segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Os pintores de Skagen

Parte do grupo de pintores de Skagen, fotografia de Fritz Stoltenberg
Em minhas buscas pessoais sobre a pintura, boas surpresas vão me chegando de tempos em tempos. Desta vez vieram novamente dos gelados países escandinavos, Noruega, Dinamarca e Suécia. É bom lembrar que a Suécia é a terra do grande pintor Anders Zorn, e a Noruega é onde vive e pinta o grande Odd Nerdrum, de quem já falei aqui em outros textos.

Pintura de Christian Krohg
Mas o assunto do dia é um grupo de pintores que se reuniam todos os verões entre as décadas de 1870 e 1900, para pintar, conversar e se divertir na casa da família de Anna Brondum (ou Ana Ancher, sobre a qual já falei aqui) em Skagen, localizada numa pontinha do extremo-norte da Dinamarca, em frente ao Mar do Norte. Este grupo ficou conhecido como a Colônia de Skagen e sua pintura me atrai bastante a atenção, pelo estilo solto, dinâmico.

Skagen era um bom destino no verão, pois a localização à beira-mar e a luminosidade da estação atraíam esses artistas para pintar ao vento, ao ar livre, como o fizeram os pintores da chamada Escola de Barbizon francesa.

Os pintores escandinavos, insatisfeitos com a rígidas regras tanto da Academia Real Dinamarquesa de Belas Artes como da Real Academia Sueca de Artes, começaram a mudar seu estilo de pintura, depois de conhecerem alguns dos trabalhos dos pintores franceses que também tinham rompido com sua própria Academia.

Neste grupo estavam: Anna Ancher e Michael Ancher, Peder Severin Kroyer, Holger Drachmann, Karl Madsen, Laurits Tuxen, Marie Kroyer, Carl Locher, Viggo Johansen e Thorvald Niss da Dinamarca; Oscar Björck e Johan Krouthen da Suécia; e Christian Krohg e Eilif Peterssen da Noruega. Nomes totalmente desconhecidos pela maioria de nós que temos acesso apenas aos mesmos conhecidos pintores europeus.

"Autorretrato com Martha", Johansen Viggo
Skagen era também onde se localizava a maior comunidade de pescadores da Dinamarca e eles foram o tema mais comum para os pintores. As longas praias foram também bastante exploradas nas pinturas de paisagens, em especial por Peder Severin Kroyer, um dos mais conhecidos pintores de Skagen. A luminosidade da região o inspirou a fazer grandes telas em que mar e céu parecem se fundir opticamente, como poderão ver nas imagens que ilustram este texto.

Cada um desses pintores tinha seu próprio estilo individual, e não havia uma exigência para aderirem a uma abordagem ou expressão de grupo. Mas obviamente seu interesse comum era pintar a paisagem com seus pescadores, assim como pintavam retratos uns dos outros, suas reuniões, suas celebrações e seus jogos de cartas. Era um grupo de amigos, além de tudo.

Pintores de Skagen,
por Peder Severin Kroyer
Anna Brondum foi a única mulher integrante do grupo de Skagen que se tornou artista, em uma época em que as mulheres não podiam estudar na Academia da Dinamarca. Hoje, o Museu de Skagen, fundado na casa da sua família que era também o local de reunião desses artistas, abriga muitas de suas obras de arte, cerca de 1800 peças no total. Michael Ancher casou-se com Anna, que assumiu seu sobrenome.

O primeiro desses artistas a pintar em Skagen foi Martinus Rorbye (1803–1848), uma das figuras centrais daquele período rico da pintura dinamarquesa. Sua primeira viagem para lá foi em 1833, mas se repetiu até o final de sua vida em 1848. 

Na segunda metade do século XIX, as academias citadas acima se recusavam a mudar suas regras, insistindo que seus alunos continuassem pintando temas de história e do Neoclassicismo. 

