quinta-feira, 21 de março de 2019

Distopia

"O jardim das delícias" (detalhe), Bosch
Ó tempora! Ó mores!...

Era para falar de Bosch, Hieronymus Bosch... O pintor holandês do século XV que acabou profetizando estes dias terríveis em que vivemos. Tragédias, violência, fascismo, intolerância. De um lado. Do outro, depressão, solidão, competição.

Então sim, estarei falando de Bosch. Mas através de suas imagens, como verão.

O texto é um desabafo neste começo de outono... 

Tempo de imediatismos, tempo de frustração. Tempo em que se busca as aparências, as meias-verdades, a perigosa "pós-verdade". Tempo de dar opinião egoisticamente desenfreada. Tempo repleto de palavras, imagens, coisas, objetos. Tempo de guerras híbridas...

Tempo de distopia. Tempo fúnebre, tempo cinza. Tempo em que serpentes depositam ovos recheados de mais distopias.

E o Vazio por todo lado…

Contraditoriamente, prega-se - e vende-se - a felicidade em estado de euforia. A euforia leva o indivíduo para fora de si, este mesmo que se entope de antidepressivos (nunca se ingeriu tantos). Também leva outros tantos a frequentar as lojas que o consumismo aponta. Tem valido a pena entupir de gente shopping centers e igrejas neopentecostais. Nos primeiros, vitrines brilhantes buscam iluminar as aparências e tentam levar brilho onde ele não existe. E não ilumina, porque é falso. Nas igrejas, massas de cordeiros manipulados são dirigidos para fora da realidade, para dar à realidade de suas vidas um certo ar de potência. 

E a violência cresce.

Nestes tempos, a solidão reflexiva é abominada; o silêncio contemplativo é visto quase como uma doença. Não se pode sentir tristeza, solidão, cansaço. Não se poder simplesmente ser "humano"...

"A nau dos insensatos
(ou A barca dos loucos)" - Bosch
Os smartphones tornaram-se parte dos corpos e são a companhia principal de muitos. Estar permanentemente conectado é uma obsessão que se generalizou. Informações - verdadeiras ou falsas - inundam as cabeças; as mentes repletas delas, parecem entes obtusos. Os cérebros se tornam opacos.

Mas o importante é não ficar só, momento algum! Pois este sujeito abomina a solidão e estar consigo mesmo.

Nas redes sociais, vive-se relações virtuais, descartando o velho costume de estar sem fazer nada, ou conversando, ou em silêncio ao lado do outro. Mas ao lado, não "sequestrado" pelo aparelho. Todos fugindo de si mesmos e apontando outros. 

Lá, nessas redes, também se mostra a imagem que se quer que os demais vejam; se fala dentro de bolhas que ecoam as palavras ditas, e todos repetem o que todos querem dizer. Ouvir é para poucos. 

As redes sociais são feitas para escamotear o vazio que se sente e impedir o instante reflexivo e solitário. 

Melhor a gritaria do que o silêncio da presença incômoda de si mesmo.

O fato é que, nessas instâncias, cria-se um ser humano fraco e estupidificado, que não suporta qualquer conturbação à sua tentativa de viver em felicidade eufórica. A auto-imagem que se cria torna-se mais real que a real. Mas para manter em suspensão esse estado de euforia, há que se recorrer aos ansiolíticos, aos antidepressivos, aos anestesismos. E ao consumismo.

Os mais fracos, que existem de fato, se escondem para se proteger. Dessa onda.

O consumismo dita cada vez mais regras de "ser feliz". Este sistema vende a ideia de que cada um é dono de si mesmo e sua vida só depende de si mesmo. Meritocracia! Gritam os apaniguados do sistema. O que importa é seguir a regra de viver de um forma tal que se produza a maior quantidade de bem-estar possível. Tudo vira relação de custo-benefício: o que vou GANHAR se for/fizer tal coisa? Ah, porque temos que sempre sair ganhando! Porque "Deus é fiel"...

