sábado, 29 de janeiro de 2011

Rubens Ianelli: a arte é uma necessidade vital

Rubens Ianelli pertence a uma família de artistas. Filho de Arcângelo e sobrinho de Thomaz Ianelli, duas personalidades que representam a arte moderna brasileira, Rubens iniciou-se como artista plástico na observação do trabalho do pai e inspirado pelos inúmeros encontros de artistas que iam à sua casa para frequentes macarronadas promovidas pela família.




Em seu atelier no bairro do Cambuci em São Paulo, Rubens, hoje com 57 anos, conversou longamente com a também artista plástica Mazé Leite e o jornalista Umberto Martins, do Vermelho, sobre seu trabalho, trajetória e idéias sobre a Arte e o mundo.


Rubens, qual é sua origem, seu histórico como artista plástico?
Tudo começou mesmo dentro de casa, porque filho de pintor, sobrinho de pintor, né? Eu cresci nesse meio. Naquele período, quando eu ainda era menino, na década de 1960, era muito comum a reunião de artistas, pintores, escritores... Era uma coisa que na minha casa ocorria no mínimo duas vezes por semana. Por lá circulava todo tipo de gente, de artistas a intelectuais.
Iam sobretudo para comer macarronada! Mas também discutiam, conversavam sobre Arte. Geralmente meu pai mostrava um trabalho, eles davam ou não seus palpites... Mas antes de tudo tinha a macarronada!
Macarronada da tua mãe, dona Dirce?

Eles faziam também! Vários grupos que frequentavam a casa. O do Volpi, que era também o do Fiaminghi, um artista que morava no Cambuci, especialista em fazer boas macarronadas. Mas enfim... essa conversa dentro de casa sempre girava em torno da Arte. E eu desde cedo ouvi muito, aprendi a olhar bastante coisa em termos de artes. Com isso, quando eu tinha dez, onze anos de idade, comecei a mexer com desenho e guache (porque o papai pintava a guache). Utilizava os restos daqueles vidrinhos de guache que ele dava pra mim. Mas no final nunca era tinta pura, sempre era algo como um marrom escuro, já com a mistura de todas as cores. E com aquilo eu fiz meus primeiros guaches.

Mas a primeira manifestação de vontade de seguir esse rumo aconteceu quando tive contato com a arte pré-colombiana. Meu pai esteve um período no Peru e trouxe várias peças pré-colombianas que me impressionaram. Com dez anos de idade eu fiz alguns desenhos tentando me aproximar daquela arte. Depois, utilizei o barro, de maneira bem rudimentar, sempre com referência nas cerâmicas daquele período. Também fiz muitos entalhes em madeira, que dava de presente, às vezes vendia, tudo nessa época, quando morávamos no Bairro do Jabaquara.

Em 1964 fizemos uma viagem de dois anos pela Europa. Em Paris, fiz a primeira série de desenhos a bico de pena, influenciado pela obra de Paul Klee e Juan Miró. Além destes artistas, na época, eu gostava de Modigliani, Giotto, Van Gogh, Piero Della Francesca, Goya, Arte Etrusca, Picasso, e de tantos outros que não dá nem pra ficar enumerando. Então, essa série grande a bico de pena, realizada em 1966, foi minha primeira série de desenhos. Eu tinha doze, treze anos...

A volta da viagem foi bem difícil, tive muita dificuldade de adaptação na escola. Acostumei com aquela vida errante, de dois anos viajando dentro de um minúsculo trailler, percorrendo inúmeras cidades e diversos países diferentes. Chegando a São Paulo, comecei a fazer bastante grandes entalhe em madeira, totens, coisas assim, sempre tendo como referência a arte africana ou a da Oceania. Manifestações do passado cultural da humanidade sempre me atraíram.



Rubens em seu atelier


O contato com essas artes antigas também foi através do seu pai?
De certa forma sim. Quando moramos em Paris, havia o Museu do Homem, que depois pegou fogo. O que restou dele está hoje no Musée du Quai Branly. Lá tinha muita coisa de arte Africana e da Oceania. E eu circulava muito por Paris, sozinho mesmo, visitei várias vezes o Museu do Homem. As chamadas “artes primitivas” para mim tiveram influência bem forte.

Na volta ao Brasil, ainda adolescente, eu fiquei fazendo essas esculturas em madeira. Depois montei uma oficina para fazer telas, que eu vendia para os artistas. As esticava, preparava e vendia. Era uma coisa extremamente trabalhosa e dava pouco, um trabalho bem modesto.

Quando montei minha molduraria com 17 anos, o negócio melhorou. Quando entrou a moda da moldura de alumínio, na década de 70, numa época de boom do mercado imobiliário. Recebia tiragens de gravura fechadas, por exemplo 150 do Aldemir Martins, 100 do Emanoel e tantos outros que eu emoldurava. Depois espalhavam estas gravuras pelos prédios. As molduras de alumínio que existiam na época eram patenteadas. Então eu fui procurar um perfil de alumínio utilizado para esquadrias de banheiro e descobri que dava para fazer uma moldura e inventei uma moldura de alumínio, até que um dia a patente caiu, mas aí eu já nem fazia mais.

Este período, final dos anos 1960 e início dos 1970 eu vivia fechado, distante da realidade, do mundo. Foi então que comecei a fazer pintura geométrica. Tinha 17, 18 anos, e comecei a mostrar minha pintura nos salões de arte. Os salões eram ainda pequenos, tinham 200 pessoas, 250 inscritos e já era bastante gente (hoje um salão tem milhares de inscritos).

