sábado, 7 de setembro de 2013

Edward Hopper

"Nighthawks" (Aves noturnas), Edward Hopper, 1941, óleo sobre tela, 152 x 84 cm

“Nighthawks, aves noturnas, falcões notívagos, gaviões da noite, essa gente que, como nós, se distrai e é engolida pelo vazio em uma noite deslocada do tempo, em que tudo pode acontecer, inclusive nada.
(...)
- Vai ver foi. Numa noite dessas, não descreio de nada, nem de alçapões, nem de vazios emolientes, nem de mortos que pintam vazios às altas horas da madrugada.”

O trecho acima foi extraído do livro do meu amigo escritor Jeosafá Gonçalves “Era uma vez no meu bairro - Zona Sul”. No capítulo 9 do romance há um diálogo que parece sair da tela do pintor realista norte-americano Edward Hopper “Nighthawks” (tela acima). Pintada em 1942, logo após o ataque japonês a Pearl Harbor, no final de 1941. Era o começo do envolvimento dos EUA na II Guerra Mundial.


Um de seus desenhos expostos
no Whitney Museum
Mas nestes meses atuais, até 6 de outubro, o Museu Whitney de Arte Americana, de Nova York, Estados Unidos, está fazendo uma exposição concentrada nos desenhos e no processo criativo de Edward Hopper. Esses desenhos revelam sua evolução e seu interesse permanente nos espaços: ruas, cinemas, escritórios, quartos, estradas. São parte de uma coleção do museu com mais de 2.500 desenhos doados por sua viúva, Josephine Hopper. Muitos deles nunca foram expostos antes. 

Edward Hopper foi um pintor realista norte-americano. Mais conhecido por suas pinturas a óleo, ele também foi aquarelista e gravador. Em suas cenas urbanas e rurais, e também nas pessoas solitárias de muitos de seus quadros, vemos refletida a sua visão pessoal da vida moderna. Aquela melancolia de fim de tarde, até certo ponto "aliviada" pelos encontros sociais após o expediente (os happy-hours), o peso na alma, a angústia que às vezes faz doer o corpo físico, coisas assim estão presentes na obra deste taciturno artista norte-americano que se manteve fiel ao realismo até o fim da vida. 

Para quem quisesse compreender qual era o motor que lhe inspirava a pintar, Edward um dia respondeu: “A resposta toda está lá na tela.” 

Quem foi Edward Hopper


Autorretrato, 1925-30, óleo s/ tela
Edward Hopper nasceu em Nova York, EUA, no dia 22 de julho de 1882. Seus pais, de descendência holandesa, foram Elizabeth Griffiths Smith e Garret Henry Hopper, um comerciante de secos e molhados. Teve uma vida até certo ponto confortável, como uma família de classe média. Edward e sua única irmã Marion estudaram tanto em escolas públicas quanto privadas e tiveram uma educação rígida. Seus pais eram da igreja Batista. Hoje, a casa onde viveram os Hopper é um centro cultural, a Edward Hopper House Art Center, aberta à comunidade, sem fins lucrativos, com exposições, workshops, palestras e eventos especiais.

Hopper foi um aluno aplicado e mostrou talento para o desenho desde cedo. Recebeu muita influência de seu pai, um intelectual que amava as culturas russa e francesa. Desde cedo, seus pais encorajaram a sua arte, fornecendo-lhes materiais artísticos, revistas e livros de arte. Na adolescência, Hopper já trabalhava bastante, desenhando com materiais diversos, como carvão, e pintando aquarelas e quadros a óleo. Também já fazia charges políticas. Com apenas 13 anos, em 1895, assinou sua primeira pintura a óleo, que ele intitulou “Barco a remo em Rocky Cove”. Nessa época ele já se interessava muito pelos temas marítimos. Chegou mesmo a pensar em seguir uma carreira ligada à marinha, mas logo após sua formatura resolveu seguir carreira artística.


Desenho de Edward Hopper
Hopper começou seus estudos de arte em um curso por correspondência em 1899. Logo, porém, ele foi transferido para o Instituto de Arte e Design de Nova York. Estudou nesta escola durante 6 anos, tendo também como professor o pintor William Merritt Chase, que o instruiu na pintura a óleo.