Michael Ancher, Karl Madsen e Viggo Johansen que, no início da década de 1870,  estudavam na Real Academia Dinamarquesa, em Copenhague, começaram a se rebelar e se afastar da escola. Madsen, que já havia visitado Skagen em 1871, convidou Ancher para se juntar a ele em 1874, para pintar os pescadores locais. Ancher se tornou amigo da família Brondum, que tinha uma loja com um bar, que logo se tornou também uma hospedaria. No ano seguinte, ele retornou a Skagen com Madsen e Viggo Johansen, que já estavam fortemente influenciados pelo impressionismo francês, mas ao estilo mais realista dos pintores de Barbizon.

Entre 1876 e 1877, vários outros artistas se juntaram a eles no verão, hospedando-se todos na casa dos Brondums, onde Michael Ancher já frequentava, por causa de sua paixão por Anna, com quem se casou em 1880. 

Pintura de Anna Ancher
Anna Ancher demonstrou muito interesse em pintar, depois que esses artistas começaram a ficar na pousada de sua família, onde deixavam suas pinturas secando em seus quartos. Enquanto eles saíam para suas jornadas, ela os estudou detalhadamente. Em 1875 passou a frequentar o ateliê de Vilhelm Kyhn em Copenhague. Mais tarde, Christian Krohg lhe ensinou a arte de pintar pessoas em sua vida cotidiana e fazer pleno uso das cores. Krohg veio pela primeira vez a Skagen no verão de 1878, encorajado por Georg Brandes, que ele conheceu em Berlim e trouxe consigo muito dos novos estilos de pintar que ele havia conhecido na França e Alemanha, influenciando os outros membros do grupo. Seus encontros com a população local também exerceram forte influência em seu próprio trabalho.

Peder Severin Kroyer, que teve contatos próximos com vários artistas impressionistas em Paris, imediatamente se tornou uma espécie de líder do grupo de artistas. Em 1883, ele criou a "Academia da Noite", um grupo que se reunia para pintar e discutir o trabalho um do outro, muitas vezes aproveitando o champanhe. Em 1884, o pintor alemão Fritz Stoltenberg fotografou os artistas que comemoravam no jardim dos Anchers, logo depois que o casal se mudou para sua nova casa. Uma dessas fotos em particular inspirou Kroyer a pintar “Hip, Hip, Hurra!”, que levou quatro anos para completar.

Em 1890, a chegada da ferrovia em Skagen não apenas levou à expansão da vila, mas também atraiu um número considerável de turistas, atrapalhando as reuniões regulares de verão dos artistas, já que eles não podiam mais encontrar acomodações ou locais adequados para suas reuniões. No entanto, alguns deles compraram casas em Skagen: Kroyer em 1894, Laurits Tuxen em 1901 e Holger Drachmann em 1903.

Retrato de Marie, por Peder Severin Kroyer
Anna e Michael Ancher, Kroyer e Tuxen continuaram a pintar em Skagen até o começo do século 20. De vez em quando recebiam visitas dos outros amigos que moravam fora. Drachmann e Kroyer morreram entre 1908 e 1909, e com isso os encontros chegaram ao fim. 

Mesmo assim, outros artistas mais jovens continuaram a ir a Skagen para pintar, como Jorgen Aabye, Tupsy e Gad Frederik Clement, Ella Heide, Ludvig Karsten, Frederik Lange e Johannes Wilhjelm, alguns dos quais se estabeleceram na área até a década de 1930. 

Todos esses pintores foram atraídos pela comunidade de Skagen, suas paisagens marítimas e sua cultura, tudo muito distante dos efeitos da industrialização da vida nas cidades grandes. Todos reconheciam a luz especial que havia em Skagen, e, segundo alguns relatos, os efeitos da areia no ar. Seus estilos de pintura evoluíram da abordagem neoclássica formal da Real Academia para abraçar as tendências européias em evolução no Realismo e Impressionismo, incluindo a abordagem plein air adotada pela Escola de Barbizon. 

"Anna Ancher e Marie Kroyer passeando na praia no fim da tarde",
por Peder Severin Kroyer
Os atraía especialmente a oportunidade de pintar ao ar livre, concentrando-se nas atividades dos pescadores locais e suas modestas cabanas. Na ausência de regras dentro da colônia, os pintores desenvolveram livremente seus estilos individuais. 

