terça-feira, 9 de julho de 2024

Entre a metrópole e os vagalumes

24/11/2022

A chuva desaba sobre o ranchinho, onde a Ecomunidade começa a existir. De manhã, todos chegam para celebrar juntos, caiando as paredes; um ano de construção! Na cidade, meu coração bate como o desafio dos sapos: Estou? Não estou?

Os preparativos para o começo da construção da minha casa, no terreno da Ecomunidade Bem Viver, estão iniciados. Agora sonho com tijolos, me vejo dentro de paredes erguidas em prazo mais curto do que jamais pude prever, passeio e danço em minha sala redonda.

De novo peguei a estrada, domingo de manhã. Há poucos dias o Presidente Lula foi eleito e a extrema-direita ainda estrebucha. Vi suas marcas em dois pontos do asfalto da rodovia Presidente Dutra, pontos onde queimaram pneus, bloquearam o trânsito, estes fascistas. Manchas ameaçadoras, elas trazem de volta esses seres capazes de gritar as piores barbaridades, de pregar as piores mentiras, de acreditar nos maiores absurdos, cegos de fanatismo. Mas … “a História é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue”… Melhor me ligar na voz de Bituca.  

Levo comigo dentro do carro, além de um fogão usado e outros objetos que serão úteis nesta fase inicial da comunidade, a planta baixa da casa e imagens em 3D do projeto. O pensamento volta: que alívio termos derrotado a extrema-direita nestas eleições presidenciais. Novamente podemos sonhar! Todos os nossos projetos, pessoais e coletivos, estão autorizados a serem sonhados e executados. O contrário disso seria viver num país impossível, vendo serem erguidos valores carcomidos pelo tempo e pela história; seria continuar a assistir ao desmonte da cultura, da educação; da derrubada de mais hectares das nossas florestas; da perseguição e da violência contra os indígenas, contra os defensores do meio-ambiente e contra nosso povo preto. As hienas fascistas ainda permanecerão grunhindo por um tempo. Uma hora qualquer se calarão.

Cheguei em Cunha, fui direto pro Capinzal, onde fica a terra. O dia estava nublado, sem sol, mas iluminado. Nuvens cinzentas se avistavam na Mantiqueira, ao longe, e na Bocaina. A previsão é de chover durante a semana toda, mas ainda não começou. Passei na casinha alugada de seu Chico, peguei a chave do rancho que construímos, para deixar lá o fogão. Estava sozinha para carregá-lo mas encostei o carro o mais próximo possível e lembrei da velha máxima de Arquimedes que sempre uso como argumento quando alguém se espanta com a minha força: “dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo”. Mundos movidos, fogão lá dentro, volto para a casinha.

Passei a primeira noite da vida sozinha numa casa de roça. Sensação nova, instigante. A noite veio sem lua no céu, mas ela está lá, cheia, escondida atrás de densas nuvens. Amanhã o Sol a eclipsará totalmente. E como eclipses e luas movem coisas cá embaixo, as nuvens desabaram. Um barulho de vento e chuva e raios e trovões caiu sobre a pequena casa de tijolos de olaria. Mas durou pouco, depois veio o silêncio. Eu já me deitara sob mil cobertas por causa do frio de 10 graus de novembro (!) e ouvia o silêncio… Dentro dele, identifiquei um som longínquo de um avião passando a quilômetros de altura, em sua rota aérea. Depois outro, depois outro… Até que veio a cantoria dos sapos: foi, não foi! Fui, não eu! Foi sim, fui não…

Amanhecido, o dia trouxe Lumena e Guaíra. Douglas pegou sua roçadeira e começou a cortar o mato da minha cota de terra que já ia alto, por causa das primeiras chuvas. Enquanto isso, também limpamos os pés de milho, fava, feijão e abóbora da nossa primeira horta coletiva. Fomos, munidas com o facão, cortar alguns pés de Lírio-do-Brejo, abrindo uma trilha para encontrar o pequeno riacho que margeia nossa mata. Mas as águas tinham subido e o terreno estava encharcado. Resolvemos limpar o mato em volta do nosso lago e plantar mais sementes na horta. Aproveitei, peguei a enxada e fui transplantar três mudas de abacate que tinham sido colocadas bem no local onde ficará minha futura casa. Plantei-as em lugares mais seguros, assim como tinha feito com minha muda da árvore Pau-Ferro, que agora define um dos cinco cantos da minha cota.