Outro de seus professores foi o também artista realista Robert Henri, que dizia que arte e vida devem caminhar juntos. Henri incentivava seus alunos a usar sua arte para "agitar o mundo". E dizia: "Não é o tema que conta, mas o que você sente a respeito dele". Dessa maneira, Hopper foi sendo influenciado por seus mestres, que incluiram também os notáveis ​​artistas George Bellows e Rockwell Kent. Alguns deles, incluindo o próprio Robert Henri, se tornaram membros da "The Eight", também conhecida como Escola Ashcan de Arte Americana.

A Escola Ashcan foi um movimento artístico no Estados Unidos do início do século XX, conhecida por retratar as cenas do cotidiano em New York, principalmente a vida nos bairros mais pobres da cidade. Os artistas mais famosos que trabalharam neste estilo incluía Robert Henri (1865-1929), George Luks (1867-1933), William Glackens (1870-1938), John Sloan (1871-1951), e Everett Shinn (1876-1953), alguns dos quais se conheceram estudando juntos sob a orientação do renomado pintor realista Thomas Anshutz na Academia Pensilvania de Belas Artes. Outros deles se reuniam na redação do jornal da Filadélfia, onde trabalharam como ilustradores.


Estudo para "Nighthawks"
Os artistas da Escola de Ashcan não emitiram manifestos, até porque não eram um grupo unificado com idênticas intenções e objetivos. Alguns eram politizados, e outros não. O que os unia era o desejo de mostrar a verdade sobre o viver na cidade e sobre a vida moderna. Robert Henri, um dos líderes principais deste movimento, queria que a arte fosse semelhante ao jornalismo. Ele queria pintar e ser “tão real quanto a lama, como o cocô dos cavalos congelados pela neve no inverno”. Ele dizia a seus amigos e alunos que deviam se inspirar no espírito de seu poeta favorito Walt Whitman, e "não ter medo de ofender o gosto contemporâneo". E acrescentava que a vida da classe trabalhadora e da classe média forneciam temas muito mais interessantes para pintar do que a vida e os salões da burguesia.

Hopper, portanto, amadureceu como pintor em meio a essas ideias. Durante seus anos como estudante, ele pintou dezenas de nus, estudos de natureza-morta, paisagens e retratos, incluindo seus autorretratos. 


"Sombras da noite", gravura de Edward Hopper
Em 1905, conseguiu um emprego temporário numa agência de publicidade, onde criou desenhos para capas de revistas. Depois dessa experiência, Hopper passou a detestar ilustração. Mesmo assim dependia disso para se manter.

Hopper fez três viagens à Europa, concentrando-se em Paris, onde ele queria aprofundar seus estudos de pintura, assim como o fizeram dezenas de outros seus conterrâneos antes e depois dele. Mas lá estudava sozinho e não parecia muito influenciado pelas novidades da arte daquele período. Mais tarde, ele disse que não se lembrava de ter ouvido falar de Picasso nenhuma vez. Mas tinha ficado muito impressionado com Rembrandt, principalmente pelo quadro “Ronda noturna” que ele disse que foi "a coisa mais maravilhosa que já tinha visto”.

Após esse contato com as telas de Rembrandt, Hopper começou a pintar cenas urbanas usando uma paleta com tons escuros. Ainda experimentou uma paleta clara como as dos impressionistas, mas voltou às cores escuras, com as quais ele se sentia mais confortável. Hopper passou a maior parte de seu tempo em Paris desenhando ruas e cenas nos cafés. Também ia ao teatro. Diferentemente de muitos de seus contemporâneos que imitavam as abstrações cubistas, ele escolheu continuar na linha da arte realista.


"Soir bleu", Edward Hopper, óleo sobre tela
Depois de retornar de sua última viagem à Europa, alugou um pequeno studio em Nova York, e começou a trabalhar para definir seu próprio estilo. Mesmo contra a vontade, voltou -se para a ilustração. Sendo free-lancer, foi obrigado a correr atrás de trabalho, batendo nas portas de revistas e agências. Nesse período, não conseguia pintar. Seu amigo Walter Tittle, ilustrador como ele, descreveu o estado emocional deprimido de Hopper: “Sofrendo... com longos períodos de indomável inércia, sentado por dias seguidos diante de seu cavalete em uma infelicidade desamparada, sem conseguir levantar uma mão para quebrar o ‘feitiço’."


Estudo para "No escritório, à noite"
Em 1912, ele resolveu ir para Massachusetts buscar alguma inspiração e fez suas primeiras pinturas ao ar livre nos Estados Unidos. Em 1913, quando da famosa exposição de arte conhecida como Armory Show, Hopper conseguiu vender sua primeira pintura, “Vela”. Tinha 31 anos. Logo se animou e pensou que iria conseguir vender mais obras. Mas se passaram muitos anos até que fosse reconhecido. 