Os artistas muitas vezes pagavam aos pescadores para atuar como modelos, complementando seus rendimentos modestos. As obras de Kroyer também incluíam cenas de passeios na praia, noites românticas ao luar e retratos de sua esposa Marie. Com o passar do tempo, Kroyer pintou cada vez mais obras que descreviam a atmosfera especial daquela hora em que a noite se fundia com o mar. Laurits Tuxen pintava as flores em seu jardim e Anna Ancher, por outro lado, concentrava-se nos interiores da sua casa.

Hoje, em pleno funcionamento, o Museu de Skagen - fundado em 1928 na casa da família Brondum - guarda uma grande quantidade de pinturas desse período e onde se pode ver de perto essas obras-primas.

Mais um lugar para eu conhecer, um dia.

Local onde funciona o Museu de Skagen

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Espaços de exposição

Confesso que ando com muita preguiça de escrever neste começo de ano... Faz parte da minha onda atual, mais parecida à maré mansa, àquelas praias sem onda onde a gente pode nadar e boiar por horas, sem nenhum sobressalto. Não que eu não esteja em atividade; pelo contrário, cada pedaço de tempo do meu dia tenho usado lendo, estudando, pintando, trabalhando... Alterno isso com longas horas de sono e ausência. Movimentos de fluxo... e de refluxo... como o mar.

Mas hoje tive vontade de tecer uns comentários, de trás da minha preguiça. É que me perguntaram se é fácil expor em galerias de arte no Brasil... Tive que responder, à contragosto, porque esse assunto também me dá muita preguiça! (Devo estar parecendo Macunaíma que vivia repetindo: "Ai que preguiça!")

Galerias. Em geral são espaços fechados, não só fechados no sentido arquitetônico do conceito. Há alguns, inclusive, que mais lembram bunkers, aquelas estruturas fortificadas e feitas para serem resistentes às armas de guerra. Conheço duas galerias assim, uma na Vila Madalena, outra na avenida Rebouças. Mas há outras um pouco mais simpáticas, quando se vê da rua. Da rua. Até você entrar e se deparar com um sujeito - ou uma sujeita - que vai lhe medir dos pés à cabeça e te ignorar assim que sua "medição" descobrir que você não tem onde cair morto, quanto mais algum recurso para adquirir alguma das "obras" ali expostas...

Galerias não são para os "fracos". Há exceções, claro. Mas aqui em São Paulo não conheço nenhuma, mesmo que aberta a conhecer, caso exista. O modus operandi da velha elite paulistana, mesmo a mais metida a intelectual, ainda se espalha por vários espaços culturais desta cidade, impondo seus gostos, sua estética, seus padrões, seu mercado de arte... Que não é para muitos, pois é para POUCOS!

Fora do Brasil, a situação é outra, pois onde há valorização da cultura e das artes, há infinidades de espaços onde cabem muitos. Mesmo aqui em nossa latina América: em Buenos Aires as galerias se espalham pela cidade e elas são espaços mais democráticos do que aqui. Ah o Brasil... quando chegará a nossa vez? Sinto dizer que está cada dia mais distante a nossa vez... Ando mal humorada - nestes tempos bizarros - e preguiçosa de escrever.

Dito isto, respondi com uma careta: não, não mesmo! A não ser que você faça parte da "galera": a mesma que se autodenomina "artista" porque recria e regorgita conceitos robotizados aprendidos de professores de artes conceituais nas nossas academias que são os mesmos que mandam nas galerias, nas exposições, nas bienais, incentivando experimentações ad nauseam, dentro dos mesmos velhos paradigmas das experimentações artísticas que já tem uma idade de pelo menos 100 anos, quando o mundo era outro mundo, e os artistas mais sérios, porque sabiam o que faziam quando se rebelavam contra o status quo... Hoje o "chique" é ser do status quo da arte dita "contemporânea", embebida em jogos sujos de poder. De todos os tipos dos podres poderes...

