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terça-feira, 9 de julho de 2024

Dissonâncias na vida fora dos padrões

20/07/2022

Fim de tarde de segunda-feira pegamos a estrada que segue além do terreno da Ecomunidade Bem Viver. Passamos por outros sítios, o do vizinho de cerca e os de logo depois, em busca de um pedreiro, pois vamos construir uma espécie de barracão para guardar ferramentas e servir de oficina. Os três cães vieram nos receber bravos: quem são essas duas mulheres e esse rapaz estranhos a eles? Mas são cachorros de roça, latem mas não mordem. Principalmente se a dona da casa desce para ver quem chegou, seguida por um filhote de gato, esse, sim, amistoso e brincalhão.

O pedreiro ainda não tinha voltado do trabalho; está construindo um fogão à lenha em algum sítio nas redondezas. Mas deve estar pra chegar, disse a esposa. Resolvemos tomar a estrada de volta e quem sabe cruzar com ele, em seu fusca vermelho. Nosso carro tinha ficado numa bifurcação da estrada, logo depois da porteira principal. Como a noite vinha chegando, resolvemos esperar um pouco, sentados dentro do carro. 

Seja pela escuridão que começava a apagar as cores do mato, seja por algum pensamento aleatório, começamos a lembrar tempos da ditadura militar no Brasil e das pessoas que resistiram, que foram presas, torturadas, assassinadas. Nossos olhares se estenderam para a América Latina, afinal estávamos no ponto exato da bifurcação da estrada, ponto de convergência: a figura de Simón Bolívar surgiu gigante à nossa frente, herói latino-americano, mas logo lhe pusemos ao lado dos nossos heróis, porque somos um país que tem história de resistência desde que foi invadido por portugueses lá pelos mil e quinhentos… E demos vivas a Zumbi, a Antonio Conselheiro, aos resistentes de todos as cores brasileiras.

Mas a noite caiu e o pedreiro não veio, decidimos voltar para casa. Passamos outra vez ao lado de nossa terra onde Júlio havia trabalhado o dia inteiro, aspergindo seu inseticida natural feito de folhas de várias espécies, fermentadas com água e açúcar mascavo. Essa alquimia natural tem sido fruto de estudo e pesquisa dele nos últimos tempos, trazendo para nós a sabedoria de antigos agricultores de longínquos países asiáticos. Nossos pés de limão e frutas cítricas estão crescendo bem, florindo e produzindo os primeiros frutos, e isso atrai pulgões e outros insetos oportunistas. Júlio é sábio, Júlio acorda e dorme cedo, se interessa por grandes questões do mundo, incluindo a de criar novas formas de vida que respeitem o meio-ambiente. E se preocupa em viver em um mundo mais justo, onde a distribuição de riqueza seja ampla e todos possam viver em paz. Júlio tem vinte e cinco anos…

De volta à casa, em torno da mesa, olhamos mais uma vez para o mapa da nossa terra. O arquiteto encarregado de fazer o desenho da distribuição dos lotes no terreno de três alqueires e meio, apresentou uma proposta. Como nos reunimos semanalmente de forma virtual, o projeto foi cuidadosamente verificado por todos nós e, após poucas mas importantes alterações, o plano de ocupação está aprovado. Cabe agora a ele cuidar de apresentar a versão final, com todas as medidas feitas para que a terra possa ser redesenhada com ruas, lotes, energia elétrica, instalação hidráulica, sanitária, etc.

Com isso, o momento de tomar posse, de fato, do nosso pedaço de terra se aproxima e as coisas se movimentam. Agora é pra valer, as horas estão chegando… O encontro com o lugar do sonho vai se tornando cada vez mais real e o passo em direção à mudança de vida foi iniciado. Entra outra fase: a do planejamento das construções coletivas, a abertura de ruas, a instalação da rede elétrica, a captação de água, a cerca-viva que precisa ser plantada, as buscas por bons pedreiros e as apresentações aos vizinhos, aumentando nossa rede de contatos.