Ganhei vários prêmios nestes salões. O período da década de 1970, nas artes plásticas, teve um movimento importante chamado de “Geometria Sensível”, que teve representantes em toda a América Latina.
  

E o Arcângelo Ianelli dava palpites no seu trabalho daquela época?

Quando eu pedia opinião ele dava. A gente conversava abertamente, o que ele não gostava, falava logo. O que gostava, também falava. Então era conversa bem profissional, sem paternalismo mesmo. Ele nunca foi de ensinar algo como “senta aqui, agora pega o lápis...” nunca. O que eu mais fazia era ficar observando. Não tive o privilégio de conviver com ele e observar mais atentamente quando ele era figurativo, porque eu era muito pequeno, era criança. Apenas ficou gravado em mim como ele fazia o traço na tela, um traço super firme, o jeito dele utilizar o carvão... Mas lógico que eu não tinha a mínima noção de como ele estava construindo aquelas pinturas figurativas. Para mim, este foi um período em que ele teve um trabalho muito consistente. Então a época em que eu mais me aproximei do trabalho de papai foi quando ele já era abstrato mesmo.
Mas você admite que sofreu influências do trabalho dele?

Influência é impossível não ter, ainda mais sendo tão próximo assim. Haja visto o período geométrico, por exemplo. Ele também era geométrico naquela época. Era um período em que vários artistas que estavam nesta tendência se reuniam em casa. Ianelli, Alfredo Volpi, Ermelindo Fiaminghi, Luiz Sacilotto, Lothar Charoux, Hécules Barsotti, que eram geométricos, além de Thomaz Ianelli, Norberto Nicola, Jacques Douchez, Emanoel Araújo, Wakabayashi, Paulo Mendes de Almeida, Juan Acha e outros que não recordo, estavam sempre presentes.
Aconteciam de vez em quando umas brigas por causa de questões de Estética?

Às altas horas, depois de bons copos de vinho o tom subia. Certa época, o Nonê (de Andrade), filho do Oswald de Andrade e da Pagú, manteve calorosa polêmica com meu pai a respeito da arte figurativa e popular. Nonê era defensor ferrenho da arte figurativa, da arte com conteúdo social; Ianelli era partidário da “arte pela arte”, tema candente da época. Eles quebravam o pau! Mas depois sempre tinha outra macarronada e tudo se acomodava...
Há um episódio curioso na primeira tentativa que seu pai fez de vender um quadro.

É verdade. Na primeira exposição que o papai fez, lá pelo início dos anos 1950, se não me engano, em uma galeria na Rua 7 de Abril, em São Paulo, teve um cidadão que chegou para ele no dia da inauguração e disse: "olha, gostei muito desse quadro aqui. Quando terminar a exposição, por favor, vá até minha casa com a obra que vou comprá-la, anote meu endereço" e tal... Depois da exposição, papai colocou o quadro embaixo do braço, todo feliz, e o levou à casa do cidadão que prometeu comprá-lo, na expectativa de realizar a primeira venda. Aí, tocou a campainha, atendeu uma mulher, ele explicou que estava trazendo o quadro que o fulano queria comprar e a mulher, surpresa, informou: "mas o senhor ainda não sabe? ele morreu!" E assim foi a primeira venda “frustrada” de um quadro do meu pai.





Da série Cidades Perdidas, aquarela sobre papel, 2003


Você também foi para a pintura geométrica?
Pois é, naquela época, na década de 1970 a coisa estava fluindo bem para mim. Só que eu não estava envolvido com o mercado. Só participava dos salões, exclusivamente. Também não tinha vontade nenhuma de entrar no mercado. Não gostava dos rituais das exposições. E no momento em que a coisa ganhou um impulso legal para mim, eu cortei. Fui fazer arquitetura, e daí entrei no movimento estudantil. Era 1973, época da ditadura mais ferrenha. Me envolvi nos movimentos de resistência e não consegui mais conciliar meu trabalho artístico com a militância política. Fiquei um tempo meio à margem das coisas. Fui retomar meu trabalho bem mais à frente, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, com colagem, com uma linguagem mais política, em cima dos acontecimentos que estavam se dando naquela época. Não só do Brasil, mas de fora também.

E aí comecei a me confrontar com a questão do desenho, porque eu nunca tive um estudo do desenho, nunca tive um curso, uma formação. O pouco estímulo que recebi para o desenho de observação se deu através das aulas de Antonio Carelli, Ubirajara Ribeiro e Ricardo Othake, na Faculdade de Arquitetura. Artistas da geração de meu pai, ao contrário, passavam pela fase de formação acadêmica na escola de belas artes, cumprindo um “serviço militar” de dois anos no desenho. Meu pai dominava muito bem o desenho, mas nunca chegou a me ensinar.
Então comecei a usar colagem, principalmente do jornal, misturando figuras com formas geométricas, usando a cor e a expressão da imagem que tinha no jornal. Daí comecei a olhar e pensar: “caramba, até quando eu vou ficar precisando da foto? Por que eu não uso minha mão para produzir essas figuras?” Comecei o caminho inverso, me afastando da geometria, saindo da colagem e começando a desenhar por conta própria, a partir de fotografias ou simplesmente fazendo desenhos de observação nas ruas...
Você fez bastantes estudos de desenho de observação?

No começo era mais no atelier mesmo, pegava fotografia e tentava desenhar. Depois desenhei marinhas, até explorar os casarios das cidades históricas do Brasil. Senti forte necessidade de resolver essa questão em mim, a questão do desenho que eu achava fundamental. Isso até os anos 1990. Até hoje acho o desenho muito importante, e tudo isso tomou mais forma em mim lá pela década de 1980 para 1990.
Você abandonou a arquitetura?

