade, um local de reflexão, de estudo, de pesquisa sobre a contemporaneidade em todos os seus aspectos. Mas falou mais alto o falso moralismo, o conservadorismo gritante, incapaz de ouvir palavras ligadas ao sexo e incapaz de ver uma imagem do sexo feminino, pintada por um artista realista, sem incomodar-se com seus próprios recalques e puritanismos.

Vivemos tempos complicados, com muitas coisas no ar, além de aviões e helicópteros... Cabe perguntar o que há de mal em falar de sexo numa sociedade que vende dezenas de revistas de sacanagem em qualquer banca de jornal? Uma sociedade que produz vídeos pornográficos disponíveis a qualquer um em inúmeros sítios da internet? Uma sociedade que oprime o imaginário e o simbolismo que nos enriquecem como seres humanos, merece, sim, cada vez mais repúdio e denúncia, por seu puritanismo repressor, seu conservadorismo direitista, seu moralismo intimidador.

Conservadorismo em ascensão

O medo começou com Regina Duarte e se
espalhou 
pela classe média:
medo do julgamento eterno?

(Quadro"O ancião dos dias", de William Blake)
Neste mesmo período em que está acontecendo este ciclo “O futuro não é mais como era”, acontece também, em São Paulo, um outro ciclo cujo tema é “A ascensão conservadora em São Paulo”, organizado por estudantes do movimento “Em defesa da Educação Pública”.

E esses dois eventos que estudam a sociedade brasileira atual, têm muito em comum.

A filósofa da USP Marilena Chauí foi uma das convidadas para o primeiro seminário, que aconteceu no final de agosto. Em sua palestra, ela chamou a atenção para o caráter ainda autoritário da sociedade brasileira, que transforma todas as diferenças sociais em desigualdades, de uma forma que as desigualdades são tratadas como se naturais fossem. “Ela opera com a discriminação e o preconceito de classe, religioso, sexual, profissional e racial”, diz a professora.

A sociedade brasileira - continua Marilena Chaui em sua palestra - é “extremamente violenta. Mas tem a tendência a situar a violência apenas na região da criminalidade”. Mas essa violência está presente em todos os tipos de violência física e psíquica que uma pessoa é capaz de cometer contra a natureza de uma outra pessoa, explica a professora. Em nossa sociedade, o grau máximo da violência - continua ela - é quando uma pessoa não reconhece a humanidade do outro. Uma sociedade que enxerga as pessoas de profissões mais humildes - por exemplo, empregadas domésticas, porteiros, funcionários de padaria, faxineiros, pedreiros - como se fossem “coisa”, como seres irracionais, subalternos e que devem permanecer mudos, inertes e passivos.

Individualismo atual, reforçado pelas ideias
conservadoras e neoliberais, aprisionam os
indivíduos e causam inércia e paralisação
(quadro de William Blake)
“Essa sociedade assim estruturada, na hora em que recebe o impulso neoliberal, isso funciona para ela como a mão e a luva, como a sopa no mel”, continua Chaui, que explica: “Porque uma das características mais importantes do neoliberalismo é que ele opera pelo encolhimento do espaço público e pelo alargamento do espaço privado. Seja o espaço privado do mercado, seja o espaço da vida privada”.

E ela disse que a ideologia da classe média hoje é a ideologia da ética, como se ética se resumisse a um conjunto de regras para o bom funcionamento de uma empresa. “A sociedade paulistana pensa que ética é isso: um conjunto de normas e preceitos que lhes dá o controle cotidiano de todos os comportamentos”. Mas Ética não é isso, diz a filósofa. Ética é “o exercício da consciência, da liberdade e da responsabilidade”. Com esse tipo de visão, está havendo uma deterioração do sentido da ética, do sentido da vida social e das relações interpessoais.

Por isso, esse tipo de sociedade não está interessada no Saber e no Conhecimento. “O que ela quer é um diploma”, complementa Marilena Chaui. Saber e Conhecimento trazem mudanças estruturais nos comportamentos sociais, mas isso seria uma ameaça a uma classe média cujo imperativos fundamentais, cujo núcleos ideológicos são a Ordem e a Segurança.

Neste mesmo sentido, foi a palestra do professor André Singer, cientista político da USP.

Ele lembrou que a grande onda neoliberal iniciada no final dos anos 1970, foi gerando esse sentido conservador “porque está a serviço daquilo que o capitalismo tem de mais destrutivo: a mercantilização de todas as áreas da vida, o individualismo feroz, a concepção de que os problemas sociais se resolvem pela iniciativa privada”. E no Brasil observa Paul Singer, essa onda neoliberal teve reflexos contraditórios.