Em breve cada um tomará posse do lote que lhe coube e irá planejar as construções das moradias. Entre as cotas, onze mangueiras crescem, exuberantes, felizes com a luz que abrimos e a limpeza de mato que fizemos em torno delas. Algumas já passam do nosso tamanho. Lá embaixo, perto da área mais úmida, crescem nossos ipês e outras mudas de árvores. Três abacateiros ainda se esforçam por se adaptar ao bioma. Dar tempo ao tempo… “Aguardaremos, brincaremos no regato, até que nos tragam frutos, teu amor, teu coração…”

Do lado direito, na parte mais baixa do terreno, uma árvore se destaca. Não sabemos ainda de que espécie ela é, que nome tem. É alta, tronco grosso, cascudo. Sua sombra é bem ampla e já sonhamos em limpá-la embaixo, montar um banco de bambu, uma mesinha e, ao lado dela, enterrar fundo um mourão para segurar uma rede… Com a permissão de Oxóssi, Òké Arô! Agô! Levar livros para ler embaixo dela, papeis para escrever e desenhar sob suas folhas, fazer dessa árvore um lugar de encontro e reflexão, onde o pensamento possa viajar para outros mundos, voar como os pássaros de Cunha, pois o “pensamento parece uma coisa à toa” mas os mundos são infinitos quando a gente voa. Ou sonha. Sonhei que uma senhora estava comigo lá e me dizia que esta árvore é a “cereja do bolo”. Essa árvore é a existência de um Brasil mais antigo e mais bonito do que a avenida Faria Lima… Viva o Brasil maior do que a Faria Lima, esse lugar da estreiteza, do egocentrismo, do lucro, das vaidades… 

Voltar para São Paulo, ato necessário, para onde a vereda da minha vida ainda aponta. Cidade boa, cidade má, São Paulo é tudo, um mundo. Um dia desses eu esperava o farol abrir para pedestres para atravessar a avenida Liberdade. Um rapaz se aproximou de mim. Não, não era um rapaz. Era uma moça. Não, não era uma moça. Era um homem Trans: corpo de homem, cabelos, adereços e roupas femininas, enfeitando sua longínqua e improvável masculinidade. Parou bem na minha frente. Antes que eu pensasse qualquer coisa, me tascou a pergunta: – moça, a senhora tem preconceito de mim? Olhamo-nos nos olhos, ele aguardando minha resposta que veio tão imediata quanto sua pergunta: não! Jamais! Tive de me segurar para não dar um abraço naquela pessoa, rejeitada por este mundo quadrado que resolveu, em algum momento do passado, estreitar as possibilidades de ser em apenas duas vias, macho e fêmea. Mendigue Trans, havia sido xingade um minuto antes de me encontrar, por uma pessoa a quem foi pedir uns trocados.

Passei dias refletindo sobre tudo isso. Os incômodos que sentimos no caminhar da vida quando esbarramos em momentos dissonantes, é bom que nos movam para debaixo das árvores, estas velhas sábias que estão milênios a nos ensinar que não existe indivíduo, que a vida é em rede…

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Rastros nas montanhas de Cunha

 27/11/2021


“Caminante, son tus huellas el camino y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar.” Há muito tempo atrás li, e não de todo entendi, este trecho do poema “Cantares” de Antonio Machado. É natural, já que há coisas que levam tempo para a gente entender, o tempo da experiência de vida. Mas antes de mais nada, é preciso ressaltar que este poeta espanhol, um quase desconhecido nas bandas de cá do Atlântico, foi vítima do fascismo espanhol, perseguido e exilado pelo governo assassino de Franco, que matou outro poeta, Federico García Lorca… Fascistas não suportam arte e artistas, como sabemos muito bem hoje em dia no Brasil governado por outro fascista, cujo nome é melhor nem dizer…

Mas lembrei desse poema porque eu havia sonhado um sonho que, por um tempo – meses -, estava envolto nas brumas da madrugada. Nem sempre a linguagem do sonho é clara. Quando sonhamos, vamos para os mundos dos símbolos, das imagens soltas na mente, das asas que nos permitem voar, da liberdade em sua maior acepção. 

Falo do sonho que estou vendo, desde setembro, se transformar em realidade, e por isso a frase que abre este texto faz todo o sentido. Desde o ano passado fui me movendo na direção de algo que me atraía, mas que ainda não tinha se tornado claro. Os passos já estavam deixando pegadas, indicando algum caminho que traria uma reviravolta em minha vida: os movimentos da terra redonda me levaram para ser parte da Ecomunidade Bem-Viver, um projeto que já estava em andamento, meticulosamente trabalhado e pensado por esse grupo de mulheres que é uma verdadeira riqueza! 