No ano seguinte, recebeu uma encomenda para fazer ilustrações para alguns cartazes de filmes e de publicidade para uma empresa de cinema. Mesmo que ele não gostasse desse trabalho, Hopper adorava teatro e cinema, que acabaram sendo também temas para suas pinturas e influenciaram a composição de seus quadros. Em 1915, voltou-se para a gravura e produziu cerca de 70 obras. Quando podia, fazia também aquarelas ao ar livre.


Edward Hopper
Embora estes tenham sido anos frustrantes, ele não deixa de ter algum reconhecimento. Em 1918, Hopper foi agraciado com o prêmio Prize Board por seu cartaz sobre a guerra, "Esmagar Huno". Além disso, ele expôs obras suas em três ocasiões: em 1917, na Sociedade de Artistas Independentes; em janeiro de 1920, numa individual no Whitney Studio Club (precursor do atual Museu Whitney); e em 1922, novamente no Whitney. Em 1923, recebeu dois prêmios por suas gravuras : o Prêmio Logan da Chicago Society of Etchers, e o Prêmio WA Bryan.

Em 1923, conheceu sua futura esposa Josephine Nivison, artista e também ex-aluna de Robert Henri. Casaram-se um ano depois.

O artista voltou-se mais uma vez para pintar e desenhar a arquitetura norte-americana, tanto urbana quanto rural. Aos quarenta e um anos, Hopper já vivia de seu trabalho de pintura. 

Continuava um homem recluso, de poucas palavras, taciturno, um tanto melancólico. Vivia uma vida simples, longe dos eventos sociais que já lhe davam fama. Passou pela década de 1930 produzindo muito. Durante a década de 1940, passou um período de relativa inatividade, mas foi quando pintou um de seus quadros mais famosos, o "Nighthawks" acima. Passou por vários problemas de saúde. Na década de 1950 e início de 1960, criou várias de suas obras mais importantes, entre elas “Primeira fila da orquestra” (1951); “Manhã de sol” ; “Hotel by a Railroad”, 1952; “Intervalo”, em 1963.


"Autòmato", 1927, óleo s/ tela
Sua vida foi relativamente calma e ordenada. Não passou por mudanças bruscas e mesmo que tenha passado curtos períodos na Europa, ele passou mais de 50 anos, até sua morte, trabalhando em seu ateliê da rua Washington Square North, no último andar do prédio, em Manhattan, Nova York. Teve uma vida modesta ao lado de sua esposa, Jo, também pintora.

Sua pintura desde o início reflete seu interesse na tradição dos mestres holandeses, especialmente Rembrandt e Franz Hals e, dos franceses, seu fascínio por Édouard Manet. Paisagista e interessado em pintar casas e prédios, Hopper se interessou muito também pela imagem da mulher. Em muitos de seus quadros, mulheres solitárias, muitas vezes nuas, parecem representar a solidão humana diante de um mundo que crescia muito e que parecia engolir o sujeito. Sua mulher também foi modelo para suas pinturas muitas vezes.

Hopper morreu em sua casa, em Nova York em 15 de maio de 1967. Sua esposa, que morreu dez meses depois, doou sua coleção com mais de três mil obras para o Museu Whitney de Arte Americana.

Edward Hopper manteve-se fiel a seu estilo figurativo e realista, como o fizeram tantos outros pintores, norte-americanos ou não, entre eles Lucian Freud. Ele se manteve coerente a uma máxima de Wolgang von Goethe, a qual citava e concordava: 

"O início e o fim de qualquer atividade artística é a reprodução do mundo à minha volta através do mundo dentro de mim..."


"Moça costurando", Edward Hopper, 1921, óleo sobre tela

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Desenho Pictórico e Linear

Detalhe do quadro "Moça com brinco de pérola", Jan Vermeer

Na quarta-feira, dia 21 de agosto, estive na PUC de São Paulo para fazer uma palestra para os alunos do professor Luís Carlos Petry, do curso de Tecnologia e Jogos Digitais. Eles já vêm estudando os mestres, neste semestre, especialmente Vermeer e Rembrandt. Assistiram aos filmes “Moça com brinco de pérolas” de Peter Webber e “A ronda noturna” de Peter Greenway. Depois do filme sobre Vermeer, eles tiveram uma palestra sobre esse filme com a pesquisadora Cristina Sisigan, da Universidade do Porto, Portugal. Na sequência, a minha palestra sobre “Desenho Pictórico e Linear” e minhas experiências de estudo da pintura de Rembrandt e Vermeer. Abaixo, um resumo do que falei para eles.