Desse mundo, tenho pena. 

Vivo nele, aos trancos e barrancos, tentando ser eu, o mais humana que posso, uma pequena célula do todo humano. Buscando ser, mais do que ter. Buscando criar meu próprio estado de estar no mundo. Buscando pintar para estar neste mundo. E buscando sonhar, com outros sonhadores, o sonho de um mundo antípoda disso tudo aí.

Contra todas as distopias, o grande sonho nos salvará!

"O jardim das delícias", Bosch, tríptico, óleo sobre tela, 220 × 389 cm,
Museu Nacional do Prado, Madrid
"Juízo final", Bosch,  óleo sobre tela,
164 × 127 cm, Academia de Belas Artes de Viena, Áustria
 

sexta-feira, 8 de março de 2019

A força de Artemísia Gentileschi

Artemisia Gentileschi, "Autorretrato como Alegoria da Pintura", 1639
Quando se estuda a história da arte, percebe-se que a presença feminina é quase rara. E por que isso acontece? Numa sociedade onde, ao longo de séculos de história, predomina o patriarcado que impõe suas regras, para uma mulher se tornar artista era muitíssimo dificultado. Aquelas que se destacaram, como Artemísia Gentileschi (entre tantas outras), foram verdadeiras heroínas da resistência como mulheres e como artistas. 

Artemisia Gentileschi,
"Autorretrato como mártir", 1615
óleo sobre tela, 31.7×24.8 cm,
coleção privada, New York
Artemísia Lomi Gentileschi é uma dessas pintoras, que viveu no Barroco italiano, uma das únicas mulheres artistas conhecidas desse período. Ela nasceu em Roma no dia 8 de julho de 1593. Ela era a filha mais velha do pintor toscano Orazio Gentileschi. A menina foi se destacando dos irmãos pelo talento para a pintura, e tinha facilidade especialmente em misturar a palheta de cores de uma forma que dava brilho às pinturas. Desde cedo, aprendeu a desenhar sob a orientação paterna, demonstrando um talento precoce que foi bastante estimulado pelo ambiente artístico que girava em torno de sua casa, frequentada por outros artistas, amigos e colegas de seu pai. 

Em Roma havia uma grande concentração de artistas e artesãos, e Artemísia cresceu em um bairro habitado por muitos deles. Roma vivia em plena efervescência cultural e a igreja católica atraía muitos artistas para lá, vindos de todos os lugares. Caravaggio trabalhava na Basílica de Santa Maria do Povo, assim como, em outras igrejas, trabalhavam Guido Reni e Domenichino, além dos irmãos Carracci, que pintavam seus afrescos na Galeria Farnese. Nesse ambiente, foi crescendo a artista Artemísia. 

Seu pai, Orazio, já pintava segundo o estilo de Caravaggio, com quem tinha mantido contato. Por isso a jovem Artemísia também era influenciada pelo mestre do Barroco, que costumava ir à sua casa pedir emprestadas as ferramentas de trabalho de Orazio. 

A discriminação contra as mulheres era imensa e somente foi possível que ela aprendesse a pintar, porque o fez diretamente com seu pai. Naquela época, e por muitos séculos, as mulheres não tinham acesso a muitos ramos da atividade econômica e social. Seu papel era basicamente de procriadoras e trabalhadoras domésticas, trabalho este não reconhecido como tal. Não recebiam reconhecimento nem mesmo quando tinham que sustentar sua própria família. Além disso, às mulheres sempre era impedido o acesso ao estudo, à educação intelectual, ao aprendizado da pintura, mais especificamente. 

Mas Artemísia Gentileschi escreveu uma outra história para si.