Sentei no meio do chão roçado, contemplando meu lugar, tomando posse. A Ecomunidade Bem Viver completou, em 7 de novembro, o primeiro ano de existência. Resolvemos comemorar todos juntos no próximo fim de semana. Quanta coisa aconteceu em tão pouco tempo! Em um ano apenas, compramos o terreno do Capinzal, registramos os documentos todos, roçamos toda a terra, o trator abriu as ruas entre as futuras casas, construímos uma primeira casinha, captamos as primeiras águas da fonte que nos abastece, solicitamos a instalação de eletricidade, demarcamos doze cotas, e duas casas estão prestes a serem erguidas. Mais outras virão, em breve.

Era pra chover todos os dias, mas choveu pouco. Mesmo assim, os dias estavam nublados e frios, as noites escuras. A luz amarela que ilumina a casinha aquece pouco o ambiente. Mais aquecem nossas conversas, lembrando de tempos idos de nossas vidas, de tempos futuros que virão e nos encontrarão habitando aquele lugar emoldurado pelas montanhas e pela Mata Atlântica. Lumena acendeu seu cigarro de palha e saiu para fora. Segui-a depois, em silêncio, ouvindo os sapos: – foi, não foi! Foi, não eu! Foi sim, foi não… E assim seguia a arenga que se repete todas as noites. 

De repente, minha amiga aponta para um brilho que não estava só na ponta de seu cigarro. Olhei na mesma direção: eram milhares de pequenos brilhos que se acendiam e apagavam, ritmadamente, acendendo a noite com seu pequeno lume, mas que se multiplicou e rapidamente nos vimos rodeadas destes insetinhos bioluminescentes, os vagalumes. Parecia que as estrelas desceram à terra para brincar com nossa imaginação e nos fazer novamente voltar a ser crianças, duas meninas brincando de correr atrás das luzes enquanto repetiam a cantoria dos sapos, verdadeiras disputas que nos arrancavam gargalhadas. Foi não, foi sim…

O fim de semana trouxe todos os amigos do grupo. Nos vimos, nos abraçamos, sorrimos juntos, não paramos de falar, contentes de nos encontrar fisicamente depois de tantos meses. Semanalmente nos reunimos virtualmente, colocamos o papo em dia, resolvemos coisas, ações a serem tomadas, perrengues a serem enfrentados, decisões. E vamos nos conhecendo mais e mais, constatando que, como um coletivo, temos muita capacidade de criação e de empreendimento. Que grupo de pessoas fortes, aguerridas, dispostas ao imenso desafio de viver valores outros que não os somente impostos pelo sistema sufocante do capitalismo. Comemoramos este primeiro ano com festa e trabalho. Um deles, fazer à mão, com terra e cal, o reboco da primeira casinha que construímos, enfeitando-o com recortes de vidro colorido doados pela artista da modelagem com vidro, Sandra Tami, uma de nós. Tudo orientado por nossa presidenta, Luciana.

De novo estou em São Paulo, de novo me preparando para voltar a Cunha. Hoje, lá fora, o tempo é inamistoso, as ruas estão barulhentas como sempre. Chove forte e meu pensamento voa em direção ao tempo em que eu era pequena, desobediente e rabugenta, sempre pensando em fugir. Estou fugindo deste lugar, baby… Desta vida na metrópole que cresce em verticais e que há algum tempo tem me feito sentir-me de novo deslocada, outsider outra vez. Daqui do meu sofá, nesta cidade, canto como os sapos: – Estou, não estou! Pertenço, não pertenço! Existir… a que será que se destina?