Detalhe de pintura do Paleolítico superior
Para começar, é sempre bom lembrar da história. Há mais de 35 mil anos antes de Cristo, o ser humano começou a fazer seus primeiros desenhos nas paredes das cavernas onde viviam. Esses artistas da pré-história que decoraram abrigos e cavernas exerceram seu talento no Paleolítico superior sobre um período em torno de 25 mil anos: do Auriaciano (ou Aurignaciano - 35 mil a.C.) ao Madaleniano (em torno de 13 mil anos a.C). Desde esses primeiros desenhos e pinturas, nós temos buscado ampliar nossos conhecimentos sobre o mundo em que vivemos, e desenhamos e pintamos o que vemos desse mundo.


O ser humano inventou a linha para traçar seus desenhos, uma abstração que não existe na natureza. Mas ao traçar desenhos, seja no papel seja em outro meio qualquer, o ser humano está descrevendo também, através do desenho, o mundo que o rodeia.


Escultura de Michelangelo: David
Mas vamos dar um salto grande da pré-história ao período do Renascimento italiano, por volta dos séc. XIV e XVI. Nessa época, se desenvolveu a arte de observação da natureza, mas que pretendia ir além da desordem das aparências para encontrar a ordem subjacente no mundo. O modelo era a antiguidade clássica da Grécia e de Roma e seus ideais de Beleza e Perfeição. Naqueles longínquos tempos, a beleza do corpo humano era um ideal a ser buscado. Os atletas se desenvolviam na cultura física, os filósofos buscavam interpretar o mundo e compreender a condição humana.


No Renascimento, o lugar do ser humano no mundo voltou a ser valorizado. Não se pintava a realidade como ela era, mas buscando nela a Beleza e a Perfeição. Os modelos humanos eram idealizados, as composições dos quadros deviam ser claras, limpas, buscando a Simetria. Tudo isso dava à arte produzida nesse período uma qualidade algo estática. As figuras, pintadas ou desenhadas, estavam encerradas entre fronteiras e obedeciam a regras rígidas ditadas pela intelligentzia da época, em geral os doutores da Igreja.

"Nascimento de Vênus", de Sandro Botticelli, cerca de 1483
Foi quando Sandro Botticelli, um pintor italiano, pintou o “Nascimento de Vênus”, por volta de 1483. Como se pode ver neste quadro, as figuras se encontram recortadas em relação ao fundo. Os objetos estão separados entre si. Todos se voltam para o centro, onde se encontra a deusa grega Vênus e seu corpo nu, perfeitamente imaginado. Uma prova de que novamente, mesmo em meio à moral da época, o corpo humano voltava a ocupar lugar de destaque no mundo das ideias, voltava a ter grande valor.



Neste detalhe ao lado, podemos ver as linhas traçadas por Botticelli, onde ele encerrou sua Vênus. A  pintura, em sfumato, é plana. Sombras profundas, não há. A luminosidade parece deixar tudo plano, tudo parte de uma ordem que não pode ser mexida.

Mas em seguida… as sombras desceram de vez sobre a terra, para susto de alguns. Mas para os artistas, estas sombras trouxeram novas possibilidades de penetrar ainda mais fundo na realidade do mundo. No final do século XVI, com o surgimento disso que ficou depois conhecida como Arte Barroca, o artista desejou mergulhar na multiplicidade das coisas, nos fluxos da vida, no movimento.

Suas composições passaram a ser mais dinâmicas, abertas. O movimento se fazia presente nas artes, que agora mostravam uma tendência a romper com todas as fronteiras, mostrando uma variedade de formas de expressão que eram, inclusive, adaptáveis às culturas locais. O Barroco, nascido na Itália, se espalhou pela Europa e pelo mundo. Aqui no Brasil, as montanhas de Minas Gerais inspiraram o nosso maior artista barroco, o Aleijadinho.


"Amor vitorioso", Caravaggio, 1601
Caravaggio, na Itália, mergulhou profundamente nessa nova estética. Usou as sombras mais densas a favor da luz, em seus quadros. Montava suas composições em ambientes com pouca luz e era dali que fazia com que emergissem as figuras.