Artemisia Gentileschi,
"Susana e os velhos", 1610
A primeira pintura atribuída a ela data de quando ela tinha apenas 17 anos de idade (“Susana e os velhos”, 1610 ). Seu pai, impressionado com a qualidade da pintura da filha e sabendo dos impedimentos que haviam para a educação das mulheres nas artes, resolveu escrever uma carta à Grã-Duquesa da Toscana, Christina de Lorena, no dia 6 de julho de 1612, intercedendo pela filha, pedindo que ela pudesse ser autorizada a aperfeiçoar sua educação artística. Orazio dizia, entre outras coisas, que Artemísia havia atingido a habilidade e maturidade de artistas experientes.

E, mais do que o domínio técnico, ela já demonstrava um potencial expressivo muito rico. Esta tela com temática religiosa (“Susana e os velhos”) já indicava o ponto de vista de uma mulher vivendo em uma sociedade profundamente machista: a história que ela ilustra é a de uma moça nua, tomando banho, sendo observada por dois velhos que a ameaçavam, se ela não se entregasse a eles. Não era um tema original, pois outros artistas do sexo masculino já a tinham pintado. Mas somente na versão de Artemísia é que podemos ver a repulsa com que uma Susana nua ouve as cantadas dos dois velhos. A artista voltou a fazer outra versão dessa pintura, em 1640, mais amadurecida. E mais sofrida.

Artemisia Gentileschi,
"Maria Madalena"
Mas a carta de Orazio Gentileschi intercedendo pelo aprimoramento da educação artística da filha, foi seguida de uma tragédia que se abateu sobre a jovem: um dos amigos de seu pai, a quem ele teria pedido que ajudasse na formação dela, a violentou. Agostino Tassi era um dos mestres do ensino do desenho de perspectiva. Depois de alguns meses abusando sexualmente de Artemísia, prometendo que ia se casar com ela, Agostino revelou que já era casado. Isso enfureceu Orazio, que levou o caso a julgamento. Mas se já não bastasse - além da violência do ato - toda a humilhação que foi descarregada sobre ela tanto pelo réu, quanto pelos julgadores, Artemísia ainda foi torturada para que narrasse a cena do estupro em detalhes, sendo submetida a exames ginecológicos na frente de vários homens… Mesmo com a tortura, ela se manteve firme, e o réu foi condenado a cinco anos de prisão, ou o exílio de Roma.

Após esse fato, era impossível para ela continuar na cidade. Humilhada pelas regras sociais católicas, que tratavam mulheres violentadas como se fossem prostitutas, Artemísia se mudou para Florença. Seu pai foi obrigado a arranjar-lhe um casamento de conveniência, para que ela pudesse ser tratada com algum respeito. A filha casou-se com Pierantonio Stiattesi, um artista modesto de Florença, em cerimônia realizada no dia 29 de novembro de 1612. Desse casamento, Artemísia gerou quatro filhos. Prudenzia, a única filha que sobreviveu, acompanhou a mãe em seu retorno a Roma, nove anos depois. 

Em Florença, cidade onde o ambiente artístico favorecia, Artemísia se dedicou ainda mais à pintura, abordando temas trágicos, em que figuras femininas sempre aparecem como heroínas. O crítico de arte italiano, Roberto Longhi, atribui ao estupro e a esse processo humilhante que ela sofreu, os traços dramáticos que surgem em sua pintura, especialmente no quadro “Judith decapitando Holofernes”. Artemísia pintou diversos quadros em que coloca a mulher em posição de heroína.

Artemisia Gentileschi,
"Susana e os velhos", 1649
O alto nível da pintora foi logo reconhecido. Florença era uma cidade mais aberta do que Roma, e ela foi a primeira mulher a entrar para a Academia de Artes de Florença. Logo se aproximou dos artistas mais respeitados da época, e soube batalhar para ganhar o favor e a proteção das pessoas influentes da época, começando com o grão-duque Cosimo de Médici, e, mais especialmente, com a grã-duquesa Christina de Médici (a família Médici de Florença foi muito importante para o desenvolvimento das artes, tornando-se patronos de muitos grandes artistas italianos). Artemísia teria conhecido inclusive Galileu Galilei, que havia chegado a Florença em setembro de 1610. Ou seja, ela participava ativamente da vida artística e intelectual da cidade.