Abandonei depois de três anos, em 1976. Em 1979 entrei na Faculdade de Medicina, em Taubaté. Aí o hiato se abriu mais ainda, porque a Medicina exigia dedicação exclusiva. Em 80, 81 eu entrei em contato com o PCdoB, lá mesmo em Taubaté. Até então eu tinha me prometido não me meter mais em nenhuma questão política, porque eu tinha que estudar, ter um diploma! Eu resisti muito. Mas tinha um casal de amigos da faculdade que ficava me assediando, o Ziza e a Rosângela, que eram dois médicos. Em 1980/81 acabei entrando para o PCdoB.

Ainda assim, eu retornei a colagem, ainda que de forma esporádica. Eu não conseguia ter uma seqüência, um aprofundamento, uma continuidade. Ia fazendo conforme tinha oportunidade e tempo. E isso aconteceu durante muito tempo, porque a Medicina me absorveu mesmo, além da militância no PC do B, que na época estava na clandestinidade.
Você foi da direção regional do PCdoB também, não é?

Sim. Em Taubaté, logo no começo, foi formado um comitê do Vale do Paraíba, onde eu era o secretário político e tinha que dar conta do trabalho do partido em São José dos Campos, Jacareí, Caçapava, Guará, Piquete. Tínhamos vários contatos por lá. Em 1986 fui para o Diretório Regional e transferido para São Paulo. Meu projeto era ficar em Taubaté, fazer residência em pediatria e ficar por lá. Mas na época teve aquela Conferência Extraordinária do PCdoB e eu fui indicado para vir para São Paulo. Então eu passei por esses grandes hiatos na produção artística...

Em 1990 resolvi ir para o México. Fui por terra, numa viagem que durou um ano. O projeto era morar no México, mas não deu certo. Tive que voltar porque minha esposa tinha ficado grávida e não queria ficar no México. Então, no retorno ao Brasil, comecei a retomar meu trabalho. Mergulhei no desenho, usando metade de um período para trabalhar como médico e o resto do dia eu trabalhava no atelier.

Tem outra história de comunista na família, não?

Sim, meu avô, pai da minha mãe. Foi farmacêutico e médico, conhecedor das plantas medicinais do Brasil. Foi militante ativo na implantação da ANL [Aliança Nacional Libertadora, que liderou um levante militar em 1935] em São Paulo e foi membro do Partido Comunista do Brasil. Seu pai, meu bisavô, também tinha sido médico, parlamentar e abolicionista.

O camponês, óleo sobre tela, 1993


Trabalhava na sua casa mesmo ou você tinha um atelier?
Tinha um atelier num sobradinho na Vila Mariana. Fiquei um tempo lá. Depois montei outro atelier numa quitinete no bairro da Liberdade, onde morei. Foram vários locais assim. Continuei com a Medicina também, e fui fazer mestrado na Fiocruz (da Fundação Osvaldo Cruz), quando me mudei para o Rio de Janeiro. Esse mestrado também me ocupou muito. Mesmo assim fiz bastante desenho a pastel, coisa que eu não tinha feito ainda. Figurativo, sempre figura.

A partir de 1995 comecei a trabalhar com populações indígenas, como médico, principalmente no Mato Grosso, um pouco em Rondônia e, depois, em 2000, foi para o Acre. No Acre era impossível conciliar as duas atividades, nem que eu quisesse, porque a demanda me ocupava às 24 horas do dia. No Acre, eu morei em Tarauacá que na época tinha 18 mil habitantes. Todo mundo me conhecia, sabia que eu era médico e batia na minha porta 24 horas por dia. Não dava nem para namorar! (risos) e para desenhar eu tinha que sair no fim de semana, ia para Cruzeiro do Sul, onde namorava e desenhava um pouco. Depois voltava.

Foi depois dessa experiência no Acre, que durou um ano, que eu resolvi parar com tudo e voltar a ser artista. Voltei ao Rio de Janeiro e aí mergulhei na minha arte. Afastei-me da Medicina.


O cocar do cacique, pedra sabão e pincéis, MDF, 2004


É engraçado que você estava falando da sua atração pré-colombiana e acabou indo trabalhar com populações indígenas.
Eu tenho um grande amigo, o Dr. João Luiz, que era diretor do Hospital Vital Brazil, do Butantã, que me sugeriu passar uma temporada em contato com os índios Xavante, no Mato Grosso. Lá com eles tive contato com a arte indígena através da pintura corporal eda cestaria. Mas no Acre, os índios Kaxinawá, por exemplo, tem a tecelagem, a cerâmica e as pintura corporais bem sofisticadas, muito bonitas. Eu até tinha um caderno com mais de 40 páginas desenhadas por eles, cada uma com um motivo diferente, que acabei doando para o Museu AfroBrasil, no Ibirapuera.
E você fez alguma exposição nesse período todo?

Só fiz uma exposição minha mesmo em 1989, no Centro Cultural Vergueiro, com trabalhos de colagem. Era uma homenagem ao Chile, que estava na campanha do “NO” à ditadura militar naquele país. No mesmo ano levei as colagens para serem expostas no Rio. Depois, só voltei a expor só quando já estava no Rio, fiz uma exposição de pinturas em Belo Horizonte, no Centro Cultural da UFMG, em Belo Horizonte. No Rio de Janeiro, expus no Centro Cultural Cândido Mendes, depois nos Correios e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Mais recentemente montei individuais em Belo Horizonte, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre e no Museu AfroBrasil, de São Paulo.

