segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Guido Reni

No próximo dia 4 de novembro fará 440 anos do nascimento do pintor italiano Guido Reni. Como estou fazendo uma cópia de seu quadro “São Francisco rezando”, minha curiosidade sobre a vida desse pintor bolonhês só aumenta. Principalmente porque, tendo vivido na época em que viveu - final do século XVI e começo do XVII - sua pintura é tecnicamente muito boa. Logo vi que ele foi aluno também dos irmãos Carracci e que procurava unir o desenho de Rafael, o claro-escuro de Correggio e o colorido veneziano. Um mestre, portanto, apesar de pouco conhecido atualmente.


Guido Reni nasceu em Bolonha. Seu pai, Daniele Reni, era músico e logo incentivou o estudo de música no filho, lhe dando a primeira formação. Mas em 1584, segundo os historiadores, Guido Reni abandonou os estudos de música e foi estudar pintura no ateliê do pintor flamengo Denis Calvaert, que morava em Bolonha há alguns anos. Após a morte de seu pai, em 1594, Guido foi estudar na Academia de Incamminati, escola de pintura fundada pelos irmãos Carracci em 1582, cujos ensinamentos preconizavam o retorno à natureza.


Autorretrato, Guido Reni, 1602
Logo seu talento foi reconhecido pelos dois pintores. Conta-se que Annibale teria dito a Ludovico Carracci que não ensinasse “tanto” para Guido porque senão logo o aluno estaria melhor que seus professores… Pois ele nunca estava satisfeito e sempre queria tentar coisas novas. “Um dia ele te fará suspirar”, disse um dos irmãos Carracci.


A partir de 1598 ele torna-se um pintor independente e começa a receber muitas encomendas. Em 5 de dezembro de 1599 passa a fazer parte do Conselho da Congregação dos pintores de Bolonha.


A partir de 1600 ele começa a viver em Roma, onde passa a receber mais encomendas. Como sua fama crescia, em 1608 o Papa Paulo V contrata-o para decorar duas salas do Palácio do Vaticano. Guido Reni fica indo e voltando de Bolonha a Roma nesse período. Em 1615, pintou o retrato de sua mãe. E faz mais pinturas e afrescos de encomenda, tanto em Bolonha quanto em Roma, assim como Mântova e Gênova.


Guido Reni viveu em Roma por 15 anos. Lá, aprofundou os conhecimentos da obra de Raphael e de escultura clássica. Também entrou em contato com propostas de pintura inovadoras, como era a arte de Caravaggio, cuja influência pode ser vista em sua produção entre 1603 e 1605. Ele é considerado um dos pintores caravaggistas.

Um dos alunos de Guido Reni foi Hendrick van Somer, que havia passado uma temporada em Nápoles, no ateliê de José Ribera. Hendrick também pintou sob influência deste mestre, como pode ser comprovado em suas pinturas feitas para a igreja de San Barbaziano em Bolonha. Hendrick descendia de uma família de pintores flamengos que haviam vivido na Itália.

Mas sua personalidade artística se mostrava cada vez mais, tendo influenciado diversos artistas, incluindo o escultor Bernini. Em 1614 voltou a viver em sua cidade natal, Bolonha. Em seus últimos anos de vida, Reni modificou sua palheta de cores, que foi se tornando cada vez mais clara, até quase monocromática, e suas pinceladas cada vez mais soltas. Ele é considerado um pintor do período Barroco.


Guido Reni faleceu em 18 de agosto de 1642, em Bolonha.

"Baco bebendo", Guido Reni, séc. XVII
"Deianira", Guido Reni,1621, Museu do Louvre, Paris
"Davi com a cabeça de Golias", Guido Reni, 1605, Museu do Louvre, Paris
"São Pedro penitente", Guido Reni, coleção particular, Roma
"Retrato da mãe", Guido Reni, 1615-1620
"São Mateus e o anjo", Guido Reni
"Imaculada Conceição", Guido Reni, 1627, Metropolitan Museum of Art, New York 

sábado, 10 de outubro de 2015

Carlos Drummond de Andrade

"Melancólico Drummond", Mazé Leite, óleo sobre tela, 40x50cm, 2015
Terminada esta tela sobre um dos meus poetas brasileiros preferidos, Carlos Drummond de Andrade, reproduzo abaixo um dos seus poemas mais intensos, mais digno da grande poesia, que o coloca lado a lado com os grandes poetas do mundo, como Walt Whitman, como Fernando Pessoa, como Maiakovski, como Yeats, como Rimbaud, como Baudelaire.

