sexta-feira, 8 de maio de 2015

Quem tem alma não tem calma

Dentro de nove dias embarco mais uma vez para a Espanha.

Desde o mês de março, a pintura espanhola vem novamente tomando conta de mim, em especial a de Diego Velázquez. Desde então, já fiz dois estudos sobre obras suas, como esta abaixo que representa o "El Bufon don Sebastian de Morra", de 1645 e "A costureira" de 1640.


Cópia de "El bufon don Sebastian de Morra",
Mazé Leite, abril de 2015, óleo sobre tela
Mergulhada em estudos sobre este grande pintor espanhol, teóricos e práticos, a vida vai me levando de novo para a Espanha. Desta vez para estudar mais, pesquisar mais, ver de perto, beber, me embriagar dos grandes pintores espanhois... 

Desde março, revoluções internas me dominam, me angustiam, me fazem perder o sono de madrugada... Penso no meu caminho na pintura, como uma pintora brasileira que vive em um país ensolarado, tropical, "bonito por natureza" mas vivendo momentos tão tensos e até mesmo perigosos. Está muito perigosa a vida no Brasil! Nesta semana, meu sobrinho Rondinelli Ferreira foi morto num assalto por causa de um celular. Só tinha 18 anos... Todos os dias esta mesma tragédia se repete na vida de inúmeras famílias do meu país. Que fazer?

Me pergunto: pintar a vida é pintar o que?

Pensamentos livres vão alcançando a superfície do mar revoltoso do meu cérebro: que é arte? que é se expressar em arte? pra que serve arte? pra que serve técnica?(leia post anterior aqui) Vêm vindo os pensamentos...

Arte pela arte é auto-compensação, é auto-indulgência, é querer se satisfazer sozinho, como se sozinhos fôssemos no mundo. Arte pela arte é refúgio covarde, ou egoísta, quando não se pode - ou não se quer - pensar sobre o mundo. Arte pela arte é a idealização da impotência, a concretização da fraqueza.

Caminhos existem para o artista, e enxergo estes aqui:

- OU fazer arte apenas para obter vantagem econômica, mesmo sendo espoliado por galeristas e curadores - o que pode levar à superficialidade mais escrota!

- OU resistir às pressões do sistema de arte atual, contrariando-o, e ao mesmo tempo se fechando, se isolando do mundo - o que pode levar à depressão, à loucura;


- OU resistir ativamente, coletivamente, consciente de que está tendo uma função cultural válida, mesmo num tempo tão desastroso como o que vivemos. Prefiro esta alternativa.
Retrato de Antonio López,
ainda em execução - Mazé Leite, óleo
sobre tela, maio de 2015

Lucien Freud já disse uma vez algo no sentido de que a arte deve assombrar, incomodar, mobilizar.

Mas a pergunta continua: pintar a vida é pintar o que? A resposta não vem fácil e isso algumas vezes dá raiva.

Nem sempre a raiva é um sentimento ruim; muitas vezes ela é necessária para nos empurrar em outro caminho, escolher outra coisa. Sinto raiva muitas vezes! Raiva do mundo, das coisas, das pessoas, de mim mesma, das minhas próprias tonterias.

Nesta noite passada, noite gelada, olhei para o céu escuro, busquei um horizonte entre prédios e falei para mim mesma, tentando acalmar as angústias dos dias presentes:

- Lembra daquela estrela do teu céu de antigamente? Vê que hoje há uma ali, à esquerda no céu, assemelhada àquela daqueles tempos em outro mês de maio? Lembra que ela iluminava os espaços em volta, de tão quente estrela que era? Também havia a escuridão em torno dela, aquele espaço negro no céu, negro de dar medo daquela garganta imensa do infinito que podia me engolir a qualquer hora, não fosse a gravidade... Mas a luz daquela estrela espantava a escuridão e a escuridão da noite foi perdendo fôlego. A estrela maior, o Sol, nasceu e começou a dissolver meus medos, minhas raivas, aquelas batalhas que às vezes trovejam dentro de mim... Os raios do sol abanam a fogueira da minha existência. O arder do fogo da vida, para arder, precisa de abanos. E hoje um vento solar me abana e me leva para bem longe daqui.

Por isso vou para a Espanha.

Vou pensando como Fernando Pessoa:

"Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é..."