Então comecei a engrenar melhor com as exposições, mas geralmente em instituições públicas e culturais, não em galerias de arte.
  

O que você conclui sobre esse período em que, como você diz, houveram hiatos na sua vida de artista? Porque dá a impressão de que é como se fosse uma cobrança permanente sua, como se a vida tivesse mais sentido com um foco na arte. Como é que você vê? 

O que eu posso dizer é que, por exemplo, quando decidi fazer medicina... Nunca tinha passado pela minha cabeça fazer e nem era um talento meu. Fui fazer medicina por uma dívida social, porque eu queria ter um instrumento que pudesse utilizar para fazer alguma coisa do ponto de vista social. Não era um amor incondicional à ciência médica.

Agora, em relação à arte, é uma coisa que está muito dentro da gente, é uma necessidade vital mesmo. Eu não sei explicar direito, mas é como um alimento de que você precisa. Por exemplo, quando eu estou aqui no atelier. No dia em que não produzo nada, nem que seja uma coisa que não deu lá muito certo, em que eu não executo nada com as mãos, não é um dia legal, não fico bem! Na medida em que estou produzindo, que estou utilizando minhas mãos me sinto muito melhor. E vou dizer uma coisa, tem que ser diretamente com as mãos mesmo, por a mão na massa como se diz, uma coisa que vai contra o que ocorre hoje em dia que as pessoas preferem usar os meios eletrônicos para tudo. Quanto mais eu utilizo meu trabalho manual, mais me satisfaço como pessoa! Por isso que eu acho difícil me distanciar da arte, ainda que exista toda uma realidade própria desse mundo da arte, que é bastante complexa, o que já é um outro capítulo.
Voltando ainda à vida familiar, seus pais incentivavam em você a vida de artista?

É curioso... em casa, uma casa de família de artistas, eles não me incentivavam. Eu me questionava o motivo. Mas no fundo era porque eles sabiam da dificuldade que eu iria enfrentar pela frente, porque eles já tinham exemplos e histórias dentro de casa. Meu pai, por exemplo, foi vender o primeiro quadro depois de vinte anos pintando! O primeiro quadrinho! Ele tinha outro trabalho, um escritório, vendia algumas coisas e vivia daquilo, mas quadros não vendia, não. Vinte anos para vender um quadro! Meu avô queria que meu pai fosse engenheiro, mas teve que se render ao talento de pintor do filho. Fez um atelier para ele numa casa da família, era um galpãozinho. Meu avô era mestre de obras. Não tinha estudo, mas sabia construir casas.


Maquetes de escultura, 2010


No atelier do meu pai, eu fiz apenas algumas poucas coisas. Eu estudava num colégio onde todo ano tinha um salão de arte dos alunos. Quem fosse premiado ganhava a anuidade. Aí eu ganhei, minha irmã ganhou também... Então o primeiro quadrinho eu fiz com ele lá, com sete anos de idade, no cavalete dele. Aliás, tem um quadro, intitulado “O menino pintor” onde ele me retrata, um quadro fantástico, maravilhoso, que é no interior desse atelier. Está na minha casa. Eu o estou doando para a Pinacoteca do Estado de São Paulo. É muito importante para mim, esse quadro. Eu gosto muito porque tem muito a ver com minha relação com meu pai.


E como você se situa hoje em meio a esse estado difícil da arte contemporânea?
Olha, eu nunca fui muito de participar de movimentos, ou do que está acontecendo na vanguarda da vez... Eu nunca me engajei, não. Sempre quis andar por conta própria. Isso tem um ônus, claro, porque a pessoa fica à margem das coisas. Então nos últimos anos tenho desenvolvido esculturas, dei um avanço bom nisso. E em relação à pintura também.
Eu acho que a cada dia que começo a trabalhar, vou com um espírito de principiante mesmo, para aprender a cada novo dia. Então, esse debate atual sobre a pintura, que uns a querem viva, outros morta, falam mal ou falam bem da pintura, isso não me interessa muito, não entro nesse debate. Dizem que pintura é coisa para velhos, porque são muitos anos de treinamento até você pintar, ter domínio. É uma atividade que exige tempo, e hoje em dia o tempo é outro, buscam-se sempre resultados rápidos. Mas eu continuo pintando.
Você consegue vender e expor suas obras?

Sobre vender, eu não posso reclamar. Não que eu venda muito, mas tenho dado sorte sempre quando a coisa aperta, alguém aparece e compra um trabalho meu. Sempre foi assim! Minha avó dizia “é, continua fazendo esses quadrinhos aí que te darão um dinheirinho...”. Então eu tenho alguns contatos com escritórios e galerias para os quais vendo. Claro que tem períodos de estiagem total, como nesse ano de 2010, quando vendi pouco.
Você enviou trabalhos seus para Portugal, não foi?

Sim, meus quadros foram expostos em uma galeria, em 2007 e venderam bem. Eram pinturas, objetos e aquarelas, que vendi quase tudo. O bom seria se você pudesse vender para instituições e espaços públicos, que são espaços ainda a serem desbravados, porque os maiores museus estão transbordando, não têm mais onde colocar nada, não tem gavetas para colocar desenhos, gravuras, etc. As reservas técnicas dos museus estão abarrotadas de obras. Por outro, as cidades estão pedindo mais obras de arte. A arte nas ruas, esse é um potencial grande a ser explorado.
E você sempre fez esculturas em paralelo à pintura? Como foi esse processo?