Até o começo do período do Barroco, nos fins do século XVI, o desenho e a pintura ocidentais seguiam o estilo linear, onde predominava o uso de linhas - mesmo na pintura - e as composições planas, luminosas. Mesmo Leonardo da Vinci que em um tratado sobre a pintura recomendava que o artista não respeitasse os limites da linha, ele mesmo pintava desta forma. Michelangelo, o grande, inquieto e pródigo artista do Renascimento também ele respeitava as linhas. O mesmo aconteceu com Sandro Botticelli, ou com Rafael di Sanzio ou com outros grandes.

Mas Ticiano… não! A Escola Veneziana, à qual ele pertencia, era a escola da pintura cheia de cor, que ousou ir mais longe do que a Escola Florentina, que praticava um desenho e uma pintura mais lineares. Ticiano foi um dos pioneiros do estilo pictórico, rompendo os limites da linha, abrindo mão de descrever os detalhes do que via em prol do que era essencial aos olhos. A importância de Ticiano na história da arte deve-se ao fato de que ele deixou para seus contemporâneos e para a posteridade uma concepção de pintura verdadeiramente revolucionária, pois foi ele quem libertou a pintura dos limites da linha e da forma, dando todo o poder às cores.

"Madalena", de Ticiano - ainda pode ser vista no CCBB de São Paulo
Linear e Pictórico


Em seu livro “Conceitos fundamentais de história da arte”, Heinrich Wölfflin explica de forma bastante didática essas duas concepções da arte, que pode estar presente no desenho, na pintura, na escultura, na arquitetura.

Em resumo, são na verdade duas visões de mundo: uma, em que o mundo se encontra encerrado entre linhas limítrofes e com regras mais claras; a segunda, uma visão de que tudo no mundo se relaciona e há que se buscar ver a realidade como resultado de um conjunto de relações e que dá unidade a tudo.

O estilo Linear vê o mundo em linhas. O sentido do objeto é buscado primeiro no contorno dele e os olhos são conduzidos através dos limites da forma. Limites firmes, ao qual tudo se subordina.


Exemplos de pintura e desenho linear:

Estilo Pictórico


O estilo Pictórico, por seu lado, confere à forma um caráter indeterminado. Busca o movimento que ULTRAPASSA o conjunto dos objetos. As formas isoladas têm pouca importância, pois vale a Unidade do todo, o conjunto do quadro. O pictórico emancipa as massas do degradée do chiaro-oscuro e do sfumato, um jeito de pintar que alisa as tintas e cria uma sensação de profundidade através da passagem suave das sombras para a luz, ou vice-versa. No estilo Pictórico, o visível parece REAL aos olhos: o pintor reproduz a aparência do objeto / da Realidade. Mas isso não significa superficialidade, já que a aparência é o resultado de um jogo de forças distribuído em camadas em diversos níveis de profundidade. O artista pictórico vê o mundo como massas, não como linhas.



Rembrandt van Rijn (15/071606 - 4/10/1669)
Este artista holandês fez um esforço para subtrair as figuras à zona tátil e eliminar o que sobra. Para ele, os contornos não são importantes. Cada detalhe está tão ligado ao contexto maior que dá a impressão de MOVIMENTO contínuo. Rembrandt usava grossas camadas de tinta para mostrar o movimento das massas em direção à luz. Para ele quanto mais luz, mais densidade de tintas. Na medida em que ele amadurecia em idade e em produção artística, mais se tornava um exemplo de que o progresso na concepção pictórica pode caminhar paralelamente em direção a uma crescente simplicidade.

O estilo pictórico é o despertar para um novo sentido da beleza, diz Wölfflin. Quando Rembrandt pinta uma figura sobre um fundo escuro, a luminosidade do corpo parece emanar naturalmente do escuro do espaço. Franz Hals (1580 ou 1585 — 10/8/1666) não queria reproduzir mais do que o olhar apreende do conjunto. Jan Vermeer (31/10/1632 - 15/12/1675) em seu trabalho lento e meticuloso de pintor, busca expressar a fragilidade dos limites entre as formas, as suaves e profundas distinções entre a luz e a sombra.


O estilo pictórico mostra a realidade como ela é apreendida pelo olhar do artista. É a arte do “parece ser”. A pintura, em seu conjunto, tem movimento, ritmo, amplitude além da forma. O artista renuncia à ideia anterior sobre a cor local. As cores servem ao movimento. Elas são um novo ideal de beleza. A sombra já não é dominada pelo preto, mas por tons mais intensos. Luz e sombra são parte da mesma coisa.