Neste poema, o poeta conta de uma "visão" que teve num momento de êxtase, enquanto passeava por uma estrada, quando à sua frente a "máquina do mundo", a realidade das coisas de repente fica clara à sua frente. Vale ler!

Sobre a pintura, escolhi propositadamente as cores mais frias na direção do violeta e do azul para dar ainda mais ênfase à expressão melancólica do poeta... Lembrava deste poema, quando fiz esta escolha.

A máquina do mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Indústria cultural ou variedade?

Foto referente ao filme "Quero ser John Malcovitch"
No último dia 17 de setembro, o jornal português “Avante!”* publicou um artigo de autoria de Manuel Augusto Araújo, arquiteto e crítico de arte português, intitulado “Tempo de antena cultural”. Como concordo com suas opiniões expressas nesse texto, tomei a liberdade de editá-lo e adaptá-lo à nossa realidade brasileira, que não é muito diferente; talvez seja mesmo pior do que a portuguesa, em termos de descaso das autoridades em relação à problemática da Cultura.

Manuel começa seu artigo criticando o atual governo português, que se deixa levar pela exaltação do mercado financeiro, “o que não desresponsabiliza os artistas, os produtores culturais que concorrem para esse estado de coisas actual. Degrada a cultura nos seus múltiplos sentidos de afirmação da condição humana e da transformação da vida. O que não é compaginável com a sedução pelo dinheiro”.

Ele critica profundamente as políticas culturais baseadas nas regras do Mercado Financeiro. “O que anteriormente tinha um forte vínculo com o saber, a transmissão do saber e do saber-fazer na cultura e na ciência, hoje são achas na fogueira da promoção. O fundamental, o que interessa é vender, vender a qualquer preço”.

No nosso caso brasileiro, estamos passando por uma fase, há décadas, de supremacia das políticas que favorecem as indústrias culturais e suas culturas massificadas. Nossos governos, incluindo o atual, derramam bilhões de reais para manterem os sinais de televisão da péssima Rede Globo, por exemplo, que leva seus padrões de vida, de pensamento, de estilo para todas as regiões do nosso país. Estamos atravessando uma fase que provavelmente nos levará a uma standardização da nossa tão rica e variada cultura brasileira. A uniformidade cultural - já falei isso aqui há algum tempo atrás - é a morte da cultura!

Banda de pífanos de Caruaru
Ver a questão cultural como mais uma forma de agregar mais dinheiro aos bolsos dos já ricos agentes do Mercado Financeiro é o que tem sido a realidade do que vivemos. Mesmo que os agentes públicos atuais neguem esta forma de ver as coisas, mesmo assim não vemos acontecer de serem tratados no mesmo patamar o último espetáculo dançante de Cláudia Raia e os músicos da Banda de Pífano de Caruaru. Se o Estado brasileiro pouco se importa atualmente em incentivar de norte a sul do Brasil as ricas e variadas manifestações culturais do nosso povo, acontece que isto continuará sendo feito por quem quer ter lucro, ou seja, apostando na mais nova dupla sertaneja que gere milhões, porque dar incentivo aos brincantes do Bumba meu Boi da Maioba de São Luís do Maranhão não interessa ao Mercado.

Diz Manuel, muito bem dito: “Para quem detém poder na área da cultura, as manifestações culturais são instrumentos de promoção publicitária dos bens culturais. Uma visão que não se distingue da dos departamentos comerciais, do marketing de qualquer empresa, actue ou não actue no campo da produção de bens culturais”.

Ele continua apontando a visão de mercado que tem seu foco no lucro e não na promoção do saber:

Uma instalação de uma edição qualquer
da Bienal de Arte de Veneza
Bienais de artes, festivais literários, colóquios, exposições, lançamento de livros e discos, e o que a imaginação do mercado endrominar, que se multipliquem não com qualquer objectivo cultural mas a bem da promoção publicitária, da venda do «produto» independentemente do valor efectivo”.

“A cultura é vista como um enorme circo iluminado por um sol enganador em que a omnipresente linguagem dos mercados esvazia de significado da cultura, do que é cultural na diversidade da transmissão e aquisição de saberes”.

Diz mais:

“O direito à cultura reduz-se ao direito dos consumidores de escolher um livro, um filme, ir a um concerto, de visitar museus ou exposições de que perdeu o norte nos catálogos de farta oferta em que deliberadamente se confunde o que é entretenimento, padronizado por indústrias que exploram um gosto médio sem espessura, que não obrigam nem incentivam qualquer reflexão, com as da criação artística e cultural que promovem e incentivam a transmissão e a produção de conhecimento”.