E viva a arte e os artistas contemporâneos, que somos todos nós, incluindo nós os da pintura figurativa e realista. Nós que preferimos - enquanto uivam as matilhas - ir estudando a pintura clássica com seus grandes mestres, para aprender deles - nessa timeline que já possui mais de 500 anos! Nós, os que não se contentam somente com a superfície da expressão individual em detrimento do aperfeiçoamento pessoal. Porque o conhecimento - o aprendizado dos instrumentos do ofício - não é só o manejar dos pinceis e o escolher das cores, mas o mundo que tudo isso nos abre: nos enriquece como seres humanos, além de tudo.

"O ateliê do pintor", Gustave Courbet, 1854-55, Museu D'Orsay, Paris

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Processo criativo

Estou em meio a um processo de trabalho criativo que se intensificou neste começo de ano, e a tendência é aumentar nos próximos meses. No momento certo, direi do que se trata. Por enquanto, vou organizando meu tempo entre o trabalho formal e este trabalho intenso no ateliê em casa. Das horas que me sobram para pintar - poucas por dia, por causa do trabalho formal - faço com elas uma espécie de interferência no tempo: se são 4 ou 5 horas por dia, elas serão usadas até à medula, com isso exercitando meu poder de foco e minha disciplina. E esticando o "tempo" ao máximo.

Meu mergulho agora é nesse outro mundo - o da criação - e não posso sair dele por nada deste mundo. Para ele, levei os livros que preciso ler e escolhi o primeiro do ano para reler, "O Estrangeiro", de Albert Camus, livro que me permite continuar mergulhada, porque ele em si é um grande mergulho na crueza da vida. Na sequência, e na mesma direção, vou reler pela undécima vez "Vidas Secas", de Graciliano Ramos. Estes são duros livros, que escancaram coisas da alma na nossa cara, e por isso me permitem não me perder, não perder de vista meu trabalho, meu foco. E vou lendo, na calma, "Brasil, uma biografia", de Lilia Schwarcz, para manter meu umbigo conectado às profundezas do meu Brasil.

O processo criativo é muito exigente, seja para nós como artistas seja como pessoas. Ele exige que se abra a alma, que se a rasgue também. Exige uma dedicação que jamais pudemos ter sobre algo ou alguém: "Este trabalho deve ser sua prioridade absoluta"; como um amante ciumento e autoritário, ele ocupa nossas mentes, nossos pensamentos, as batidas do nosso coração... Somente desse jeito o mundo - e a vida - vão mostrando seus sinais: imagens, cores, sons, luzes, palavras, sombras, texturas, símbolos, sonhos que antes pareciam não fazer muito sentido, agora adquirem um sentido novo. Aproveitável ou não. Mas no navegar desse imenso mar, qualquer onda ou pequena marola, ou uma montanha de água, faz sentido. E por isso é preciso estar atenta para não perder nenhum insight. Por isso, é bom anotar imediatamente o que for pensando, imaginando, sonhando, vendo, intuindo...

No cavalete, vou pintando a ideia, burilando-a, esculpindo-a, amadurecendo-a… Às vezes o trabalho rende num frenesi intenso, e a satisfação que isso dá não tem nada que possa descrever! Outros dias, o modo é mais lento, mais duro, mais nebuloso. As cores parecem brigar com você, até mesmo o pincel. A cadeira, a mesinha de apoio, a terebentina... Os olhos choram, vem desespero... Mas não se pode parar...

Como disse Picasso, quando a inspiração chegar, quero que ela me encontre trabalhando!

Porque processo criativo - como bem disse Fayga Ostrower - é sobretudo TRABALHO! Que envolve: pintar, errar, acertar, tentar, recomeçar; envolve também escrever, ou conversar consigo mesma, ou com alguém, para colocar em palavras coisas que não é muito do reino das palavras... Esse processo envolve desenhar bastante, fazer croquis, estudos diversos, para ir experimentando se esta ideia funciona, SE ela é viável e COMO é viável…

Pode até mesmo exigir movimentos, como viagens a algum lugar onde se possa ter uma visão melhor daquela ideia. Pode significar mais encontros, mais conversas de botequim com seu melhor amigo... Mas para mim o momento agora é de isolamento, do claustro necessário para o êxtase do encontro com a Musa, que só se deixa ver aos que trabalham intensamente... As possibilidades são TODAS; tenho que levar em conta TODAS!

