terça-feira, 9 de julho de 2024

Guarás e moinhos de vento

 

20/01/2022

A busca por uma terra possível para implementar todos os sonhos só termina quando a fase da burocracia está completa. Idas e vindas, conversas, solicitações de prazo, negociações, verificação de documentos, consulta a cartórios, contadores e advogados… Espinhosa e necessária burocracia, fase chata, mas que nem de longe amedronta pessoas aguerridas como esta Ecomunidade Bem Viver. Se é assim, vamos vencer mais esta etapa. Para adicionar mais dificuldades, tudo isso foi acontecendo quando tudo estava em suspenso por causa das festas de final de ano. Mas o grupo é um bloco coeso e disposto a enfrentar qualquer parada.

Enquanto isso, eu tiro quinze dias de férias, como todos os anos. Viajo a São Luís, onde vive minha mãe e irmãos. Porém, na retaguarda de todos os cuidados para que tudo caminhe bem, o trabalho colaborativo do meu grupo não foi interrompido nenhum dia, o que me permitiu esta pequena ausência. Assim funcionam as coisas quando somos um coletivo.

No quinto dia da minha viagem peguei o carro alugado e saí de São Luís em direção à Parnaíba, charmosa cidade do norte do Piauí, localizada em pleno delta do rio Parnaíba, que separa aquele Estado do Estado do Maranhão. Este rio gigante nasce lá longe, ao sul, entre os Estados do Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia. E desagua de forma imponente, poderosamente criando inúmeros canais e diversos braços de rios menores que correm para os braços do mar… Dizem que este santuário aquático-terrestre é, em tamanho, o terceiro maior do planeta. Ele recorta diversas pequenas e grandes ilhas, que abrigam uma rica biodiversidade, com manguezais cujas árvores atingem até dez metros de altura.

Depois de umas quatros horas de viagem, tendo passado por Barreirinhas, em plena região dos Lençóis maranhenses, impossível continuar dirigindo sem parar um pouco para admirar aqueles imensos panos brancos de areia que recobrem aquele trecho à nordeste do Maranhão. A vista se perde, buscando o horizonte à frente, atravessando as dunas de areia que se sucedem em ondas até o Oceano Atlântico. Mas uma imagem começa a entrar em foco em meio ao areal branco: grupos de torres de concreto com pás girando ao vento arrancam palavras do meu sobrinho adolescente, que viaja comigo: – que lindo! Concordo com ele enquanto penso que é tão bom ver a humanidade buscando formas alternativas de energia, energia “limpa”… Daí para a frente, esses tipos de moinhos de vento ressurgem na paisagem, como os lençóis de areia, nos trazendo encanto.

Nove horas depois de iniciada a viagem, chegamos a Parnaíba, na casa de um jovem casal, simpático e afetuoso. Nossa aventura pelo Delta se iniciava e, enquanto viajamos em direção à Pedra do Sal (uma ponta de praia na primeira e grande ilha que visitamos), os dois iam nos explicando a realidade das torres de energia eólica. Que esses parques onde se encontram as turbinas se estendem por várias regiões dos Lençóis maranhenses e do Delta do Parnaíba, tendo sido implantados sem respeito à natureza e aos habitantes da região: lagoas são aterradas, moradores afastados de seus lugares, e os que continuam nas vizinhanças são obrigados a suportar o imenso barulho feito pelas pás gigantes sendo movidas pelo vento forte. E, o que é pior: diversos pequenos povoados, onde vivem pescadores e pequenos agricultores, ou não possuem energia elétrica ou não recebem energia advinda dessas gigantes torres… Que contradição! A captação de energia é realizada por essas turbinas, favorecidas pelos ventos constantes do lugar, mas a eletricidade gerada vai para muito longe dali: as torres de sustentação com seus gigantescos cabos carregam a energia produzida pelo vento para alimentar empresas  capitalistas…

O sol estava se pondo no horizonte e a gente estava sentado perto de umas pedras onde as ondas do mar batiam com toda a força do mundo! De vez em quando uma onda maior, e mais brava, estourava mais alto e jogava água em nossa direção… O mar parecia querer gritar que como as coisas estão indo, assim não permanecerão… As agressões do desenvolvimentismo a todo custo estão esgotando o planeta. Enchentes causadas pelas chuvas se espalham por todo o Brasil, criando tragédias familiares, enquanto ondas de imenso calor atingem o sul do Continente… Isso sem falar nos vírus mortais soltos pelo planeta inteiro…