Na minha área - a das artes plásticas - por exemplo, nós que não temos um marchand, um agente qualquer do mercado de arte, ficamos à mingua em nossos ateliês, felizes que somos de vender um quadro a cada seis meses, ou de expor nas paredes de algum restaurante, que é o que restam aos artistas que vivem de fora do mercado. Pior do que isso, é a apropriação do Mercado Capitalista sobre o estilo da arte que se quer impor como prática, a tal da “arte contemporânea” que se limita à arte de conceito, à videos, à instalações, à pinturas sem sentido. Eu e mais tantos outros pintores, fazemos arte contemporânea simplesmente porque somos contemporâneos! Estamos vivos e bem vivos! A arte figurativa retoma um grande fôlego nos tempos atuais. Mas no Brasil não há um incentivo à variedade da produção artística, há o artista-standard que agrada aos agentes de Mercado. Em geral, eles são produzidos na ECA-USP e FAAP, em São Paulo, e na Escola do Parque Lage, no Rio. Essas escolas produzem para o Mercado. E prestam um grande desserviço à arte brasileira, quando espalham ideias do tipo “desenhar não é mais preciso”. 

Isso sem falar no fato de que as artes plásticas se converteram em um dos melhores produtos para aqueles que precisam lavar dinheiro. Traficantes e corruptos de todos os tipos têm investido muito dinheiro no chamado "mercado de arte".

Bumba-meu-boi do Maranhão
Mas o Estado brasileiro também se demitiu em promover a cultura e os artistas que não passam pelo crivo da indústria cultural. Parece que em Portugal também, como afirma o crítico Manuel Augusto: “A primeira das muitas causas de não poder haver qualquer expectativa desse género é a demissão do Estado em promover a cultura, nomeadamente através do serviço público de rádio e televisão, meios que tinha a obrigação de utilizar. Em linha com essa demissão, estão os critérios de atribuição de subsídios à criação artística e cultural que deveriam privilegiar a descentralização cultural e não os de uma suposta valorização da produção artística nacional nos mercados internacionais com critérios mais que duvidosos”.

Ele continua criticando essa política de incentivo a uns poucos e de descaso a muitos artistas. “Veja-se o apoio concedido à dupla João Louro/Maria do Corral (artistas portugueses contemporâneos), que se inscrevem na grande farsa que é a arte contemporânea, que tanto deslumbram Barreto Xavier e no apoio recusado à XVII Festa do Teatro/Festival Internacional de Teatro de Setúbal, com significativas diferenças de custos em euros, a bitola da Secretaria de Estado da Cultura, para se perceber os não desígnios culturais da governação”.

“As palavras-chave dessas políticas ditas culturais são mercado e promoção”. 

No nosso caso, repito: a falta de política cultural do governo brasileiro permite que ela seja feita e colocada em prática por quem quer gerar e obter lucro com a produção artística e cultural. O resultado, que já vem ocorrendo há décadas, é uma cultura brasileira que se empobrecerá na direção de uma uniformidade cultural, imposta pela indústria cultural. Não queremos um Brasil standardizado culturalmente! Queremos um Brasil rico culturalmente, com sua cultura variada em seus quatro cantos!

O que Manuel Araújo critica lá, criticamos cá. Nós, produtores culturais, além de tudo somos obrigados a não limitar nossa ação ao que produzimos, mas - para que não morramos como artistas - a promover nós mesmos nossas obras. “Há uma fé ilimitada que todas as acções de promoção, desde que esse seja o objectivo primordial, são boas, não interessando se são excelentes ou medíocres”, diz ele. “Todos sabem, menos os governantes e seus agentes, que promover a mediocridade cultural tem o efeito de amplificar a mediocridade (grifo meu). Legitimar a mediocridade até se atingir o ponto de não retorno da ausência, do vazio cultural, no aniquilamento da qualidade, empurrando os cidadãos para a iliteracia cultural, o que os amputa da capacidade do exercício da cidadania”.

“A afirmação e a convicção de que «a cultura» gera lucro, o ex-libris da Economia da Cultura e dos enormes equívocos das indústrias culturais e criativas, onde se confundem, sem inocência, actividades industrializadas de entretenimento com actividades sem lucro financeiro. Legitima os critérios da economia do dinheiro, os interesses dos patrocinadores, a contabilidade dos públicos.”

E como o capitalismo é um sistema que se baseia no lucro puramente, vai transformando o mundo num imenso depósito de bens de consumo e transformando a todos em consumidores. Mas nós somos mais do que consumidores neste mundo de meudeus! Somos todos diferentes, e esta é nossa riqueza! Somos seres humanos, cada um com cada cara, cada cor, cada história de vida...


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* Jornal Avante!, órgão do Partido Comunista Português