É um processo onde algo toma vida dentro de nós e vai tomando forma fora de nós, simultaneamente. É o mais próximo que sinto também de uma embriaguez...

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Então é Natal?

As colunas do Templo de Saturno em Roma
A data de 25 de dezembro está simbolicamente ligada a festividades e rituais que datam de milhares e milhares de anos. Não, o espírito natalino não foi inventado por católicos, mas adaptado de rituais pagãos antigos. Este período se relaciona também, astronomicamente, ao fenômeno do Solstício de Verão (ou de Inverno, de acordo com o hemisfério).

A palavra “solstício” vem da junção de duas palavras em latim: Sol + Sistere (o que não se move). Solstitius, portanto, significa "ponto onde a trajetória do sol aparenta não se deslocar". Em astronomia, é o ponto exato em que o Sol se encontra numa inclinação de 23,5º em relação ao Equador. No Solstício de Verão, cuja entrada se dá exatamente neste 21 de dezembro aqui no Hemisfério Sul, ocorre o dia mais longo do ano. Ao contrário, no Hemisfério Norte, o Solstício de Inverno apresenta um dia mais curto e uma mais longa noite. Este fenômeno ocorre por causa dos movimentos de rotação e translação da Terra. A luz é distribuída de forma desigual no planeta. Luz e escuridão em contraponto...

Este período teve grande importância para muitas culturas desde tempos remotos, tanto no mundo ocidental quanto no oriental, como é o caso da China antiga. Muitos povos da Antiguidade realizavam grandes festivais, envolvendo toda a comunidade, para celebrar a mudança de tempo. O monumento de Stonehenge, por exemplo, um histórico agrupamento de pedras localizado no Reino Unido e erigido por volta de 2.500 anos a.C, está construído de forma a receber os últimos raios do sol do solstício de inverno ou os primeiros raios do solstício de verão. Esses habitantes do continente europeu dos primeiros séculos da Era Cristã - denominados de pagãos pelos católicos - realizavam grandes rituais e festivais ligados à agricultura e à mudança de período.

O monumento de pedras de Stonehenge, Reino Unido
Um dos festivais mais importantes ocorreu na antiga Roma, a Saturnália. O nome é uma homenagem ao deus Saturno (Cronos, na mitologia grega). O festival durava até sete dias. Os romanos celebravam a data em especial no Fórum Romano e no Templo de Saturno, localizados no Capitólio. Realizavam-se banquetes e festas onde todos os cidadãos podiam participar, durante as vinte e quatro horas destes sete dias, ininterruptamente. O jogo era permitido, assim como todas as normas sociais eram suspensas, senhores e servos trocando de papéis. E claro que sempre desembocavam em grandes orgias. O poeta Catulo dizia que esses eram “o melhor dos dias”.

Saturno, o deus da mitologia romana, é ligado à agricultura e seu símbolo é a foice. Deus da Colheita, ele ensinou ao homem a arte do cultivo da terra, que recompensa o trabalho com seus frutos. A Saturnália era, então, por uma lado, a comemoração de um ano bom de colheita e, do outro, o final de um período e início de outro, onde as esperanças se renovavam. Eles mantinham vivas as lembranças dos tempos míticos da “idade de ouro” quando Saturno reinava e havia abundância, fartura, igualdade, paz. Lembremos que o principal meio de subsistência naqueles tempos vinha do trabalho dos camponeses, que também geravam renda aos poderosos da época.

Durante a Saturnália se realizavam sacrifícios a Saturno. As festas e divertimentos envolviam toda a sociedade. Além dos banquetes e jogos, os romanos bebiam, faziam piadas e participavam de jogos de azar, o que era proibido nos outros meses do ano. Também era costume a visita aos amigos e a troca de presentes, pequenas figuras em terracota ou prata e velas de cera, que representavam a luz que ilumina a escuridão.