O fim da ladeira?

 27/10/2022

Os dias se iluminam mais cedo na medida em que a primavera avança em direção ao verão no hemisfério sul. Época das primeiras chuvas. Acordei na casinha alugada na roça com os primeiros lampejos de luz, mas eram fracos. Choveu a noite inteira e ainda estava chovendo forte. Abri a porta da cozinha e olhei para fora: Zina, a cachorra, que sempre dorme ao relento, desta vez tinha se rendido e se enroscado ao lado do tanque na pequena área coberta. A natureza lá fora estava parcialmente oculta pelas gotas de chuva que caíam em cascata, deixando um vapor que se espalhava pelos morros. Os pássaros, sempre barulhentos e namoradores na primavera, se ocultavam em seus galhos. Mas eu precisava voltar para São Paulo, que fazer?

Os cinco quilômetros de estrada de terra que nos separa do asfalto são íngremes, irregulares. Numa parte há o cascalho, que até ajuda a passar com a terra molhada. Mas há trechos em que a terra havia virado um pó fino depois de meses sem chover. Há quatro ou cinco subidas e descidas que desafiam nossos carros feitos para o asfalto. A direção do carro fica quase incontrolável, ele desliza, entregue à lama, transversalmente à estrada. Na subida, isso complica pois os pneus patinam. Na descida, há que se impor ao carro o peso da gravidade, para que ele não saia desembestado ladeira abaixo. Perigo. Mas há qualquer coisa dentro de mim que sente uma força danada em situações difíceis… Deve ser porque sou brasileira.

Certa feita, há muito tempo atrás, eu estava dirigindo um Fiat 147 por uma estrada de terra no interior do Maranhão. Ia com dois rapazes, o carro cheio de panfletos e um megafone. Nos dirigíamos a um povoado distante da cidade mais próxima, Pedreiras, para apresentar aos camponeses do lugar o programa do primeiro candidato comunista depois do fim da ditadura militar. No Maranhão chove muito, quase o ano todo. A estrada era sofrível do começo ao fim, mas o carrinho era forte, fácil de manobrar nos buracos. Até que chegamos a um verdadeiro charco, que bloqueava a passagem. A única possibilidade era atravessar por uma rampa inclinada a uns 45 graus. Que fazer? Olhei pros meninos: vamos? Eram dois rapazes fortes, parceiros, sorridentes. Fomos. Eu na direção, guiando o carro através da rampa até quase virar, mas não virou, porque os dois seguravam o pequeno fiat do lado oposto ao meu. E chegamos no povoado rindo e nos sentindo os mais valentes.

Olhei para o aplicativo do celular, a previsão era de chuva o dia todo. Resolvi esperar para ver se a chuva diminuía. Mas eu queria viver a experiência de dirigir na chuva, nesta estrada de Cunha. Queria ver o tamanho do perigo. Lembrei daqueles dois amigos, por onde andarão? Que farão? Têm filhos? Estarão vivos? Nunca mais soube nada deles, depois que vim pra São Paulo em 1987. Resolvi sair porque a chuva não diminuía por nada! Me despedi de Lumena, que me desejou boa sorte, fui. Muito devagar, sentindo o carro, sentindo o chão, cada pedra, cada poça d’água, cada lamaçal. O pior eram as descidas, mais inclinadas quando se vai em direção a Cunha, pois no sentido contrário são subidas íngremes demais. Passei por três delas, controlando o carro. Restava ainda uma, a maior, que desabava logo depois de uma área plana. Parei o carro antes de descer, respirei fundo, clamei por Exú, o Orixá que abre todos os caminhos e protege dos perigos. Com a primeira marcha engatada, as quatro rodas grudadas na terra enlameada, ia deixando a gravidade agir sobre o carro para baixo, usando o freio motor, a primeira marcha, o freio, o freio, o freio… E o carro foi descendo colado à terra, controlado por meu corpo, mãos, pés, cabeça, emoção, medo, decisão, desafio… Adrenalina estimulada, meu corpo é o do animal acuado que, ou foge ou luta, lutei. E chegamos sãos e salvos, eu e meu carro, na parte final e plana da estrada. Parei, respirei profundamente, minhas mãos tremiam, mas eu estava feliz. 

