terça-feira, 9 de julho de 2024

Quando a lua "incandeia"

25/07/2022


O “master plan” finalmente está pronto. Isso significa que o arquiteto escolhido colocou no papel o conjunto das decisões tomadas por nosso grupo, sobre como iremos ocupar nosso terreno em Cunha. O resultado é um desenho, apresentado em “planta baixa”, onde ele indica as curvas de nível do terreno, o arruamento e a disposição de doze cotas que serão distribuídas entre os associados da Ecomunidade Bem Viver. Além disso, indica onde passará a rede de distribuição de energia elétrica, a rede sanitária e a distribuição da água.

Necessário explicar alguns pontos importantes sobre o que um agrupamento de pessoas necessita para habitar uma localidade. O que fazer com ítens básicos: luz, água, esgoto, lixo. Num condomínio comum, segue-se o padrão conhecido, pagando-se por luz e água, captação coletiva de dejetos lançados em qualquer lugar, inclusive nos rios e no mar. Quando resolvemos nos unir nesta associação, decidimos também nos unir à natureza e cuidar dela, como cuidamos de nós e dos nossos animais. A água necessária temos fartamente, provenientes de duas nascentes que iremos cuidar como preciosidades. A energia elétrica será distribuída de forma padrão, inicialmente, mas projetando um futuro em que esta energia virá de placas captadoras da energia do sol. Os dejetos que produzimos passarão por sistemas de biodigestão, que se transformam em adubo rico para plantas que necessitam de ambiente úmido, como as bananeiras. Quanto ao lixo, serão separados: o lixo reciclável que será levado para locais onde seja separado e reutilizado, e o lixo orgânico que irá alimentar nossas composteiras.

Esses temas já foram fruto de conversas do grupo como um todo e das recentes conversas na casinha alugada do nosso vizinho. Conversas de cozinha são sempre inspiradas: enquanto alguém cozinha e todos bebem uma cervejinha ou uma cachaça, os temas vão surgindo. Luciana, antropóloga que viveu anos de experiência nas matas do Pará perto de tribos indígenas, sempre traz boas histórias, como a de alguns que, nas noites mais frescas, dormem literalmente ao lado do fogo das fogueiras e acordam cobertos pelo pó gris das cinzas. Ou se fala dos banheiros secos, comuns na região nordeste e norte do país. São espécies de “toilettes” que não usam vasos sanitários, as pessoas ficam de cócoras mesmo, posição milenarmente mais natural para defecar. Mas já somos “letrados”, viemos da cidade, então os confortos que aprendemos não precisam ser descartados. 

O passo seguinte ao desenho do “master plan” é contratar um profissional especialista em traduzir o desenho feito pelo arquiteto e dar a ele concretude: medir espaços, fincar pequenas estacas de bambu demarcando terrenos e ruas. Na sequência, outro profissional com sua máquina de terraplanagem irá rasgar as ruas, transformando o desenho do arquiteto em um traçado tridimensional, real. E seguindo nesse planejamento, um pedreiro já foi contratado para construir um barracão de ferramentas, que também servirá de oficina. Esta primeira construção é necessária para que possamos acionar o quarto profissional, o que irá puxar o fio da rede elétrica municipal que passa ao largo, trazendo luz para todos nós…

Enquanto a conversa seguia na cozinha onde Luciana preparava uma sopa de lentilhas para nós, incluindo Gabi, Vitor, Kawni e Alê, saí para fora para ver a que alturas subia a lua cheia. Ela brilhava gigante, tão brilhante que despertou-me um sentimento de reverência. Era um pedaço de luz amarela no céu, um amarelo espalhafatoso, quase escandaloso que tinha subido acima das colinas e ofuscava a vista, revelava a natureza em volta. 

Que diferença das noites escuras das luas novas e minguantes, onde o “lá-fora” da casinha é um todo completo de escuridão. Desta vez, há sombras por todo lado: de árvores, de cercas, de folhas. Até meu corpo projeta uma sombra angulada, dobrando o meu tamanho. Dá para imaginar a pequenina sombra projetada por alguma ave noturna, meio incandiada por tanta luz. Incandiar é uma palavra que aprendi ainda criança em Caruaru: significa ficar com a vista ofuscada diante de qualquer luz, inclusive a do candeeiro. “Incandeia, incandeia, incandeia, incandeia meu candiá”, canta Zeca Pagodinho e canta o povo nas rodas de samba por aí… Me incandeia, Lua! Luz-me, Lua!

Pensei nos pequenos pés de abacate que plantei recentemente e que lutam para se adaptar. Que pequenas sombras estarão projetando agora? Um frio na barriga me fez retornar à casa, porque acabei de ver em pensamento o que será brevemente minha vida que até há pouquíssimo tempo não passava de um sonhar.