Lá vou eu!

terça-feira, 5 de maio de 2015

A técnica a serviço da arte

Instrumentos musicais, Evaristo Baschenis, século XVII, Itália
Reproduzo abaixo um trecho de um manual para violão, escrito pelo violonista uruguaio Abel Carlevaro. Mesmo sendo voltado para a música, o texto pode muito bem ser relacionado ao aprendizado da arte de uma forma geral. O original se encontra em espanhol que traduzi de forma livre. Os destaques são meus.

O texto:

"1. A técnica a serviço da arte

Um dos grandes problemas para se tocar um instrumento tem sido sempre a técnica. Esta não é um resultado puramente físico da ação dos dedos, senão que é uma atividade que obedece à vontade superior do cérebro: nunca pode ser um estado irreflexivo.

O velho violonista, Picasso, 1903
De um lado, há algo que é necessário aprender: o ofício. Por outro, deve sempre existir algo nosso, que ninguém nos pode ensinar. Ao intérprete são colocados dois problemas: o aspecto puramente mecânico de uma obra musical, e como esta obra deve ser expressada. Convém sempre começar pelo último. Desde o primeiro momento em que se se aproxima de uma obra de arte, deve-se tentar penetrar o mais possível dentro dela porque senão como vamos trabalhar uma obra sem saber o que temos que expressar? Não esquecer nunca isso, porque do contrário a arte se desnaturaliza. Se o ofício propriamente dito passa a ocupar o primeiro plano, a arte haverá perdido sua qualidade própria.

Em resumo: quem não possua uma grande técnica não poderá ser um bom intérprete. O que importa é o ponto de partida: se provém do espírito irá ao espírito; do contrário, será somente um produto de laboratório. A diferença básica entre o verdadeiro intérprete e o simples executante está em que este último se baseia no trabalho mecânico unicamente, fazendo ressaltar somente o malabarismo digital de que cuida como um dom precioso dando à técnica um valor em si, uma personalidade, uma autonomia que não lhe pertence. Orgulhoso de seu poder, crê conseguir com isto tudo o que pode lhe considerar um virtuoso. E essa técnica, produto de tantos sacrifícios, está a serviço do que? Qual é a razão que nos demonstre a verdade de tal hipertrofia? É um absurdo querer fazer música utilizando a técnica como única finalidade, sem pensar em nada mais, desumanizando a arte. Cuidado com este monstro! Depois de criado, é necessário superar suas forças para obrigá-lo a servir aos puros valores da arte. Senão, produzirá irremediavelmente o contrário.

O espírito e a matéria são duas forças que devem unir-se na criação da arte. Então a matéria se tornará um pouco espírito e o espírito poderá tomar formas concretas. A arte pertence ao domínio do espírito; a técnica é patrimônio da razão. Da união destes dois elementos nasce a manifestação artística, verdadeira simbiose criada pelo homem.

2. O simples deve ser resultante de um complexo inteligentemente combinado

A aquisição paulatina do mecanismo, da técnica em definitivo, deve estar ligada às etapas da evolução pelas quais se deve necessariamente passar, dentro de um determinado período de estudo.

Numa primeira etapa se estudam os diversos elementos de forma separada, como se em cada caso houvesse somente um ponto a dominar. Num estado de evolução mais adiantado, teremos que relacionar todos os elementos antes separados, para alcançar, então, a técnica correta, o verdadeiro mecanismo do ofício.

Cada movimento é derivado de outro e sua aquisição total resulta do complexo motor, sem cujo conhecimento e domínio é inútil pretender tirar melhor proveito. (...)

O domínio completo é consequência dos diversos domínios parciais e seu uso correto é fruto da seleção das diversas combinações. Isso quer dizer que a técnica deve responder a um trabalho plenamente consciente, descartando, com isso, outros conceitos vinculados a disposições ou atitudes naturais, ou, pior ainda, à casualidade.

A análise, com o auxílio de uma lógica concreta e definida no que respeita aos movimentos a empregar, não deve ser interpretada como uma reação contra as manifestações intuitivas. O emocional e o subjetivo toma vida íntegra, e assim deve ser, pois a análise servirá como firme plataforma para a livre emoção.

(...)"

Instrumentos musicais, Evaristo Baschenis, século XVII, Itália