Quando era menino, fazia entalhes em madeira, mas escultura mais elaborada foi somente a partir de 2003. Eu tinha os estudos feitos lá na década de 70, que passei para o tridimensional. Daí fiz as maquetes, e depois passei para o aço, bronze, fibra de vidro.

Colunas, aço corten, 2003


Em termos de linguagem mais técnica, o que a escultura fala de diferente?
Ah, tem a questão do espaço. É outra dimensão. Com a escultura tem a facilidade de você interagir também. Você pode entrar, passar por ela, sair, transpor. Eu acho que é um campo que, já que boa parte da humanidade se tornou quase toda urbana, está na hora de ocupar esse espaço urbano com alguma coisa assim. São linguagens completamente diferentes, pintura e escultura. Nem dá para querer passar de uma para outra assim de uma maneira automática. Cada uma tem seu espaço. Eu sempre gostei da tridimensionalidade do espaço e sempre tive facilidade para mexer com ela, construir coisas... Quando era menino, construía muitas coisas, brinquedos, por exemplo. É uma coisa que eu fazia bem.
  

Agora uma pergunta um pouco mais filosófica... Nesse mundo tão caótico que estamos vivendo atualmente, com tanta informação e tanta poluição visual. Veja a internet, por exemplo, com bilhões de informações e de imagens. E junto a isso, toda aquela discussão da morte da arte apregoada por neoliberalistas da década de 1980 e que ainda tem reflexos hoje. Na sua opinião, que papel tem a arte no mundo de hoje? Qual é a sua visão?

Voltando a essa história de que a pintura “morreu”... Como se pode afirmar uma coisa dessas, se a pintura já estava lá nas cavernas e continua se afirmando depois de quantos milhares de anos?

Com o avanço da tecnologia, hoje se usam outros meios para produzir objetos de arte, o que é uma opção, e acho que nada é excludente. Mas o que observo é que todas as outras formas de se executar um trabalho com as mãos são abominadas, como se não tivessem mais valor. E inventam essa história de que a pintura morreu, mas não é bem assim. O que morreu, para eles, foi o fazer arte da forma antiga, mais artesanal, natural, com as mãos mesmo.

Penso que a arte tem um papel na formação da cultura de um povo e que ela não é para ficar só no museu. Porque quando a gente observa o estado da arte hoje, quando vê ou lê as notas nos jornais, vemos que o acesso às manifestações artísticas ainda é para pouquíssimas pessoas. Um recente levantamento do Ministério da Cultura (MinC) indica que 92% dos brasileiros nunca frequentaram museus e que 93% nunca foram a uma exposição de arte. Portanto, muitas vezes a discussão das artes plásticas fica restrita ao campo econômico, ao mercado, como aplicação e investimento. E dentro disso se criam ícones, se fazem nomes em torno dessa questão econômica. No meu modo de ver, a fruição das obras de arte é importante na formação da pessoa humana. A criança desde pequena deve ter contato com as formas de expressão que o homem aprendeu a utilizar. Isso também é educação. Eu acho que existe um campo não explorado extremamente vasto que é a formação da criança e do jovem para aprender a olhar as obras de arte, sentir se aquilo diz alguma coisa, se dar essa chance. Então, pelo menos que se dê a chance às pessoas de observar, de olhar, de ver obras de arte, para que a pessoa possa traçar uma opinião, e não ir na onda do que dizem ser a verdade da hora. O público tem que se dar essa chance de saborear essas coisas. Como a literatura, que você saboreia. Ela tem o dom de traduzir um momento da realidade do mundo e também uma função harmônica, de preencher um espaço e uma ligação na sociedade no espaço em si.



O guadião, bronze, 2010


No sentido de a pessoa se sentir membro de um grupo.
Isso. Mostra tendências que estão se apontando numa sociedade, num momento histórico. A arte também traduz isso, como a literatura e a música, de certa forma. E às vezes o artista funciona como um radarzinho, ele consegue antever muitas coisas. Isso não quer dizer que dentro desse tumulto que você está falando de hoje temos que ter só um olhar pessimista. Porque há uma tendência a se ter um olhar pessimista. Isso não é tão difícil de mostrar, mas não é esse o único caminho, acho que tem outros dados para mostrar também. Tem um lado de futuro, de uma perspectiva melhor através da arte.
Dentro disso, em muitos momentos da história da Arte surgiram críticas, feitas ainda hoje, em relação às obras de arte que se voltam para o futuro ou que trazem ao presente um futuro otimista...

Uma coisa é o seguinte: se uma pintura é boa, é boa e ponto final. Se foi feita por um artista soviético ou por um artista francês ou norte-americano, mas é boa pintura, então não importa o resto! Mas o que existe por trás disso é a questão ideológica, que não vai reconhecer, pelos seus critérios, uma obra de arte como arte, não vai dar nenhum incentivo, e não vai encontrar nelas nenhum ponto positivo. O Realismo Socialista, por exemplo, que era mais pintura, na época. Depois da Segunda Guerra, quando estava estourando nos EUA o abstracionismo, criou-se um grande movimento em torno dessa estética, que foi considerada a vitrine da arte moderna do pós-Guerra, a arte abstrata. Era lógico que era inadmissível para a tendência abstrata uma arte com conteúdo, figurativa, em especial o Realismo Socialista. Era mais uma questão ideológica do que a questão da qualidade da arte em si. Repito, a pintura pode ser uma porcaria como pode ser muito boa. O que importa é a qualidade dessas obras. É uma questão delicada, mas é muito interessante como ainda hoje se passa ao largo dessa questão. Fica-se falando, por exemplo, “como pode uma pintura falar de algo do futuro, que não retrata a realidade que era da época, de uma coisa que não existia, mas que estava ali como uma possibilidade...” E daí? Por que não se interroga se eram boas pinturas ou não? O que retrata a pintura das cavernas? Retrata o que eles eram e faziam, retratam cenas de sexo, cenas de caçada, cenas de enfrentamento, uma série de coisas da vida presente e dos desafios da sobrevivência naquelas condições.
É, isso de ser bom ou não ser bom é bem ideológico nestes tempos atuais...