Mas Artemísia resolveu se separar do marido e voltar para Roma em 1621. Na cidade natal se estabeleceu de forma independente, cuidando sozinha de Prudenzia, sua única filha sobrevivente. Algum tempo depois ficou grávida e teve uma outra filha, provavelmente nascida em 1627. Artemísia tentou ensinar as duas meninas a pintar, mas sem muito êxito.

Artemisia Gentileschi, "Judith e a
serva com a cabeça de Holofernes", 1650
Com sua exemplar determinação, e enfrentando todos os preconceitos da época, ela resolveu se impor e defender seu direito de viver como artista nessa Roma que era o local de atração e de passagem obrigatória para artistas de toda a Europa. Tanto lutou que se  tornou membro da Academia dos Desiosi. Também iniciou relações de amizade com Cassiano dal Pozzo, um importante colecionador de arte, humanista e mecenas.

Mas apesar da sua reputação artística, de sua personalidade forte e de uma rede de boas relações, sua estadia em Roma não lhe rendeu muitas encomendas. Em 1627 partiu para Veneza, com as duas filhas, em busca de trabalho e de maior reconhecimento. Em 1630 viajou em outra direção, indo para Nápoles, pensando que naquela próspera cidade, cheia de estaleiros e de entusiastas das artes plásticas, novas oportunidades de boas encomendas e de emprego se abririam. Com essa mesma intenção também tinham vivido em Nápoles diversos artistas, entre os quais Caravaggio, Annibale Carracci, Simon Vouet, o espanhol José de Ribera, entre outros.

Em Nápoles, suas duas filhas se casaram. Artemísia tinha boas relações com o vice-rei Duque de Alacala, assim como com os principais artistas que lá viviam, especialmente Massimo Stanzione, com quem ela teve uma imensa colaboração artística e desenvolveu uma amizade sólida. Naquela cidade, pela primeira vez, foi convidada a pintar telas em uma catedral.

Enquanto isso, seu pai, Orazio Gentileschi, havia se tornado pintor da corte do rei Carlos I da Inglaterra, que a ele tinha confiado a decoração de um teto na Casa das Delícias, em Greenwich. Em 1638, Artemísia viajou até Londres, para visitar seu pai. Orazio morreu repentinamente, na presença da filha, em 1639.

Essa artista, de vida tão trágica quanto exemplar, voltou para Nápoles, onde viveu até os 60 anos de idade. Artemísia Gentileschi morreu em 1653.

Artemisia Gentileschi, "Jael e Sisera", 1620
Artemisia Gentileschi, "Judith e a serva", 1619,
óleo sobre tela, 114x93,5 cm, Palácio Pitti, Florença

Artemisia Gentileschi, "Anunciação", 1630

sexta-feira, 1 de março de 2019

As Marias, Mahins, Marielles, malês

 

E começa o carnaval, a festa mais longa do Brasil, que foi estendida além dos clássicos três dias. E não, não termina mais na quarta-feira de cinzas… E viva a folia, que ninguém é de ferro! Está aberto o reinado de Momo e que ele traga alegria a este país entristecido por um governo parvo, caótico, perdido! Salve Momo, abaixo Bolsonaro!

O nosso carnaval é algo herdeiro do espírito original das festas pagãs. São aqueles dias em que todo mundo se esquece de tudo o que há de ruim e mergulha nas festas pelas ruas do país.

Mas foi no tempo de um papa, Gregório Magno (590-604), que o velho espírito da Saturnália - um festival que durava dias e onde reinava a mais completa orgia dos cidadãos romanos - migrou de vez para a festa do “dominica ad carnes levandas”, o nosso Carnaval, uma combinação de desfiles, festas, bebidas, comidas, fantasias, que se estende até o primeiro dia da Quaresma. Se estendia, pois nestes tempos tristes melhor empurrar a alegria até o final de semana seguinte. Pois, depois, tudo volta ao cinzento da luta pela sobrevivência… E do nefando projeto de reforma da previdência ameaçando a todos nós.