Compramos uma roçadeira no dia seguinte. Queremos aprender a roçar, é necessário manter sob controle a braquiária e o mato acostumado a crescer livre e sem controle. Já cobriram os pés de mandioca, antes quase sufocaram as mangueiras e as frutas cítricas. 

Andar pelo terreno agora é diferente. Já visualizamos jardins, bancos, flores, casas, nossas casas. Ali será o pomar, onde vamos cuidar coletivamente de legumes e folhas que nos alimentarão. Acolá, aquele lago ainda feio, informe, feito por mãos um pouco descuidadas, será nosso reservatório de água e em volta dele plantaremos flores, colocaremos pilhas organizadas de pedras para enfeitar o entorno. A nossa mata crescerá ainda mais bela, porque lhe adicionaremos mais árvores. Os passarinhos se multiplicarão em volta das miríades de flores que teremos e as abelhas captarão o néctar produzido pelas glândulas vegetais, levando-o para as colmeias que teremos.

Isto é o sonho.

O pesadelo é o Brasil de hoje.

Soubemos que no Paraná um aniversariante petista foi assassinado a tiros por um militante bolsonarista. O criminoso que preside o Brasil se anima em ameaças cada vez mais explícitas contra a nossa democracia fragilizada. E deixa de mãos amarradas os partidos, a oposição, os movimentos sociais, o povo, a todos nós. Um sequestro de um país inteiro! Sob essa onda proto-fascista, notícias horríveis vêm de todos os lados: menina de 11 anos estuprada e obrigada a dar à luz; um homem negro levado para trás de uma viatura e assassinado a tiros pela polícia; mais negros mortos violentamente em mais lugares; mais mulheres violentadas e assassinadas por seus parceiros em mais novos crimes; mais assaltos, mais roubos de celulares, mais sequestros, mais medo, mais doenças mentais, mais gente passando fome! E nas florestas, árvores sendo derrubadas, minérios sendo roubados, indígenas sendo assassinados…

Ontem saí para dar uma volta na avenida Paulista. O parágrafo acima caiu-me em cheio, pesado. Um homem empacotado com uma bandeira de Bolsonaro caminhava entre os transeuntes, talvez sem saber que carregava sobre os ombros a violência e incorporava a própria Morte… 

“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é  justiça.” Apesar desta necropolítica, seguiremos sonhando. E cantando. “Incandeia, incandeia, incandeia, incandeia meu candiá!”…

Dissonâncias na vida fora dos padrões

20/07/2022

Fim de tarde de segunda-feira pegamos a estrada que segue além do terreno da Ecomunidade Bem Viver. Passamos por outros sítios, o do vizinho de cerca e os de logo depois, em busca de um pedreiro, pois vamos construir uma espécie de barracão para guardar ferramentas e servir de oficina. Os três cães vieram nos receber bravos: quem são essas duas mulheres e esse rapaz estranhos a eles? Mas são cachorros de roça, latem mas não mordem. Principalmente se a dona da casa desce para ver quem chegou, seguida por um filhote de gato, esse, sim, amistoso e brincalhão.

O pedreiro ainda não tinha voltado do trabalho; está construindo um fogão à lenha em algum sítio nas redondezas. Mas deve estar pra chegar, disse a esposa. Resolvemos tomar a estrada de volta e quem sabe cruzar com ele, em seu fusca vermelho. Nosso carro tinha ficado numa bifurcação da estrada, logo depois da porteira principal. Como a noite vinha chegando, resolvemos esperar um pouco, sentados dentro do carro. 

Seja pela escuridão que começava a apagar as cores do mato, seja por algum pensamento aleatório, começamos a lembrar tempos da ditadura militar no Brasil e das pessoas que resistiram, que foram presas, torturadas, assassinadas. Nossos olhares se estenderam para a América Latina, afinal estávamos no ponto exato da bifurcação da estrada, ponto de convergência: a figura de Simón Bolívar surgiu gigante à nossa frente, herói latino-americano, mas logo lhe pusemos ao lado dos nossos heróis, porque somos um país que tem história de resistência desde que foi invadido por portugueses lá pelos mil e quinhentos… E demos vivas a Zumbi, a Antonio Conselheiro, aos resistentes de todos as cores brasileiras.