Em nossa linha de visão do crepúsculo, uma torre de energia eólica se imiscuiu entre nós. Lembrei de Dom Quixote, o velho guerreiro de Miguel de Cervantes, que empunhou sua espada contra aquelas monstruosidades dos moinhos de vento que surgiram em seu caminho. Eu já tinha perdido o encanto com a visão daquelas imensas torres. Meu sobrinho e meus amigos também. Passamos a odiá-las, a querer erguer as nossas lanças também contra o desenfreado capitalismo, destruidor da vida. Fiquei com vontade de gritar, junto com o mar, contra aquelas pás gigantes, a mesma coisa que gritou Dom Quixote: “— Ainda que movais mais braços do que os do gigante Briareu, heis-de mo pagar!” 

Mas eram dias de férias e nossos amigos nos levaram até um cais, onde pegamos um barco em direção à Ilha das Canárias. Trinta minutos de barco e mais quarenta de quadriciclo, chegamos no povoado Torto,  pequena comunidade de pescadores. Fomos recebidos por seu Chico e dona Dica, em sua casa simples e confortável. Seu Chico nos levou em seu pequeno barco a motor para visitar dunas de areia à beira de um dos canais do Parnaíba. Depois, serpenteando pelas curvas do rio, passando por manguezais que abrigam desde caranguejos, até macacos e aves, chegamos numa pequena ilha-dormitório da ave Guará e suas penas vermelhas, que brilham ainda mais em contraste com o verde vivo do mangue: estas aves chegam aos bandos, pousando nas árvores onde passam a noite. Não nos aproximamos demais. Seu Chico desligou o motor do barco. Em silêncio, ficamos observando inúmeros pontinhos vermelhos se movimentando, se aconchegando sobre o verde das folhas. Seu Chico explicou, baixinho: – Elas voam em formação em V, aproveitando a aerodinâmica do grupo para alcançar longas distâncias. Ou uma atrás da outra, em fila. A que está na frente empresta sua energia às que estão atrás. Quando a líder se cansa, outra assume o seu lugar e a ave recupera suas energias se posicionando atrás da nova líder… 

Exemplo de vida colaborativa! Me emocionei ao ouvir o pescador, na beira do mangue, contemplando os Guarás, no Delta do Parnaíba. Lembrei do meu grupo e que escolhemos viajar como esses pássaros, em cooperação uns com os outros e com o meio-ambiente. As lições a que nos dispusemos reaprender, nestes novos e difíceis tempos, já nos foram dadas pela Natureza, nestes seis milhões de anos em que existimos como espécie: a Vida acontece em colaboração.

Engendrando o sonho

16/12/2021

A primeira das duas vezes em que li “Os sertões” de Euclides da Cunha, tive que vencer uma primeira grande dificuldade: passar pela primeira das três partes que compõem o livro, A Terra. O autor parece testar o leitor, numa linguagem tão áspera quanto culta: é preciso atravessar as cadeias de montanhas da região sudeste, contemplar o eterno conflito entre o mar e a terra ao longo do litoral brasileiro, atravessar sertões e caatingas, para poder ter acesso ao sonho de um homem, Antonio Conselheiro, e sua Canudos. Aquele sonho que habitava o coração de Antonio Vicente, o Conselheiro – criar uma comunidade alternativa ao sistema – permanece como paradigma.

Lembrei deste livro fundamental quando me juntei aos buscadores da terra, deste meu grupo de amigos. Porque a realização do grande sonho coletivo – aí incluídos todos os sonhos individuais – envolve um chão. A primeira vez que fui com parte deles, fomos para São Luiz do Paraitinga ver uma propriedade que ficava mais próxima do distrito de Lagoinha, pequena cidade do Vale do Paraíba. O sol estava a pino, a natureza exuberantemente verde, após as primeiras chuvas. O olhar que percorre as montanhas em 360 graus se enche de encanto, porque há uma verdadeira ondulação harmônica de montes, morros, subidas, descidas. 