Carnaval, tempo de se fantasiar de qualquer coisa e sair por aí, vestido de qualquer coisa, no grande teatro da folia. Tempo de usar máscaras, de criar uma persona, de se vestir de outro alguém…

O triunfo da dúvida, Victor Brauner, 1942
Num certo sentido resgatando também o velho teatro grego, assim como os personagens da Commedia Dell’Arte da Idade Média, como Pierrot, Arlequim e Colombina, que aqui se misturam aos bonecos de Olinda, ao Axé da Bahia, aos Fofões do Maranhão, aos mendigos vestidos de rei porque o império é o da alegria que se espalha… Mesmo que não seja só alegria, ou que a alegria seja um tanto só na superfície... Estamos em tempos estranhos...

O carnaval carrega em si algo de tristeza… Assim como o samba, que entoa o grito do mais profundo do peito do nosso povo negro. Pois por trás da máscara, há a realidade da vida no Brasil destes tempos. E por isso os palhaços do carnaval escancaram um sorriso, mas denunciam uma tristeza, como na lágrima que escorre do olho de Pierrot…

E a Estação Primeira da Mangueira neste 2019 leu a alma do povo e resolveu contar tudo o que se passa, pra geral. Salve! Salve! E salve Marielle Franco e todas as grandes mulheres de luta!

História pra ninar gente grande

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasil que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa as multidões

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês...
----------------------------------------------------

E aqui vai minha homenagem, pra não esquecer nem na folia:

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Amálgama


Algumas observações sobre cultura.

Muito tenho pensado sobre o tema da dominação do pensamento europeu sobre nossa cultura brasileira nestes dias. Há bastante gente também pensando em como isso se deu. Como isso se dá. Porque é justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar ainda oculto: o que nos fará mais ricos quando vier à tona em toda a sua potência, talvez uma brasilidade nova que, como uma estrela, iluminará algo dos passos de um mundo que se globaliza...

Somos um país cuja história oficial se iniciou em 1500. Verdade é que povos indígenas já estavam por aqui, mantendo sua vida, sua economia e política, e sua cultura, de modo independente dos povos que já habitavam a Europa e que chegaram até aqui. Portugueses, franceses e holandeses, principalmente, se lançaram sobre o território recém-descoberto com sede de riqueza e lucros para seus reis, imperadores, governantes, e até sacerdotes.

Ocorre que trouxeram consigo além de armas de conquista, sua visão de mundo, sua cultura que, sendo imposta, foi mesclando-se com a cultura indígena, local, assim gestando parte do que somos hoje enquanto povo.

Os conquistadores europeus também arrancaram de suas casas e trouxeram para cá milhões de africanos ao longo de séculos de escravidão. 

Assim como os europeus, os africanos - em posição inferior, obviamente - também trouxeram sua visão de mundo e sua cultura.

Os brancos europeus - “donos” do território conquistado - impuseram sua religião, seus costumes, sua alimentação, suas vestimentas. Indígenas e africanos foram obrigados a aprender sua fala, suas rezas, seus modos à mesa, seus costumes. Foram obrigados a adorar seu Deus, o único; coisa bizarra para duas culturas que eram mais generosas em termos de panteão: possuíam muitos deuses, e não só um.

Mas no meio de tudo, indígenas e africanos mostraram jeitos, comidas, cantos, rezas. Nas caladas das noites, foram-se imiscuindo entre as gentes de pele clara, gerando filhos já não tão claros, verdadeiros nascidos das três raças.

"Lavrador de café",
Portinari
Com o passar dos séculos, tudo se misturou e a mandioca entrou na cozinha: três culturas formam a nossa, mas é claro que com a absoluta primazia dos dominadores brancos europeus. A cultura dominante em nosso país é a cultura das classes dominantes desde 1500. Com toques, na história mais recente, de imposição cultural com fortes traços imperialistas.