"Saturnália", Ernesto Biondi, escultura, 1909
Muitos estudiosos do tema da Saturnália apontam que todos os homens, escravos ou senhores, no período destas festas ficavam em pé de igualdade. Escravos não trabalhavam, podiam usar a mesma roupa que seus senhores, comer com eles, jogar dados… Não se realizavam atividades “sérias” durante o festival. Ninguém trabalhava, a não ser os cozinheiros. Os direitos eram iguais para todos, pobres e ricos; todos podiam participar de tudo referente ao festival. O mal-humor estava proibido (segundo Luciano de Samósata), assim como as brigas, as ameaças, as auditorias… Toda a zombaria estava liberada! Era proibido não ser feliz!

Também era o período gelado do ano, mas os corpos se aqueciam com as festas e com o vinho. “Estamos em dezembro, mas a cidade toda está coberta de suor”, escreveu o filósofo Sêneca em uma de suas cartas. Todos celebravam. Os escravos até mesmo aproveitavam o período para zombar de seus senhores. Podiam dizer o que queriam em tom de piada e os senhores eram obrigados a achar graça. Os que não conseguissem rir de si mesmos, eram forçados a pular de cabeça dentro d’água. O poeta Horácio conta, em um de seus textos, um diálogo de um escravo com seu senhor:

- “Quem sabe não é você o mais tolo de nós dois? […] Você, que tem controle sobre mim, é sujeito a tantas outras coisas; e é guiado como uma marionete, por fios e cabos que não domina”.

Mas outras festas pagãs, ao longo da história, também homenageavam outros deuses e conduziam outros rituais nessa mesma época onde ocorria o Solstício de Inverno. Muitas delas em homenagem direta ao deus Sol que, em Roma, foi oficializada pelo imperador Aureliano no ano 270. O Sol Invictus era agora a divindade número um do Império, cujo culto perdurou até à adesão de Roma ao cristianismo, com a conversão do imperador Constantino. Este monarca tinha o Sol Invicto cunhado em seu brasão oficial.

Por volta do século IV, exatamente no ano 354, foi que se oficializou o dia 25 de dezembro como a grande data do calendário religioso cristão. Ocorre que na Pérsia, muito antes disso, o deus Mitra era homenageado com uma festa denominada “Natalis Solis Invicti” (nascimento do sol invencível). A igreja da época se apoderou dessas festas pagãs, assim como de seus conceitos, e inventou o Natal, determinando que Jesus Cristo teria nascido nesta data. Ocorre que o simbolismo do Sol carrega forte representatividade. Então era preciso que a luz do dia se recolhesse cedo trazendo a longa noite do Solstício de Inverno, para que um outro Sol pudesse brilhar, para que a Terra assistisse ao nascimento da Luz maior, surgida naquele ponto da Terra para onde a luz de Vênus, a Estrela-Dalva, apontava: o nascimento do Menino que viria para salvar todos os seres. Ao longo da história, enquanto se espalhava pelo mundo e dominava povos bárbaros e pagãos, a Igreja foi criando o Natal, mantendo algo daquele espírito festivo original… Ainda hoje visitamos e compartilhamos o banquete com amigos e parentes; trocamos presentes, festejamos...

Mas algo do espírito original das festas pagãs chegou até nós no período do Carnaval, aqueles três dias onde a Igreja faz vistas-grossas aos prazeres do corpo. Foi no tempo do Papa Gregório Magno (590-604) que o espírito da Saturnália migrou de vez para a festa do “dominica ad carnes levandas”, o nosso Carnaval, uma combinação de desfiles, festas, bebidas, comidas, sexo, fantasias, que se estende até o primeiro dia da Quaresma, a Quarta-Feira de Cinzas. Desta forma, as saturnálias romanas se mantém nesse espírito orgiástico e alegre, quando também assistimos a troca de papéis: o rei se veste de mendigo e o mendigo, de rei… Mas este é um outro tempo...

Por enquanto é Natal...

E já que temos que terminar, desejando um Ano Bom - de colheitas, como antigamente - aqui desejo que os raios do sol deste Solstício de Verão no Hemisfério Sul iluminem nossos dias e nosso Brasil, afastando para longe a longa noite que parece se anunciar… Que o “Sol Invencível” que ilumina nosso futuro nos alcance logo com seus raios!

