"Vanitas e autorretrato", David Bailly, óleo sobre tela |
É um tema muito antigo, que acompanha a história da arte desde os primórdios da história, mas tomou ainda mais fôlego por volta do século XVII, em especial na Holanda, em Leyden. Aquela região da Europa, por onde passou a Reforma Calvinista, propiciou uma atmosfera religiosa e intelectual onde também se gestou o tema de Vanitas.
Vanitas é uma palavra de origem latina, com fonte no livro do Eclesiastes, e significa "vaidade". O objeto que aparece em todas as pinturas com este tema é a caveira, o crânio humano. Ela traduz, de maneira simbólica e enfática, a nossa relação com a morte.
Mas por que um tema como este merece alguma atenção nos dias de hoje? Merece tanta, que resolvemos nos debruçar sobre este assunto e dividir este texto em três posts, em continuação.
O tema de Vanitas e o tema da Morte são cada vez mais atuais, mais contemporâneos. Chegamos num estágio da humanidade em que - imergidos num mundo onde as lutas pela sobrevivência, a fome e as guerras impelem milhares de pessoas pelos caminhos em busca de vida - pensamos, de fato, que estamos assentados bipolarmente em frente a uma caveira: de frente, encaramos o fato de que todos morreremos; de costas para ela, fazendo de conta que a ignoramos, criamos o caos à nossa volta.
Mas aqui é preciso dizer que este caos contemporâneo é intensificado pelo sistema capitalista e seu mercado financeiro atual que gera muito dinheiro que não existe e que pertence a poucos, enquanto lança a imensa maioria da humanidade nesta situação:
• jornadas e cargas humanamente intoleráveis de trabalho
• estresse diário com o tráfego nas metrópoles
• quase um bilhão de pessoas que passam fome em pleno 2015
• correntes migratórias que crescem em números astronômicos
• guerras, fabricação e vendas de armamentos pesados de guerra
• fanatismos e radicalismos de toda ordem, religiosa e ideológica
• violência nas grandes cidades
• existência de redes organizadas de traficantes de entorpecentes ilegais
• violência policial
• indústria farmacêutica que "cria" novas doenças e entorpecentes legalmente vendidos (nunca se vendeu tanto remédio para depressão como nos dias atuais)
• políticos e executivos que se enriquecem a si mesmos com dinheiro público
• imensa falta de perspectiva de felicidade num mundo voltado para a geração de lucro
Entre muitas coisas mais.
Falemos de Vanitas.
Mosaico de Pompeia |
O tema de Vanitas, apesar de datado no tempo, o ultrapassa. Como já falamos, nos confrontamos no mundo atual com a atualidade desta questão, que nos acompanha desde que nascemos e que se intensifica na medida em que envelhecemos: a angústia causada pela consciência de que somos mortais.
As pinturas feitas dentro do tema de Vanitas, mesmo as mais simples trazem dentro de si muita expressividade e significado. Muitas delas faziam alusões filosóficas de forma óbvia, pois traziam legendas que falavam da efemeridade da vida e da morte certa. Essas pinturas traziam em si um convite à reflexão sobre a precariedade dos prazeres mundanos, o vazio das ostentações vaidosas, o engano pelo apego excessivo às riquezas materiais de que se rodeia e “a realidade ameaçadora do triunfo final da morte”, como diz o professor Calheiros. Tudo isso explicitado através de um símbolo mais imediato e certeiro - a caveira.
Este tema chegou a ser moda no século XVI e durante todo o século XVII. No século XVIII ele ainda aparecia nas pinturas em toda a Europa.
Mas seu passado é ainda mais remoto. Desde o século XV, a representação solitária da caveira aparecia em diversos materiais de propaganda religiosa, anteriores e posteriores ao Concílio de Trento e ao surgimento da Reforma Protestante. O imenso afresco “Juízo Final” - cerca de 13 por 12 metros - pintado por Michelangelo no altar da Capela Sixtina entre 1535 e 1541, contribuía também para criar esse ambiente em que a morte estava sempre à espreita. Segundo Luís Calheiros, foi nessa fermentação de ideias que surgiram os primeiros sinais dos futuros estilos “tenebrista” e “maneirista” e, especialmente, do Barroco, que se espalharam por toda a Europa, atingindo outros continentes, como o nosso Brasil, posteriormente.