Hoje, há gente se esforçando para restaurar a importância - extrema - da cultura africana sobre a brasileira, e da cultura indígena sobre a brasileira. Desde Mário e Oswald de Andrade, tenta-se destacar o papel fundamental de negros e índios em nossa formação. E isso é absolutamente inegável.

O que é inegável também que nos formamos como povo, em termos de educação, de pensamento, de filosofia, de ciência - com todas as narrativas dessas visões de mundo - com o viés dos colonizadores europeus. São Tomás de Aquino, Agostinho de Hipona, John Locke, Montesquieu, Voltaire, Adam Smith; Rousseau, Diderot, Descartes, Immanuel Kant, Karl Marx; Nietzsche, Schopenhauer; Johannes Kepler, Isaac Newton, Galileu Galilei, Albert Einstein, Stephen Hawking; Johann Sebastian Bach, Mozart, Beethoven, Schubert; Leonardo da Vinci, Rembrandt, Velázquez, Ingres, Van Gogh…

Poderíamos fazer uma lista imensa de europeus que formam a nossa visão de mundo, desde filósofos a artistas. Lembrando que a própria Europa é resultado do amálgama biológico de muitos povos, e filosófico de culturas mais antigas, como a grega. Europeus se impuseram sobre as Américas, sobre terras descobertas nos confins da Austrália e Nova Zelândia… Sobre partes da África e da Ásia.

Sua visão de mundo e sua forma de estar no mundo se impôs, e isso é fato. Muito mais recentemente na história, a humanidade branca europeia teve acesso ao conhecimento da filosofia oriental, chinesa, indiana, japonesa. Não levaram a sério (porque eram rudes os conquistadores, além de sedentos por riqueza) as culturas de povos indígenas ou aborígenes que foram encontrando pelo caminho. Não respeitaram o modo de pensar e de ser dos africanos que sequestraram como escravos para o Mundo Novo. Havia que passar por cima de tudo como um trator, porque o interesse maior era o de seus governantes e sua sede de riqueza e lucro. E para dominar, domina-se impondo religião, valores e costumes. Sobre todos os que não são brancos de pele, com suas esquisitices e idiossincrasias.

Assim foi e assim ainda é. O real é que todos somos resultado desse amálgama. Com predomínio óbvio da cultura ocidental que, em maior dosagem, permanece fazendo parte de nossas vidas, nossas formas de pensar, nossa ciência, nossa arte.

Mas há os entremeios...  

Há as burlas, as entrelinhas, os buracos na receita desse bolo… Há o não-dito, mas pensado. O sugerido sem ser detalhado. Há as vias tortas, os descaminhos, as sinuosidades. O torto. O imprevisto. O inexplicado. O imponderável. 

E há um Macunaíma dentro de cada um de nós, que ainda vai engrupir e engolir todos "eles"!

Grande Otelo, ator brasileiro representando o personagem no filme "Macunaíma"

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Os pintores de Skagen

Parte do grupo de pintores de Skagen, fotografia de Fritz Stoltenberg
Em minhas buscas pessoais sobre a pintura, boas surpresas vão me chegando de tempos em tempos. Desta vez vieram novamente dos gelados países escandinavos, Noruega, Dinamarca e Suécia. É bom lembrar que a Suécia é a terra do grande pintor Anders Zorn, e a Noruega é onde vive e pinta o grande Odd Nerdrum, de quem já falei aqui em outros textos.

Pintura de Christian Krohg
Mas o assunto do dia é um grupo de pintores que se reuniam todos os verões entre as décadas de 1870 e 1900, para pintar, conversar e se divertir na casa da família de Anna Brondum (ou Ana Ancher, sobre a qual já falei aqui) em Skagen, localizada numa pontinha do extremo-norte da Dinamarca, em frente ao Mar do Norte. Este grupo ficou conhecido como a Colônia de Skagen e sua pintura me atrai bastante a atenção, pelo estilo solto, dinâmico.