O grupo vem amadurecendo desde maio. Muitos chegaram, vários saíram, como na vida e na estação: “tem gente que chega pra ficar, tem gente que vai pra nunca mais, tem gente que vem e quer voltar, tem gente que vai e quer ficar, tem gente que veio só olhar, tem gente a sorrir e a chorar…!” (salve, Milton Nascimento e Fernando Brant!) Hoje somos doze, contando os casais. O sonho individual se tornou o sonho desta tribo que, sim, agora é bem real. 

Os passos seguintes têm sido dados para encontrar a terra onde teremos nosso chão, nosso terreiro, onde coisas irão acontecer. Por essas sincronicidades insuspeitadas que a vida em movimento vai trazendo, a ancoragem está se fazendo na região de Cunha, confluência de três grandes cadeias de montanhas: a Serra da Mantiqueira, a Serra do Mar e a Serra da Bocaina, três gigantes deusas cuja formação geológica vem sendo feita em milhões de anos. 

Muitos de nós já tinham ido ver outras inúmeras propriedades na região do Vale do Paraíba, desde Cunha, São Luís do Paraitinga, Lagoinha. Foram buscados também possíveis lugares como São Francisco Xavier e Monteiro Lobato, até Redenção e Natividade da Serra, todas cidades razoavelmente próximas a São Paulo, onde a maioria de nós vive atualmente. Essa busca por terra é bastante cansativa e dispendiosa. Diferente de procurar uma casa ou um apartamento, a terra precisa ser sentida, caminhada, verificada bem de perto porque muitos detalhes são importantes. Primeiro, a presença de água, depois a topografia do terreno, que precisa ter algum trecho plano, onde se possa construir casas. Há que se tomar cuidado com terras há muito tempo servindo de pasto para o gado, o que é bem comum nesta parte do interior de São Paulo. Ou terras com erosão. Dar preferência a um terreno que possua algum pedaço de mata, porque nossa ideia é plantar mais árvores, ajudar a terra a recompor sua flora e fauna. E há também que se considerar a dificuldade de acesso por estradas de terra. Ou seja, é necessário alguns critérios de escolha que torna, então, a busca um pouco mais complicada.

Há algumas semanas atrás, um jovem casal – ela bióloga, ele funcionário público – que já vivem na região de Cunha, aderiu ao nosso projeto, trazendo com eles muita experiência de vida no campo. E surpreendente sabedoria. Através deles soubemos de uma propriedade à venda que cumpria muitos daqueles requisitos. Depois de alguns encontros virtuais e presenciais, decidimos que valia a pena focar naquela região, pois Cunha possui, além de uma natureza muito rica, uma vida cultural bastante interessante. Os potenciais de realização de todos os nossos projetos são, então, muito viáveis por lá. Vários de nós somos artistas e também pretendemos incluir atividades desta área no projeto geral. 

Viajamos, então, para Cunha para visitar algumas propriedades, em dois grupos, dois finais de semana. Como a região é íngreme, é preciso tomar cuidado para que o terreno seja também habitável. Sob o sol ardente daquela primeira manhã de domingo, descartamos uma, nos encantamos por outra. No final de semana seguinte, os outros que não estiveram presentes nesta primeira visita, foram ver de perto o terreno. Somadas todas as vantagens, descartadas as desvantagens, algum passo mais concreto será dado em breve. De resto, uma vez feita a escolha, é tratar de trabalhar muito para criar nosso pequeno oásis, onde possamos desfrutar do contato com Pacha Mama, abrindo todas as possibilidades para que mais de nós também possam participar da consecução deste sonho coletivo, que inclui o conceito do “Bem Viver”, ou o “Sumak kawsay” da cultura indígena, neste caso a Inca.

Depois de subir uma parte do terreno, onde as montanhas em volta se abriram 360 graus, olhei também para o céu azul do meio-dia. Eu gosto muito de olhar para o céu à noite, desde sempre. Há algum tempo faço um exercício, dentro da minha imaginação, que às vezes me enche de encantamento (e um pouco de pavor) diante da imensidão do cosmos: me vejo aqui plantada em minhas pernas tocando a terra que habita um sistema de planetas que giram em redor do sol, que gira em torno de uma galáxia, que gira em torno de outro grupo de galáxias que boiam no infinito do universo, que mantém em ação forças poderosas que permitem a todos nós estar aqui neste planetinha da periferia da Via Láctea… Às vezes, diante disso tudo, meu coração acelera e eu sou só gratidão: à Força Gravitacional, à Força-Fraca, à Força-Forte, a esses movimentos de forças centrífugas e centrípetas, macro e microscópicas, que nos permitem estar aqui bem vivos.