O que eu acho é que tem mesmo que avaliar a qualidade! Um exemplo: para a construção de um prédio existem as regras básicas de construção, que o engenheiro ou arquiteto, têm que conhecer. Tem que ter uma estrutura, um projeto e dar uma solução para os problemas que vão surgindo, para que o prédio não caia. Então ele não pode ser só bonito. É a mesma coisa se você vai fazer com uma pintura ou com uma escultura, uma gravura, você precisa saber mexer com a técnica. Ou então você não sabe, e não tem bom resultado, não fica legal. A casa cai. Essa é a primeira questão. O resto é bem no campo ideológico, que parte para a confrontação. Porque a arte também é poderosa nesse sentido: como se tem utilizado da arte nesse sentido político e ideológico também? Ela também pode ser um instrumento político e ideológico. Todas as tendências de arte do século 20 não surgiram à toa, todas elas tiveram um porquê.

E tem muita coisa boa em todos os lados! Assim como tem coisa ruim. Você pega, por exemplo, essa montanha de arte abstrata que foi produzida nos EUA depois da Segunda Guerra nos últimos 50 anos. Tem coisa boa? Tem, mas tem um monte de porcaria também. Pollock (Jackson) era uma verdadeira vitrine dos EUA naquele momento. Tem coisa que foi elevada a um grau altíssimo que eu não sei se possui esse grau.
  

Mas voltando ao tema de que a questão não é bem colocada, especificamente em relação ao Realismo Socialista...

Vou ser franco, eu não sou profundo conhecedor do Realismo Socialista, então não posso ficar me aventurando muito na coisa. Mas eu digo que de uma maneira geral é preciso olhar com outras lentes. Tem obras realistas ruins, mas se produziu muita coisa boa e não se reconhece! A escola francesa do final do século XIX e do século XX, até a II Grande Guerra, por exemplo, é muito boa. Há alguns anos fui a Paris e visitei o Museu d’Orsay, e vendo todas aquelas obras, não tem como não se perguntar: o que têm eles de diferentes em relação ao que vemos hoje? É que os caras eram bons, né? Que qualidade!

Aquela exposição que passou aqui pelo Brasil, a Virada Russa, mostrou o alto nível dos artistas soviéticos. Foi uma das melhores exposições que eu vi nos últimos tempos! E olha de que época eram! Pega um período grande, de antes, durante e um pouquinho depois da Revolução de 1917. Extremamente avançado, muito à frente de sua época. Lá estavam Maliévich, Rodchenko, Stepanova, Kandinsky, Vladímir Tatlin, Pavel Filónov, Chagall e outros, que produziram em altíssima qualidade naquele período. Ali já haviam avançado no abstracionismo, no cubismo e no realismo. E o curioso é que o realismo hoje é uma tendência fortíssima na arte contemporânea, seja na Alemanha, na Itália ou, principalmente, na China.

Portanto, penso que é necessário dar acesso para que as pessoas possam ver as obras dos mestres, tanto da pintura quanto da música, ou de outra forma de arte. Lembro-me um fato que me marcou muito: no encerramento do 7º Congresso do PCdoB, o maestro Benito Juarez estava dirigindo a Orquestra Sinfônica de Campinas, com um painel meio geométrico ao fundo que tínhamos feito. A platéia era completamente heterogênea, operários, intelectuais, estudantes, donas-de-casa, camponeses... Na hora em que ele começou a executar o Bolero de Ravel, foi um silêncio, uma concentração... Todos os ouvidos atentos! Foi uma das coisas mais emocionantes que eu passei na minha vida! Eu via aquilo e pensava: “Olha só como é possível! Não só como é possível, mas como a gente deve levar isso para as massas. E como elas recebem isso!”. É uma coisa que põe abaixo todo o preconceito. Uma prova concreta. Tem que levar, as manifestações culturais têm que chegar a todo mundo. O que acontece é que vai muita porcaria para o povo. Na escola também, é possível levar eventos de alto nível nas artes para as escolas. Para ir educando as pessoas para a grande arte.

Porque é uma coisa também que fortalece, que nos dá sentido à vida e que mostra que a gente tem história. Precisamos ter história, não somos um ser com dois neurônios, que só lembra o que aconteceu hoje e amanhã já esqueceu. Tem o valor da história, e quem fez a história tem seu valor. E isso é fundamental, porque eu vejo uma tendência muito grande em anular o valor histórico do que foi feito. Na arte mesmo, se você pega um pintor aí de 40, 50 anos atrás, que é um grande artista, que poderia estar sendo mostrado, mas que está esquecido completamente. Nas catacumbas, escondido. Enquanto que se dá valor só a coisas que aparecem e explodem como fogos de artifício e amanhã se apagam. Eu acho que a memória de um povo é importante. Não se pode abrir mão disso, falar que tudo bem, que é só porque as coisas são novas é que têm valor. Não é assim, não. Esse discurso é bem tendencioso.
É como se fosse uma certa rendição de algumas pessoas que pensam que uma vez que o mundo funciona assim atualmente é porque é o modo certo de funcionar, não há alternativa. Perde-se o senso crítico e o senso histórico, como você ressalta. 