Skagen era um bom destino no verão, pois a localização à beira-mar e a luminosidade da estação atraíam esses artistas para pintar ao vento, ao ar livre, como o fizeram os pintores da chamada Escola de Barbizon francesa.

Os pintores escandinavos, insatisfeitos com a rígidas regras tanto da Academia Real Dinamarquesa de Belas Artes como da Real Academia Sueca de Artes, começaram a mudar seu estilo de pintura, depois de conhecerem alguns dos trabalhos dos pintores franceses que também tinham rompido com sua própria Academia.

Neste grupo estavam: Anna Ancher e Michael Ancher, Peder Severin Kroyer, Holger Drachmann, Karl Madsen, Laurits Tuxen, Marie Kroyer, Carl Locher, Viggo Johansen e Thorvald Niss da Dinamarca; Oscar Björck e Johan Krouthen da Suécia; e Christian Krohg e Eilif Peterssen da Noruega. Nomes totalmente desconhecidos pela maioria de nós que temos acesso apenas aos mesmos conhecidos pintores europeus.

"Autorretrato com Martha", Johansen Viggo
Skagen era também onde se localizava a maior comunidade de pescadores da Dinamarca e eles foram o tema mais comum para os pintores. As longas praias foram também bastante exploradas nas pinturas de paisagens, em especial por Peder Severin Kroyer, um dos mais conhecidos pintores de Skagen. A luminosidade da região o inspirou a fazer grandes telas em que mar e céu parecem se fundir opticamente, como poderão ver nas imagens que ilustram este texto.

Cada um desses pintores tinha seu próprio estilo individual, e não havia uma exigência para aderirem a uma abordagem ou expressão de grupo. Mas obviamente seu interesse comum era pintar a paisagem com seus pescadores, assim como pintavam retratos uns dos outros, suas reuniões, suas celebrações e seus jogos de cartas. Era um grupo de amigos, além de tudo.

Pintores de Skagen,
por Peder Severin Kroyer
Anna Brondum foi a única mulher integrante do grupo de Skagen que se tornou artista, em uma época em que as mulheres não podiam estudar na Academia da Dinamarca. Hoje, o Museu de Skagen, fundado na casa da sua família que era também o local de reunião desses artistas, abriga muitas de suas obras de arte, cerca de 1800 peças no total. Michael Ancher casou-se com Anna, que assumiu seu sobrenome.

O primeiro desses artistas a pintar em Skagen foi Martinus Rorbye (1803–1848), uma das figuras centrais daquele período rico da pintura dinamarquesa. Sua primeira viagem para lá foi em 1833, mas se repetiu até o final de sua vida em 1848. 

Na segunda metade do século XIX, as academias citadas acima se recusavam a mudar suas regras, insistindo que seus alunos continuassem pintando temas de história e do Neoclassicismo. 

Michael Ancher, Karl Madsen e Viggo Johansen que, no início da década de 1870,  estudavam na Real Academia Dinamarquesa, em Copenhague, começaram a se rebelar e se afastar da escola. Madsen, que já havia visitado Skagen em 1871, convidou Ancher para se juntar a ele em 1874, para pintar os pescadores locais. Ancher se tornou amigo da família Brondum, que tinha uma loja com um bar, que logo se tornou também uma hospedaria. No ano seguinte, ele retornou a Skagen com Madsen e Viggo Johansen, que já estavam fortemente influenciados pelo impressionismo francês, mas ao estilo mais realista dos pintores de Barbizon.

Entre 1876 e 1877, vários outros artistas se juntaram a eles no verão, hospedando-se todos na casa dos Brondums, onde Michael Ancher já frequentava, por causa de sua paixão por Anna, com quem se casou em 1880. 