Voltando pra terra, vejo que este projeto é de uma ousadia que não tem tamanho, é revolucionário! É uma proposta de viver fora dos valores que impregnam a sociedade de consumo. Este modelo está esgotado. É só olhar as estatísticas (quem precisa delas) para ver que o capitalismo está destruindo nosso planeta, que responde com alterações climáticas inesperadas. O aumento da temperatura da terra já é tão real que está matando formas de vida das mais diversas, mundo afora. Mas esse sistema também está matando de fome milhões de seres humanos, enquanto uma pequena elite oportunista (essa gente que gera a “feia fumaça que sobe apagando as estrelas”)  entope nuvens virtuais de bancos com suas moedas geradoras da desigualdade. Mais valia que houvesse mais igualdade… 

Mas “você, da aristocracia, que tem dinheiro mas não compra alegria” há de encontrar a resistência de muitos, porque felizmente somos multidão. Há muita gente por aí sendo atraída por novos padrões de existência, opostos ao sistema atual que ameaça a vida. Nós, desta Ecomunidade Bem-Viver, nos juntamos aos grupos, aos movimentos novos e ancestrais, que pretendem resgatar na prática os princípios de solidariedade, de reciprocidade, de respeito e cuidado com os seres humanos, mas também com a Natureza, com o planeta Terra, pois somos somente um dos fios que compõem essa gigante teia da vida. 

Os próximos passos prometem muito, pois o sonho poderá se tornar real em breve. Já estamos com os pés na estrada…

Tempo de tecer comunidade

O mar de morros e montanhas de Cunha

20/09/2021

Minha primeira participação nas reuniões domingueiras do grupo Eco-comunidade Bem-Viver se deu no começo de setembro. Como se tornou comum nesta pandemia, reunião virtual, onde vemos nossos rostos e ouvimos nossas vozes, basicamente. E porque não vemos corpos ao vivo, tête-à-tête, nos escapam algumas sutilezas de gestos, de olhares, de pequenos movimentos musculares de rostos reagindo, movimentos de mãos. Como apenas o microfone de quem fala está ligado, não ouvimos espirros, tosses, pigarros, murmúrios. Mesmo assim é um passo no movimento em busca da tribo.

As primeiras imagens da sala virtual me mostraram, logo de cara, uma característica bela deste grupo: a grande maioria formada por mulheres, fortes, destemidas. E os homens que se agregaram possuem todo um profundo respeito por esta maioria feminina. Com um detalhe a enfatizar também: todas e todos dispostos a uma vida coletiva com respeito à diversidade de gênero, de raça, de credo, de costumes. As primeiras conversas nas quais me incluí falavam da importância de priorizar antes de tudo, o grupo, o coletivo. De recuperar a dimensão da ideia de comunidade. Uma disponibilidade geral de construção de afetos, de cuidado, de generosidade e solidariedade uns com os outros. Não há como não fazer uma ligação com tempos longínquos onde o matriarcado prevaleceu em algumas sociedades.

Olhando para esse projeto coletivo, também miro os exemplos das populações indígenas e quilombolas que nos mostram formas diferentes de estar no mundo em sociedade. Até mesmo os projetos de cooperativas e formas coletivas de produzir incentivadas pelo MST são alento e exemplo nestes dias. São fonte de inspiração, porque carregamos dentro de nós esta memória de vida comunitária como forma de existir, em colaboração, em co-habitação, quando observávamos os ritmos da Natureza como ritmos dos nossos próprios corpos, quando nossas atividades em comum abriam espaço temporal para o fruir da vida. Esta memória cultural é preciso resgatar nos dias de hoje: o ritmo do existir coletivo incluído nos ritmos da natureza, do tempo, das sazonalidades naturais. Aquela forma de existir que poupava os esforços de todos: bastavam poucas horas de trabalho para nos suprir e podíamos cantar, dançar, sonhar, criar, ter prazer, gozar a vida.

Semanalmente, e quase diariamente, este grupo vai se fortalecendo, se aproximando e criando laços cada vez mais íntimos. Isto é necessário, um passo prioritário antes da execução inicial de compra de uma terra. É preciso ir se alinhando, se conhecendo, construindo os combinados que vão apertando os laços da confiança, nesse processo conjunto de abrir o coração. Porque somos humanos, cada um com sua singularidade, seus mundos vividos, com seus potenciais e com seus limites. A riqueza maior disso tudo é juntar tanta gente diferente, mas sem medo de se ser quem se é, porque todos se dispõem ao convívio. Quase um casamento.