Diego Velázquez ( 31/10/1632-15/12/1675): Retrato de Juan Pareja, 1650
À distância, tudo está completo. Próximo, só podemos enxergar as pinceladas do artista. As raízes do Impressionismo do século XIX na França já tinham sido lançadas pelos artistas holandeses. Eles já haviam descoberto o caráter pictórico da Natureza: a beleza das roupas rotas de um mendigo, de uma casa em ruínas, das águas inquietas de praias e cachoeiras, das nuvens em perene autocriação, das multidões se movimentando nas feiras e praças…


As ideias de Heinrich Wölfflin se refletem também nas do pintor realista norte-americano David Leffel, que complementa: o pintor não pinta “coisas”, pinta a luz nas coisas. Ele não vê seu modelo como um conjunto de detalhes separados, mas em termos de movimentos de massa. Não pensa em características especificas como “boca”, “nariz”, ou “olhos”; mas vê massas movendo-se para dentro e para fora. Vê movimento entre a luz e a sombra, que vai dando materialidade ao modelo. A realidade é a referência permanente do artista. Ele não pinta o que não está lá, ou o que ele não vê, mas aquilo que para ele é significativo da sua observação do mundo. Através do seu olhar, ele mostra como “pensa” o mundo, qual é sua atitude, sua capacidade de ver e de sintetizar o que vê


Estudo sobre pintura de Rembrandt feita com carvão
e lápis-carvão, em 2011
Para finalizar a conversa com os estudantes da PUC-SP, falei da minha própria experiência no estudo destes mestres, especialmente Rembrandt e Vermeer. Dois artistas holandeses que foram contemporâneos, mas que não se conheceram, e eram tão diferentes entre si. Um, voltado para o mundo externo, que adorava o teatro e produzia intensamente. O outro, Vermeer, mais lento, mais quieto, que usava pinceis pequenos para quadros pequenos que pintava durante meses de trabalho. Chegou a pintar pouco mais de 40 pinturas em toda sua vida, enquanto Rembrandt deixou centenas de telas que hoje estão espalhadas por diversos museus do mundo.

Estudei e pintei algumas pinturas de Rembrandt no Atelier de Arte Realista de Maurício Takiguthi, onde ainda estudo aqui em São Paulo. Para compreender como ele, Rembrandt, movimentava suas massas, trabalhava a incidência da luz naquilo que tocava. Mostrei aos alunos do professor Petry dois estudos meus: um em carvão e o outro em pastel.

Mas também fiz uma cópia do “Moça com brinco de Pérola”, de Jan Vermeer. Trabalhei nesse pequeno quadro durante umas 45 horas, no Atelier Vermeer em Paris. Somente para captar um pouco da concepção dos movimentos das cores que definem a boca e o nariz da “Moça”, devo ter trabalhado dois dias inteiros, num total de umas 18 horas.


Estudo meu em óleo sobre tela sobre o original de
Vermeer "Moça com brinco de pérola" - Paris 2011
No momento, a pintura realista retoma um fôlego muito importante em diversos lugares do mundo. Só para citar alguns, do meu conhecimento e experiência: Rússia, França, Espanha e Estados Unidos. Nos EUA, onde ainda se pratica a pintura acadêmica e começa a criar grande força o Hiperrealismo, a pintura realista conta hoje com os mais importantes mestres, o que não deixa de ser curioso, uma vez que a Guerra Fria produziu lá o Expressionismo Abstrato em contraposição ao Realismo. Muitos destes velhos artistas norte-americanos, que ainda estão vivos e produzindo muito, passaram por toda aquela fase de perseguição do macarthismo que identificava pintura realista com comunismo.


A pintura realista e pictórica toma como referência a realidade, que é inesgotável. Enquanto nos fixamos nas formas das coisas do mundo, vamos penetrando cada vez mais em camadas de conhecimento que nos surpreendem a cada momento. Após cada coisa apreendida, cada conquista feita, algo surge lá como novidade, mostrando o fluxo das massas de cores, os pequenos toques que configuram um olho, por exemplo, num jogo de valores que vão da luz às sombras mais densas.

O prazer de enxergar a possibilidade de romper os limites, de ir além das formas, de ultrapassar as bordas do mundo, de buscar o que há mais lá dentro, no fundo, escondido dos olhos dos apressados, é o que me move.


Para romper limites, é preciso coragem! Inclusive para nadar contra a maré do mercado de arte atual e dos pensadores da arte dita "contemporânea".

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Bibliografia:
- Wölfflin, Heinrich. Conceitos Fundamentais de História da Arte. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006
- Bazin, German. Barroco e Rococó. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010