Você quer uma coisa bem elementar? O desenho é uma coisa fácil? Não, é muito difícil! A menos que o cara nasça com aquele dom, como Picasso que com oito anos de idade já pintava. Mas isso acontece com pouquíssimos na história da humanidade. Não é todo dia que nasce um Leonardo da Vinci. Para Picasso, se você tem um bom desenho, tem 60% da questão resolvida para o seu quadro. Claro que muita coisa não dá pra ensinar, não dá pra ensinar a criar. Você pode ser um ótimo desenhista, mas não necessariamente vai saber pintar. Até porque a criatividade também é um exercício. Não é uma coisa que surge só da inspiração. Você vai fazendo e aí ela vai se desdobrando. Mas tem que ter técnica. É o que o Van Gogh falava: “desenho é como abrir um buraco numa placa de ferro usando apenas uma lima”, é dureza. Então, ninguém quer suar. Pra que? Vai gastar muito tempo. A coisa agora é mais flash.
Fora que com o computador, tudo se torna mais rápido e aparentemente mais acessível... 

Sim, você pode fazer milhões de estudos de um quadro, num software onde se tem uma infinita gama de cores. Mas eu ainda acho que se eu pegar os meus vidrinhos de guache para fazer um estudo, eu tenho tantas infinitas possibilidades quanto necessito, e fico satisfeito. Sendo que, muitas vezes levando o mesmo tempo que levaria usando o computador. A gente gasta um bocado de tempo nisso, também. É uma questão de escolha. O que não se pode é aniquilar o trabalho de quem ainda usa os métodos clássicos de desenho e pintura com aquela coisa preconceituosa: o que eu faço é bom e o do outro não. É aí que está voltando o tempo das academias, da arte imposta pela academia, do obscurantismo.
Atualmente se fala muito em liberdade. Liberdade nas artes, na estética... O que muitas vezes é apenas a desculpa do cara que não quer aprender a desenhar. Mas o mais incrível é que isto está sendo incentivado nas escolas de artes, como FAAP e ECA-USP, onde se multiplica essa mentalidade: desenhar é coisa do passado. Desenhar? Que ideia absurda! Como assim desenhar, para quê? Você só precisa ter uma boa ideia. Na Arte Conceitual você sustenta a ideia com um conceito e pronto.

Lembrei de um amigo pintor da Amazônia, que, sobre isto, fala: olha, eu tenho tantas idéias maravilhosas, tantas! Não é difícil ter idéia maravilhosa. Agora, fazer... Mas eu acho que aí a coisa se junta com a outra questão que é a dificuldade de usar o cérebro e a mão para produzir, afinal o homem ganhou este instrumento poderoso para produzir, transformar a natureza e se transformar... Essa rejeição acaba desembocando no campo da criação de teorias que parecem ocupar todo o espaço do fazer, entende? Isso cria teorias extremamente estratosféricas, incompreensíveis até para os mais entranhados no meio. Idéias sem sentido, para justificar uma ausência do que deveria ser feito e que não precisava de tanta palavra assim. O legal da arte é o seguinte: qual a relação que o objeto tem com a pessoa. Ele tem alguma relação? Ele transmite alguma coisa? Alguma coisa te diz? Essa é a questão. Se não existe isso, se não diz nada a ninguém, fica complicado. Então você cria essa cortina na frente, esse anteparo, para justificar o que não tem por trás. Precisa tomar cuidado, porque isso cansa também. Acho que já está exaustivo. Por exemplo, aquela Bienal do Vazio em São Paulo. Foi feita uma enorme discussão teórica sobre o Vazio, quando a questão verdadeira daquela Bienal era falta de dinheiro para realizá-la! E fizeram toda uma discussão. É brincadeira com a consciência das pessoas!
Será que tudo isso também não representa um pouco de falta de perspectiva? Ou falta de rumo... Por isso a história é importante, para nos dar um oriente. Me pergunto como algumas sociedades indígenas continuam sobrevivendo ainda hoje? Um dos motivos principais é esse: não negar o que eles foram. É reafirmar o que eles são,construir o que eles foram, o que eles acumularam de saber. Quando nega seu passado, a sociedade se dilui. Quando ela reafirma, se fortalece.
É engraçado que essa volta ao passado, esse olhar para a tradição muitas vezes tem sido tratado como conservadorismo. Depende, não é? Porque, usando o exemplo da vanguarda russa. Toda a produção artística daquele período foi muito baseada na tradição, só que com uma leitura atualizada no tempo em um momento super fértil da vida da Rússia, que os artistas conseguiram captar e dar um salto. Aquele para mim foi um dos grandes momentos ricos da arte. E depois os EUA tomaram para si a arte abstrata e distorceram tudo. Acho que atualmente estamos sofrendo as consequências, nas artes também, não só da vitória neoliberal nas décadas de 1980/90 como da queda do muro de Berlim, da extinção dos países socialistas. É como se a gente estivesse vivendo numa sociedade na qual o sonho no futuro não existe mais, virou o mundo do vale-tudo, salve-se quem puder, eu vou cuidar de mim e o resto que se exploda...