Há muita ousadia nesta convergência de vidas, porque a proposta é muito diferente do modo de vida mais comum hoje, no mundo dominado por valores capitalistas da competição e da produção em escala gigante. Pessoas sendo moídas nessa máquina desumana que impõe formas de viver individualizadas e egóicas. Eu vivo num prédio de dez andares de dois blocos com 40 apartamentos cada. Não conheço meus vizinhos e o contato social se reduz a cumprimentos formais no elevador. Cada um vive em sua própria cápsula, relegado ao medo e desconfiança do outro, pertencendo a um coletivo gigante (esta cidade de 12 milhões de habitantes), um bando de gente insegura que cada vez se tranca mais e constrói muros cada vez mais altos. E toma remédios cada vez mais fortes para suportar a carga diária desse sistema moedor de gente.

Então celebrar esse encontro se fez necessário! Dia desses, reunidos na casa de uma das mulheres onde o almoço foi preparado por todos, enquanto as conversas se desenvolviam – e o afeto também – realmente festejamos e brindamos ao nosso encontro, ao nosso casamento. Somos um grupo agora, e o “eu” se transformou em “nós”, mesmo que a “euzinha” aqui seja uma pequena parte desse grupo de “nós”, e isso me fortalece, me alegra, me dá esperança… Acho que nisso também falo por “nós”…

Estamos no momento de tecer essa comunidade, esse sonho coletivo. Pretendemos viver com valores que podemos chamar de pós-capitalistas: pra começo de conversa, abolimos a necessidade da propriedade privada. O grupo irá adquirir um lote de terra onde caibam todos e a todos os projetos coletivos, mas ninguém será “dono” da parte que lhe tocará, sua cota de mil metros quadrados, onde poderá construir sua morada, seu jardim, seu quintal. A propriedade como um todo será coletiva, da Associação Eco-comunidade Bem-Viver. Procuraremos aproveitar o que a terra nos oferece para construção de nossas casas, pretendemos ter nossa própria horta, nosso pomar, nossos pequenos animais parceiros de um modo de vida em que haja troca, reciclagem, cuidado do meio-ambiente. Pretendemos plantar árvores, fazer brotar nascentes de água, usar a energia limpa que vem do sol e dos ventos, na medida do possível.

Será fácil? Nem um pouco! Os desafios são gigantes, são de toda ordem: desde a escolha e a compra de uma terra adequada aos projetos, todas as construções que serão necessárias, a adaptação a valores existenciais diversos do “comum”, e até os pequenos perrengues diários que, sim, surgirão. Mas somos grupo, somos “juntos, somos fortes, somos flecha e somos arco, todos nós no mesmo barco não há nada pra temer”!

Os primeiros passos foram dados!

O começo da mudança

27/11/2021

Era dia 30 de junho de 2020 e eu estava na janela do nono andar do meu apartamento, ouvindo a TV informar que 1.280 pessoas já tinham sido mortas pela Covid-19 em nosso país. Estávamos entrando no quinto mês da pandemia no Brasil e dois cientistas – que acompanhei atentamente nos meses da primeira onda – garantiam que mais mortes viriam pela frente, muitas. Oitocentas mil, um milhão, talvez mais, talvez pouco menos. Olhei pra dentro de casa, era seguro meu pedaço de mundo, minhas quatro paredes. Olhar para fora era ver o perigo lá fora, rondando: um desgraçado ser microscópico que de tão pequeno podia entrar goela abaixo, nariz a dentro e ir invadindo pulmões e sistemas vitais. Travei a respiração, fechei a janela, sentei no sofá, voltei a respirar. Desliguei a televisão e fui pintar meu medo, numa tela que já havia sido iniciada.

Tarde já da noite e o sono não vinha. Liguei a TV de novo, cliquei no aplicativo do Youtube, e avistei uma senda: comecei a dar passos naquela direção que ia me levando virtualmente para mais perto dos passarinhos, das árvores, dos bichos, do galo cantando às cinco da manhã, galo solar anunciando o astro-rei. Em meio àquilo fui vendo gente junta reunida e fui me vendo no meio dessa gente que ainda não precisava, como agora, usar máscaras para se proteger umas das outras. Tempos passados, gente reunida. As velhas tribos em volta da fogueira voltavam a animar minha alma… Anima da mente…

Desliguei a TV, abracei meu travesseiro e me permiti uns minutos a mais de voo do pensamento. Rezei a música do Gil, antes de adormecer: “Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei! Transformai as velhas formas do viver. Ensinai-me, ó pai, o que eu ainda não sei… Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei…”

O dia seguinte amanheceu e o primeiro pensamento eclodiu: – Pra mim chega, vou procurar minha tribo e meu mato!