Mas a noite caiu e o pedreiro não veio, decidimos voltar para casa. Passamos outra vez ao lado de nossa terra onde Júlio havia trabalhado o dia inteiro, aspergindo seu inseticida natural feito de folhas de várias espécies, fermentadas com água e açúcar mascavo. Essa alquimia natural tem sido fruto de estudo e pesquisa dele nos últimos tempos, trazendo para nós a sabedoria de antigos agricultores de longínquos países asiáticos. Nossos pés de limão e frutas cítricas estão crescendo bem, florindo e produzindo os primeiros frutos, e isso atrai pulgões e outros insetos oportunistas. Júlio é sábio, Júlio acorda e dorme cedo, se interessa por grandes questões do mundo, incluindo a de criar novas formas de vida que respeitem o meio-ambiente. E se preocupa em viver em um mundo mais justo, onde a distribuição de riqueza seja ampla e todos possam viver em paz. Júlio tem vinte e cinco anos…

De volta à casa, em torno da mesa, olhamos mais uma vez para o mapa da nossa terra. O arquiteto encarregado de fazer o desenho da distribuição dos lotes no terreno de três alqueires e meio, apresentou uma proposta. Como nos reunimos semanalmente de forma virtual, o projeto foi cuidadosamente verificado por todos nós e, após poucas mas importantes alterações, o plano de ocupação está aprovado. Cabe agora a ele cuidar de apresentar a versão final, com todas as medidas feitas para que a terra possa ser redesenhada com ruas, lotes, energia elétrica, instalação hidráulica, sanitária, etc.

Com isso, o momento de tomar posse, de fato, do nosso pedaço de terra se aproxima e as coisas se movimentam. Agora é pra valer, as horas estão chegando… O encontro com o lugar do sonho vai se tornando cada vez mais real e o passo em direção à mudança de vida foi iniciado. Entra outra fase: a do planejamento das construções coletivas, a abertura de ruas, a instalação da rede elétrica, a captação de água, a cerca-viva que precisa ser plantada, as buscas por bons pedreiros e as apresentações aos vizinhos, aumentando nossa rede de contatos.

Em breve cada um tomará posse do lote que lhe coube e irá planejar as construções das moradias. Entre as cotas, onze mangueiras crescem, exuberantes, felizes com a luz que abrimos e a limpeza de mato que fizemos em torno delas. Algumas já passam do nosso tamanho. Lá embaixo, perto da área mais úmida, crescem nossos ipês e outras mudas de árvores. Três abacateiros ainda se esforçam por se adaptar ao bioma. Dar tempo ao tempo… “Aguardaremos, brincaremos no regato, até que nos tragam frutos, teu amor, teu coração…”

Do lado direito, na parte mais baixa do terreno, uma árvore se destaca. Não sabemos ainda de que espécie ela é, que nome tem. É alta, tronco grosso, cascudo. Sua sombra é bem ampla e já sonhamos em limpá-la embaixo, montar um banco de bambu, uma mesinha e, ao lado dela, enterrar fundo um mourão para segurar uma rede… Com a permissão de Oxóssi, Òké Arô! Agô! Levar livros para ler embaixo dela, papeis para escrever e desenhar sob suas folhas, fazer dessa árvore um lugar de encontro e reflexão, onde o pensamento possa viajar para outros mundos, voar como os pássaros de Cunha, pois o “pensamento parece uma coisa à toa” mas os mundos são infinitos quando a gente voa. Ou sonha. Sonhei que uma senhora estava comigo lá e me dizia que esta árvore é a “cereja do bolo”. Essa árvore é a existência de um Brasil mais antigo e mais bonito do que a avenida Faria Lima… Viva o Brasil maior do que a Faria Lima, esse lugar da estreiteza, do egocentrismo, do lucro, das vaidades… 

Voltar para São Paulo, ato necessário, para onde a vereda da minha vida ainda aponta. Cidade boa, cidade má, São Paulo é tudo, um mundo. Um dia desses eu esperava o farol abrir para pedestres para atravessar a avenida Liberdade. Um rapaz se aproximou de mim. Não, não era um rapaz. Era uma moça. Não, não era uma moça. Era um homem Trans: corpo de homem, cabelos, adereços e roupas femininas, enfeitando sua longínqua e improvável masculinidade. Parou bem na minha frente. Antes que eu pensasse qualquer coisa, me tascou a pergunta: – moça, a senhora tem preconceito de mim? Olhamo-nos nos olhos, ele aguardando minha resposta que veio tão imediata quanto sua pergunta: não! Jamais! Tive de me segurar para não dar um abraço naquela pessoa, rejeitada por este mundo quadrado que resolveu, em algum momento do passado, estreitar as possibilidades de ser em apenas duas vias, macho e fêmea. Mendigue Trans, havia sido xingade um minuto antes de me encontrar, por uma pessoa a quem foi pedir uns trocados.

Passei dias refletindo sobre tudo isso. Os incômodos que sentimos no caminhar da vida quando esbarramos em momentos dissonantes, é bom que nos movam para debaixo das árvores, estas velhas sábias que estão milênios a nos ensinar que não existe indivíduo, que a vida é em rede…