Mas “olhar” uma terra é muito diferente de ver um apartamento ou uma casa na cidade. É necessário andar sobre ela, calçar bem os pés, proteger pernas e braços, porque há plantinhas que machucam a pele e diversos pequenos animais que podem picar. Ainda é preciso vencer as subidas e descidas, observar veios d’água, possíveis áreas cultiváveis ou construíveis, percorrer trilhas, passar por “bambuzeiros”, como dizem os habitantes desta parte do interior de São Paulo. Tudo isso com o sol ardendo sobre as cabeças e a respiração resfolegante, coração acelerado… E de repente “ver” aquele pedaço de terra ocupado por nossas casas, com flores nas janelas, com floresta, hortas, viveiros, ateliês, galinhas, oficinas, ovelhas e muito afeto.

O caminho até chegar ao sonho também é áspero. Há estradas de terra a serem percorridas, com buracos, pedras, cascalhos, curvas, subidas. Os automóveis que usamos nas cidades sofrem nesses trechos, não foram feitos para isso. Mas há que esgotá-los, tirar deles seu máximo de potência. Essas máquinas não foram feitas para nos dar maiores pernas? Então! Mas o preço da gasolina está caro, então nos apertamos em um ou dois, adicionando mais massa a ser transportada em direção ao sonho…

Na segunda vez que fomos, passamos por várias propriedades na montanhosa região de Cunha. Até encontrarmos uma área mais plana, mais habitável, mais próxima da cidade próxima, portanto mais viável em diversos aspectos. Cunha é uma cidade que atrai muitos turistas em busca do sossego – ou da aventura – nas montanhas. Lá também residem diversos artistas que trabalham com cerâmica. E há uma rica vida cultural do povo, com a Festa do Divino, as tradições da Semana Santa e Corpus Christi, cavalaria de São Benedito, Festa do Pinhão, Festival de Música no inverno, além da festa da Padroeira, Nossa Senhora da Conceição…

… Oxum, Ora Yê-iê, Ô! Nossa senhora, rainha das águas doces, dos rios e cachoeiras que banham as montanhas de Cunha. Montanhas de Baba Okê, onde Oxalá também faz sua morada e recebe suas oferendas. E onde também habita Xangô em suas pedras – Kao kabecilê! – o rei das tempestades, dos raios e dos trovões, livrai-nos do mal! Mas também tem, pairando nos ares, o deus Tupã, que criou os céus e as estrelas, as águas e a terra. É Nhanderuvuçu  que nos fala no som das tempestades, cujas águas escorrem nos riachos protegidos por Iara, a Mãe-Dágua, entrando e saindo das matas onde mora o Caipora. Tupã nos deu o poder de criar ou destruir!

A esta altura de nossas vidas, escolhemos criar. Parar de ser parte da destruição geral!

Contratamos um casal, arquiteta e engenheiro ambiental, para nos apresentar um estudo de viabilidade de ocupação do terreno que nos agradou. A propriedade possui em torno de oito hectares (ou três alqueires e meio), contendo uma Área de Preservação Permanente (APP) que ocupa quase um terço do terreno. Há também uma área de cobertura florestal, uma pequena mata preservada, onde vivem muitas espécies de bichinhos da terra e do ar. Há um pequeno córrego que talvez um dia tenha sido um rio, do qual pretendemos cuidar que volte à sua origem. Caso seja esta a terra escolhida.

Em torno de 50% da área total, há espaço e possibilidade de ocupação, segundo atestam as fotografias minuciosas do drone do engenheiro. Essa parte que pode ser ocupada encontra-se, no entanto, dividida em três trechos. Há estrada de servidão, nome engraçado que significa que outras pessoas podem fazer uso dela, passando por esta terra. Ainda no relatório dos dois profissionais, consta que a gleba possui rede de distribuição de energia elétrica e vias de acesso bem mantidas. E o relatório conclui, quase como um poema para nós:

“Ainda, sob o aspecto ambiental, contém adequada proporção de vegetação nativa já consolidada, aclives e declives suaves frente ao contexto geomorfológico cunhense, e é abastecida por curso d’água perene.”

Mas a história ainda não acabou, ou apenas começou. Outra área surgiu como possibilidade na mesma região. Se apareceu, há que se olhar de perto. Há que se comparar… Há que se resolver… Estamos, no momento, como se estivéssemos arando a terra, preparando-a para nos acolher. E por isso, ainda é preciso caminhar mais sobre ela, e suar mais e sonhar mais, para poder chegar à nossa Canudos e ver de perto o sonho arquetípico de uma terra sem males…