Na semana seguinte reuniões com Eduardo, o dono da olaria que fabrica os tijolos ecológicos da minha futura casa. Victor, o arquiteto, trabalhando na fase final do projeto. O pedreiro com quem já iniciei contatos, se colocando à disposição para daqui a um mês. Frio na barriga! Me sinto pulando direto do meu sonho na realidade! Em breve meus caminhos me levarão para o grande desafio de erguer a minha casa com os poucos recursos de que disponho. Mas em momento algum duvido de que dará certo! Victor, Eduardo, Lumena, Patrícia, Flávio, Luciana, Johnny, Jéssica e Leo, Sandra, Jane, Gabi, Antonio, Jeosafá, minha mãe, meus irmãos, meus alunos, meus amigos, todos estão ao meu lado incentivando, vai dar certo, vai dar certo! Não duvidem, não duvido.

Parei para tomar um ar. E voltei ao meu país que, desde 2018, vem descendo ladeira abaixo, desmoronando e forçando a todos nós um jeito de viver que “no equilíbrio da lata, não é brincadeira”. Estamos todos tensos. Noites mal dormidas, pesadelos, um acordar de manhã no susto, um medo tão grande de que no próximo dia 30 a gente patine nesta estrada mal-ajambrada, que o país desembeste em direção ao abismo, ao perigo, ao fascismo. Nós que vivemos no período da ditadura militar tememos ainda mais: por nossa liberdade, por nosso sossego, por nossas vidas. O país hoje é um grande caldeirão de experimentos malignos: reativação de valores ultrapassados, violência alastrada, discriminações e preconceitos aflorados, manipulações de toda ordem travestidas de religiosidade alcançando a cabeça de milhões de brasileiros simples, pessoas humildes, exploradas, maltratadas por séculos de injustiças sociais que são guiadas por falsos guias, estranhos capitães que arrastam multidões atrás de si em direção a um impossível paraíso celeste, já que o terrestre eles mesmos ajudaram a tornar insuportável. Por trás disso tudo, movimentando os pauzinhos, a mesma velha elite brasileira: egoísta, inculta, orgulhosa, sentada sobre uma riqueza acumulada em séculos de exploração do povo pobre. Elite desgraçada, elite que governa um país que permitiu 350 anos de escravidão do povo preto. Elite miserável, que é capaz de elogiar a distribuição de renda dos países nórdicos mas incapaz de olhar para seus empregados como seus iguais.

Não, não é possível tergiversar! Suspendam-se todos os sonhos! 

Fui ao mercadinho do MST ontem de manhã. No caminho, levas de miseráveis deitados às centenas, com seus trapos, nas calçadas. Quase todos pretos. Um e outro atravessando entre os carros, tontos de tanta desgraça que caiu sobre suas vidas. Avistei a loja, entrei. Um ar fresco me alcançou logo na entrada, onde uma banca portava adesivos da campanha de Lula, bandeiras dos movimentos sociais, bonés com a logomarca do Movimento Sem Terra. Há esperança! Desde 1500 vivemos de esperança, e nosso povo jamais deixou de resistir. Duas mulheres arrumavam coisas nas prateleiras, arroz orgânico, feijão, frutas e verduras sem agrotóxicos. Perguntei onde encontrava o milho, me apontaram a outra prateleira e deram passos ao meu lado na mesma direção, me ajudando a encontrar, solidárias.

O fim desta trágica ladeira parece estar acabando no domingo. Nós três fizemos o sinal, quando me despedi: o L que nos salvará de despencar no abismo.