O que tem também é que quem critica os artistas que não se enquadram na tal arte contemporânea, acabam criando aquilo que está se transformando numa nova academia. Lá você vai ter que produzir dentro de um limite, não tem como “inovar”. Isso é uma questão para analisar. Só vale aquele tipo de expressão e nenhum outro. Não se pode passar um rodo em cima de todo um passado artístico, qualquer que seja ele, incluindo o Realismo Socialista, e dizer que não presta. Eu acho que tem que olhar melhor, mais profundamente para as coisas.

Porque a arte conceitual também, cá entre nós, não é nova. Essa conversa tem mais de 50 anos, não é nova! E ela já tinha sido prenunciada por Marcel Duchamp na década de 20 do século passado. Mas continua aí, considerada contemporaneíssima. São várias gerações já se deparando com a mesma questão. Vamos pegar a fotografia, hoje com status de grande arte do século 21. A primeira fotografia foi feita em 1826, então já deveria ser considerada caduca. Mas, principalmente, a tecnologia trouxe novo gás a esta arte e ela ocupa hoje um espaço amplo, até mais democrático, por sua capacidade de reprodução e de baixo custo. O que há é uma reciclagem e a cada reciclagem uns tentam abafar os outros. Como se dissessem assim: “os pintores sempre foram os algozes dos fotógrafos, é chagada a hora da vingança”. É a visão estreita, excludente, míope e prepotente frente ao poder criativo do ser humano. E assim se repete a mesma fórmula. Então é uma academia mesmo, e o que estiver fora, para eles, não presta.

Este movimento de exclusão de meios de expressão, além de ser profundamente elitista, já apresenta um ar de decadência e de falta de perspectiva. A obsessão com a morte da história tem empobrecido a alma e a mente humana. A tecnologia avançada tem produzido grandes avanços e é de grande valia para a humanidade. No entanto, o culto cego ao consumo e às novidades tecnológicas tem entorpecido as consciências e gerado muito lixo travestido de arte pelo mundo. Não é à toa que o cinema produz hoje tanto filme ruim! Fazendo ainda a propaganda anti-vermelho, até hoje! 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Alcântara do Maranhão e Marcel Duchamp

Passei 21 dias de férias pela Ilha Rebelde, São Luís do Maranhão, neste final de 2010. E dois dias caminhando entre ruínas históricas e estéticas da bela cidade de Alcântara, primeira capital do Estado do Maranhão. Nessas caminhadas, máquina fotográfica a postos, flagrei esta imagem que poderia ter sido transformada em obra de arte conceitual em qualquer museu de arte contemporânea! Como ninguém teve essa ideia antes??? Professores da FAAP e ECA, tremei! Deve ter um artista conceitual em processo de germinação no Maranhão... (tomara que não!)

E claro, ato contínuo, lembrei da famosa "obra de arte" (entre aspas mesmo!) "A Fonte", que ainda faz tremer os admiradores do criador da arte conceitual, o francês Marcel Duchamp.


Eis aqui a "obra" de Duchamp:
Qualquer semelhança é mera concidência? Claro! Ou pode ser que por uma dessas voltas que a vida dá, algum maranhense tenha achado (e eu concordo com ele) que é melhor uma "Fonte" com conteúdo do que uma "Fonte" vazia... E deu uma utilidade para o objeto: encheu-o de plantas que, vivas e alimentadas pela umidade permanente daquele pedaço do Brasil, falam de vida, de cor, de crescimento, de suavidade, de luminosidade, de embelezamento. Em meio à umidade da terra da Fonte alcantarense, microorganismos, minhocas, insetos e ocasionais borboletas movimentam aquele pequeno cosmos. Além de tudo, mostra a presença humana naquele arranjo em meio a flores e outras plantas que enfeitam a casa de um cidadão sensível à beleza do mundo! E que embeleza a vida dos outros!

A "Fonte" de Duchamp, em revanche, não tem nada. É vazia, descolorida, fria, acéptica... Não diz nada, não quer dizer nada, nunca quis. Quando espertamente Duchamp descobriu que havia gente que comprava aquilo, fez não sei quantas cópias de sua "Fontaine" e saiu vendendo por aí, ganhando seu dinheirinho honesto com a imbecilidade alheia...

Mas talvez a "Fontaine" diga mesmo algo, não sejamos sectários a ela: que o fato de ser tão endeusada ainda nos dias de hoje, talvez ela seja mesmo o reflexo vazio de uma sociedade pós-moderna desiludida com a Beleza do mundo e do homem. Sociedade que fica tentando criar discursos para tentar explicar porque é tão superficial, tão deprimida, tão consumista, tão massificada, e onde o indivíduo se encontra tristemente engolfado nessas malhas que o sistema atual (e sua mídia) pinta com aparências de liberdade... Liberdade? Que liberdade tem hoje o indivíduo, obrigado a pertencer ao status quo sob pena de alijamento e preconceito de todo tipo?

A "Fontaine" de Duchamp representa tudo isso, um penico elevado ao status de Arte, que nem mesmo serve - como diz a música de Zeca Baleiro - para guardar "água da última chuva"...

Acho que preferi aquela Fonte lá de Alcântara!

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Sirenes roucas, apitos aflitos

Tempos de chuva, de inundação, de dias cinzas e entardeceres nebulosos... Sem pessimismo, porque mesmo nesses momentos vale reler poemas densos, como este de Drumond, para inspirar neste entardecer na Paulicéia.

Desenho à lápis, 2008



ANOITECER
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


É a hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.

É a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo
desta hora tenho medo.

É a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz-morte-mergulho
no poço mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo
desta hora, sim, tenho medo.