Ele faz um histórico da influência das ideias da esquerda aqui no Brasil que, segundo sua visão, predominava fundamentalmente em vários setores da cultura, e que teria se prolongado até os anos 1990. “A gente está vivendo ainda agora as ondas de choque do neoliberalismo” de ideias de direita que tem uma certa repercussão de massas: “na classe media fundamentalmente”.

A Nau dos Insensatos, de Jerônimo Bosch
Podemos ver isso como parte do pensamento de tipo neoliberal, individualizante, mercantilizante, privatizante que traz repercussões em setores de massa da sociedade. “O pensamento de direita ainda está se estruturando, mas os sinais são muito claros: colunistas, autores, pessoas que tem um público e que defendem esses pontos de vista, com repercussão, coisa que não havia até pelo menos até os anos 1990”, diz Singer.

E ele aponta um reflexo dessa onda neoliberal no fenômeno religioso, que sofreu uma intensa mudanças na história mais recente do Brasil: “da igreja católica - lembra ele - que era muito progressista” e com isso influenciava amplas camadas da população, incluindo a classe média, “à entrada do evangelismo”. Ele observa que a igreja católica mudou muito com a eleição do papa João Paulo II e Bento XVI, mudando de lado, “influenciando vários setores”. Mas as igrejas evangélicas - acrescenta - se “casam muito com  pensamento neoliberal, com o discurso da ascensão individual, da redução dos espaços públicos, isso sem falar em aspectos morais”.

Essa “onda conservadora ainda está em curso no Brasil”, aponta Paul Singer. Segundo ele, a melhoria nas condições de vida do povo, os 35 milhões de brasileiros que ascenderam socialmente, tem despertado na classe média um “ódio ao governo”. E a classe média, diz ainda André Singer, “se vira contra as ideias de esquerda que tinha na época da ditadura, quando se colocou do lado dos movimentos de resistência.” Mas agora está havendo uma “intensa polarização na sociedade brasileira como não se via desde 1964”, o que ele chama da “onda de médio prazo”. Quando aconteceu a famosa Marcha da Família organizada pela classe média paulistana em 1964, estava havendo uma intensa mobilização dos trabalhadores. 

Atualmente, diz ele, estamos vivendo um momento semelhante, do ponto de vista ideológico, àquele de 1964: a classe média destila seu ódio a um governo que promoveu a ascensão social de 35 milhões de trabalhadores. E mesmo uma parcela desses 35 milhões se juntou ao pensamento da classe média, auxiliada pelas igrejas evangélicas, que lhes convencem de que sua ascensão, sua prosperidade se devem a esforço pessoal. E se juntam contra aqueles que ainda são pobres e recebem os benefícios dos programas sociais do governo, como o bolsa-família. Mas André Singer diz que isso é uma onda de curto prazo.

No cômputo geral vivemos em um período de ascensão do conservadorismo, que traz consigo toda uma carga moralista, controladora, repressora, manipuladora da opinião pública. Para isso, o papel dos meios de comunicação de massa é fundamental. Na televisão imperam canais abertos e pagos com programas de igrejas evangélicas disseminando ideias de individualismo neoliberal. O monopólio midiático resumido a poucos órgãos de imprensa - Rede Globo, Estadão, Folha, Editora Abril - promove uma verdadeira militância política de direita, buscando influenciar toda a sociedade com as ideias que ainda são de um Neoliberalismo retardatário, com a defesa das privatizações de toda a ordem, do consumismo, da indústria cultural, da mercantilização das artes, do incentivo à despolitização social e individual, dos ataques aos serviços públicos.

Dentro desse contexto, a censura à palestra de Jorge Coli mostra uma sociedade incapaz de refletir sobre si mesma. Uma sociedade com medo. Com medo do quadro de Courbet. Com medo da politização das pessoas. Com medo da perda de controle sobre o cotidiano dos indivíduos. Com medo do futuro.

Ou - como escreveu a filósofa Marilena Chaui no capítulo “Sobre o Medo” do livro “Os Sentidos da Paixão” - MEDO do “alto celestial que nos vigia”, do “baixo infernal que nos vigia”.

Os monstros que a sociedade cria se voltam contra ela e contra os indivíduos
(Gravura "O sonho da razão produz monstros" de Francisco Goya)