Mas esse encontro não se faz de uma hora para outra. É preciso pensar, repensar, sentir, procurar. É preciso sonhar muitas vezes, contemplar várias luas, e se perder e se achar, e desistir e ressignificar. É necessário elucubrar, devanear, e até deixar, de vez em quando, que o espírito da cachaça amarela eleve, junto com seus eflúvios, nossos sonhares, como uma fumaça que, subindo em arcos espiralados para o céu, toque o céu, e o céu devolva ao nosso cérebro-coração essas inspirações que surgem somente dessas emanações… “E que essa vida entre assim como se fosse o sol desvirginando a madrugada…”

Os choques de realidade no Brasil destes tempos são terríveis. Trágicos. Olhar para fora nos faz refletir: o que é pior, um micro-organismo impalpável que suspendeu a respiração de todos os humanos? Ou o fantasma bem palpável do fascismo mostrando as babas sangrentas de suas gengivas pustulentas, aliado da morte, irmão da mentira, que estraga toda espécie de vida? Falo isso e ouço a gargalhada cínica que somente Bolsonaro é capaz de dar, como atestou seu próprio rebento há poucos dias. “Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são…”, suspira Macunaíma de Mário de Andrade. Os males do Brasil são assim mesmo, no plural porque múltiplos.

Que preguiça do capitalismo! Essa praga em metástase, como reflete Ailton Krenak, que corrói o mundo inteiro, que destrói as vidas e o planeta. Que batiza com muito dinheiro o um-por-cento, e o resto de todos os outros que entrem na roda-viva da luta pelo ganho da existência. Cada um por si! Mas uma imensa parte desse “cada um” nem migalhas do bolo pode aproveitar… (“Ninguém come dinheiro”, diz o sábio Krenak) Capitalismo que gerou – entre tantas tragédias – a sanha competitiva entre as pessoas, acentuando o egoísmo, exacerbando o individualismo, criando aberrações chamadas de “meritocracia” e de “empreendedorismo”, jogando frágeis sujeitos nas corridas-malucas sobre bikes e motos, arriscando as vidas para dar conta de “uberizar” e “festifudizar” nossas vidas… Palavrões!

29 de agosto de 2021, o sonho se desenrola. Entro em uma rede social e uma das bolhas às quais pertenço pisca uma pequena luz. Eu estava em Tatuí, visitando pessoas queridas, quando resolvi olhar para o pequeno lume que me piscou/pescou: um anúncio chamava “pessoas esquerdistas, defensoras da natureza, dos animais e da vida coletiva” a se juntar numa eco-comunidade. Havia uma reunião naquele dia, virtual, às 19 horas. E eu fora de casa, com internet fraca… Paciência, um segundo contato era possível… Pronto! Passei todas as próximas horas, os próximos dias, habitando os redemoinhos dos meus pensamentos, enquanto ia visualizando a vida coletiva, a fuga da minha soledade, da vida cada vez mais trancada pela criaturinha terrível que agora já matou 600 mil brasileiros e cinco milhões de seres humanos mundo afora…

De vez em quando, neste último ano, descia para a rua, mais ou menos temerosa, mas protegida pela minha máscara. Ia ao supermercado, à farmácia, à padaria. Cruzava às vezes com pessoas que conheço de vista, nesta minha rua, há mais de quinze anos. Muitas delas, nestes quinze anos, compraram bengala, andador, contratou acompanhante. Via meu futuro passando ali a meu lado e o rechaçava! Eu é que não! É você “se olhar no espelho e se sentir um grandessíssimo idiota”! Mas “eu é que não me sento no trono do apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes esperando a morte chegar”! Eu não! Quero encontrar e viver junto com minha tribo, junto da terra, cuidando da terra, plantando água, árvores e nossos alimentos. Quero ajudar a criar uma nova cultura, permanente, permacultura. É minha forma de reafirmar que quero ser parte (como sempre busquei ser) daqueles que pensam “para além da linha-d’água” (mais uma vez gratidão, Krenak!).

No dia seguinte encaminhei minha adesão ao projeto coletivo “Ecomunidade Bem Viver”.