Mas o século áureo das naturezas-mortas (ou still-life em inglês, bodegón em espanhol e nature-morte em francês) foi mesmo o século XVI. Assim como o de Vanitas.
O significado direto de Vanitas, diz o professor, é sobretudo o de um “verdadeiro aviso”: uma “repreensão lapidar sobre a ignorante leviandade das vaidades mundanas; a inconsciência alheada dos excessos e finitudes várias do Homem - os seus vícios e horrores, as suas paixões desonestas, desvairadas de cegas, funestas; os seus apetites venais insaciáveis; as suas perigosas irracionalidades; as suas pulsões inconfessáveis; e, em geral, uma distância circunspecta por tudo o que se aprecia, sem freio e pudor, com desbragado hedonismo, neste mundo de carnalidades e materialismos primários, doentiamente consumista e fetichista, inundado pelos prazeres mais desatinados” (grifo meu).
"Por trás da máscara de beleza espreita a morte", vanitas, de Johann Caspar Lavater (1775-78) |
Se pretendia, com estas obras da pintura, “irmã da Poesia” - no dizer do poeta lírico romano Horácio - “traduzir o discurso melancólico-ascético, contemplativo, estóico, puritano, saído das convulsões ideológicas e religiosas do século XVI, um discurso condenador das materialidades mais apelativas do viver mundano, e ainda das atividades predadoras e hieraquizadoras do viver social com todo um rol de evidentes iniquidades, a injustiça revelada na desigualíssima distribuição dos bens e riquezas, a roda da fortuna separando implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada têm de seu, morrendo igualmente todos e tudo deixando, muito uns, outros pouco, (justiça final, ironia última do fim dos tempos!), das satisfações cegas dos prazeres mais primários e sórdidos, dum hedonismo fetichista cada vez mais generalizado - sinal dos tempos - a modernidade do capitalismo emergente”.
Essas naturezas-mortas intemporais, que tratam de temas mórbidos, fúnebres, macabros, tétricos - também anunciam todo o tempo a verdade mais radical de todas: a Morte é o fim último e derradeiro de todo ser que respira.
A composição destas pinturas sempre são feitas com estes tipos de objetos:
Vanitas de Pieter Claesz |
• Os que representam a vida materialista e sensual, como: espelhos, colares, pérolas, jóias e outros adornos femininos, e ainda flautas e violas, símbolos fálicos e rotundos, moedas de ouro e prata, objetos preciosos, coisas de grande aparato, de ostentação e fausto, ricos panos de armar com as suas borlas de ouro fino, panejamentos drapeados dos mais requintados tecidos, veludos, sedas e brocados, desdobrando os seus bordados de ornato rico, coroas, tiaras, mitras, medalhas e outros adereços de honra, ou ainda armas, armaduras, elmos, escudos, emblemas heráldicos, e toda a panóplia de instrumentos bélicos e sinais de subida hierarquia
• Os objetos que evocam a brevidade da vida física: ampulhetas e diversificados relógios, cronômetros, clepsidras, flores perdendo as pétalas e definhando, frutos apodrecendo, folhas secando e murchando, pedras desgastadas e rachadas, gretadas, velas apagando-se, cachimbos pousados, ainda a fumegar, taças de vinho tombadas
• E o objeto-mor, sempre presente, a Caveira. Em algumas pinturas também se podem ver outros ossos como as tíbias, ou o esqueleto completo, muitas vezes erguendo um gadanho, a arrepiante foice da morte.
• Além de inscrições de aviso cruel sobre o fim dos fins, quase todas retiradas do livro do Eclesiastes, na Bíblia, observa Calheiros.
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Vanitas, de Pieter Boel |