"Saturnália", Lawrence Alma-Tadema, óleo sobre tela, 1880

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Bananas e poderes podres

Campo de batalha 3, óleo sobre tela, Antonio Amaral, 1973
A força das ideias gera a história, movimenta os povos, muda sistemas. Nas artes, inúmeros artistas não ignoraram o que aconteceu em seu próprio tempo, criando obras que foram testemunhos históricos e ao mesmo tempo marcos estéticos de suas épocas. No Brasil dos tempos da ditadura militar, um artista se destacou: Antonio Henrique Amaral. Antonio Henrique Abreu Amaral nasceu em São Paulo, capital, em 1935 e faleceu em 2015. Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo, mas seguiu a carreira artística. Sua formação se inicia em 1952 na Escola do Masp (Museu de Arte de São Paulo). Ele foi também aluno de gravura do artista Lívio Abramo que, em 1956, ensinava essa técnica no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM.
Antonio Amaral
Em 1958, Antonio Amaral viajou para Chile e Argentina, realizando diversas exposições. Nessas viagens, conheceu o poeta Pablo Neruda. No ano seguinte, além de expor em Washington, EUA, participou de oficinas com artistas norte-americanos em Nova York. Retorna ao Brasil em 1960 e passa uma temporada no Rio de Janeiro, onde entra em contato com Candido Portinari, Djanira e Oswaldo Goeldi, este também gravador. Voltou para São Paulo em 1961, onde passou a trabalhar como redator publicitário, mas sem abandonar sua atividade artística. Com o golpe militar de 1964, Antonio Henrique Amaral incorporou a seu trabalho uma temática mais incisiva, com críticas claras à falta de liberdade e à censura. Em 1967 lançou o livro de xilogravuras intitulado “O meu e o seu”, com apresentação do poeta Ferreira Gullar. Nesse album, ele sintetiza a questão do autoritarismo político dos militares no poder. Neste ano, inicia seu trabalho com a pintura. Em 1968, veio o AI5, radicalizando ainda mais a perseguição dos militares a artistas e intelectuais e a todos os opositores do regime. Começou a trabalhar numa série de pinturas intitulada “Bananas”, onde está muito clara a sua denúncia política contra a ditadura. Era uma referência também às ideias do Tropicalismo, mas também ao tema da antropofagia defendido pelos modernistas de 1922, como Oswald e Mário de Andrade.
"Sem saída",
xilogravura, 
Antonio Amaral, 1967
Em 1971 ganhou um prêmio no Salão de Arte Moderna do RJ, com uma viagem ao exterior. Foi novamente para Nova York e voltou ao Brasil em 1974. Nesses anos fora do Brasil, Antonio exibiu suas obras em exposições em diversos países. Sua série das “Bananas” mostra claramente sua crítica ao que estava acontecendo em nosso país. Um desses trabalhos apresenta uma banana cortada e envolta por um garfo, ambos amarrados por um grosso barbante. Como uma metáfora do regime militar, o artista expõe bananas apodrecidas, espetadas por garfos pesados, que parecem denunciar a tortura cruel aos presos políticos. A metáfora das bananas sempre foi usada em diversos momentos da nossa história, desde a pintura “Tropical” de Anita Malfatti (1889-1964), passando pela “A Negra” de Tarsila do Amaral (1886-1973), e até “Bananal” de Lasar Segall (1891-1957). Na década de 1930 o compositor Braguinha explicitou na letra da música “Yes nós temos bananas”, de forma gaiata, a exploração das riquezas do Brasil por parte dos estrangeiros. Na década de 1940 Carmen Miranda balançava suas curvas nos Estados Unidos, criando a imagem caricata da latino-americana com seu chapéu excêntrico carregado de bananas e outras frutas. Ou seja, Antonio Henrique voltava à mesma metáfora para mostrar que o país da banana e do carnaval sofria com a ditadura militar. Uma de suas pinturas mais explícitas é “A morte no sábado - homenagem a Vladimir Herzog”, na qual o artista denuncia o assassinato do jornalista da TV Cultura nos porões da ditadura dos generais brasileiros.

 "A morte no sábado - homenagem a Vladimir Herzog",óleo sobre tela, Antonio Amaral, 1975