Pintura de Anna Ancher
Anna Ancher demonstrou muito interesse em pintar, depois que esses artistas começaram a ficar na pousada de sua família, onde deixavam suas pinturas secando em seus quartos. Enquanto eles saíam para suas jornadas, ela os estudou detalhadamente. Em 1875 passou a frequentar o ateliê de Vilhelm Kyhn em Copenhague. Mais tarde, Christian Krohg lhe ensinou a arte de pintar pessoas em sua vida cotidiana e fazer pleno uso das cores. Krohg veio pela primeira vez a Skagen no verão de 1878, encorajado por Georg Brandes, que ele conheceu em Berlim e trouxe consigo muito dos novos estilos de pintar que ele havia conhecido na França e Alemanha, influenciando os outros membros do grupo. Seus encontros com a população local também exerceram forte influência em seu próprio trabalho.

Peder Severin Kroyer, que teve contatos próximos com vários artistas impressionistas em Paris, imediatamente se tornou uma espécie de líder do grupo de artistas. Em 1883, ele criou a "Academia da Noite", um grupo que se reunia para pintar e discutir o trabalho um do outro, muitas vezes aproveitando o champanhe. Em 1884, o pintor alemão Fritz Stoltenberg fotografou os artistas que comemoravam no jardim dos Anchers, logo depois que o casal se mudou para sua nova casa. Uma dessas fotos em particular inspirou Kroyer a pintar “Hip, Hip, Hurra!”, que levou quatro anos para completar.

Em 1890, a chegada da ferrovia em Skagen não apenas levou à expansão da vila, mas também atraiu um número considerável de turistas, atrapalhando as reuniões regulares de verão dos artistas, já que eles não podiam mais encontrar acomodações ou locais adequados para suas reuniões. No entanto, alguns deles compraram casas em Skagen: Kroyer em 1894, Laurits Tuxen em 1901 e Holger Drachmann em 1903.

Retrato de Marie, por Peder Severin Kroyer
Anna e Michael Ancher, Kroyer e Tuxen continuaram a pintar em Skagen até o começo do século 20. De vez em quando recebiam visitas dos outros amigos que moravam fora. Drachmann e Kroyer morreram entre 1908 e 1909, e com isso os encontros chegaram ao fim. 

Mesmo assim, outros artistas mais jovens continuaram a ir a Skagen para pintar, como Jorgen Aabye, Tupsy e Gad Frederik Clement, Ella Heide, Ludvig Karsten, Frederik Lange e Johannes Wilhjelm, alguns dos quais se estabeleceram na área até a década de 1930. 

Todos esses pintores foram atraídos pela comunidade de Skagen, suas paisagens marítimas e sua cultura, tudo muito distante dos efeitos da industrialização da vida nas cidades grandes. Todos reconheciam a luz especial que havia em Skagen, e, segundo alguns relatos, os efeitos da areia no ar. Seus estilos de pintura evoluíram da abordagem neoclássica formal da Real Academia para abraçar as tendências européias em evolução no Realismo e Impressionismo, incluindo a abordagem plein air adotada pela Escola de Barbizon. 

"Anna Ancher e Marie Kroyer passeando na praia no fim da tarde",
por Peder Severin Kroyer
Os atraía especialmente a oportunidade de pintar ao ar livre, concentrando-se nas atividades dos pescadores locais e suas modestas cabanas. Na ausência de regras dentro da colônia, os pintores desenvolveram livremente seus estilos individuais. 

Os artistas muitas vezes pagavam aos pescadores para atuar como modelos, complementando seus rendimentos modestos. As obras de Kroyer também incluíam cenas de passeios na praia, noites românticas ao luar e retratos de sua esposa Marie. Com o passar do tempo, Kroyer pintou cada vez mais obras que descreviam a atmosfera especial daquela hora em que a noite se fundia com o mar. Laurits Tuxen pintava as flores em seu jardim e Anna Ancher, por outro lado, concentrava-se nos interiores da sua casa.

Hoje, em pleno funcionamento, o Museu de Skagen - fundado em 1928 na casa da família Brondum - guarda uma grande quantidade de pinturas desse período e onde se pode ver de perto essas obras-primas.

Mais um lugar para eu conhecer, um dia.

Local onde funciona o Museu de Skagen