segunda-feira, 2 de maio de 2011

O olhar necessário para a Cultura

Duas instituições oficiais brasileiras – o IBGE e o IPEA –, em parceria com o Ministério da Cultura, publicaram resultados de pesquisas sobre o consumo cultural do povo brasileiro, em 2007. O resultado mostrou como a injusta distribuição de renda no Brasil deixa a imensa maioria do povo sem poder ir ao cinema, ao teatro, ao museu, e sem acesso a livros. Mostra também como a Educação está intrinsecamente vinculada ao gosto e à fruição de cultura, pois quanto maior o grau de escolaridade, mais consumo cultural.

No final de semana de 16 e 17 de abril em São Paulo, durante 24 horas, mais de 4 milhões (!) de pessoas foram para o centro da cidade para se alimentar de arte, na Virada Cultural. Espalhados em diversos palcos, artistas de categorias as mais diversas tiveram como público verdadeiras multidões. Dois exemplos me tocaram especialmente: primeiro, no Pátio do Colégio – lugar histórico do centro de São Paulo – acontecia, no sábado à noite, dia 16, a apresentação do grupo de Ópera "Pagliacci" que, junto à Orquestra Sinfônica Municipal e ao Coral Lírico, encenou uma peça musical. Não sei dizer quantas pessoas cabem no Pátio do Colégio, mas estava absolutamente tomado de gente, em silêncio impressionante, olhos no palco e no telão da tradução do italiano para o português! Gente de todo tipo, todos juntos ouvindo a orquestra e a voz de tenores e sopranos. Segundo exemplo: no encerramento da Virada Cultural, na Praça da República, Paulinho da Viola atraiu uma multidão, que cantava e dançava sem parar. Mesmo nos dois momentos em que o cantor executou duas músicas instrumentais, o silêncio aqui também era tocante, encerrado apenas ao final das músicas quando a multidão aplaudia, gritava e assobiava. E voltava a cantar, junto com ele, os clássicos do samba bom de Paulinho da Viola.

Este é apenas um dos inúmeros exemplos que podíamos dar sobre a importância crucial das artes e da cultura na vida do homem. Se incluirmos todas as festas populares, os eventos folclóricos, as atividades artísticas que acontecem pelo Brasil a fora, chegaremos, com certeza, a números altíssimos.

Pois a ideia de que Cultura é algo supérfluo é totalmente enganosa diante das prioridades e da alocação real de recursos das famílias brasileiras. Uma importante constatação fez o IPEA: as famílias brasileiras em seu conjunto dispensam mais recursos de seu orçamento para a fruição de produtos culturais do que o governo gasta com Cultura! As classes A e B consomem 3,5% de seu orçamento com cultura; a classe C, 3,1%; e as classes D e E (onde se incluem os “miseráveis”) 2,3%. 

No Brasil, em 2010, o orçamento da União para a área chegou em torno de 1%, alcançando um patamar alto, se comparado com governos anteriores, como os de FHC, Fernando Collor, etc. Mas muitíssimo abaixo da importância que tem o setor para o desenvolvimento de qualquer povo e país. É sempre bom lembrar que Gramsci, um marxista bastante empenhado em destacar o papel que a cultura exerce na vida em sociedade, disse certa vez que nenhuma grande transformação política pode ser feita sem uma grande transformação cultural. 

Mas se o Poder Público ainda não se convenceu da importância que deve ser dada à Cultura, a empresa privada sabe. Diz a pesquisa do IPEA que o “desenvolvimento cultural tem seguido a direção da crescente privatização dos espaços de produção, fruição e consumo, da ampliação dos espaços de mercado e da relevância crescente da cultura transmitida por meios eletrônicos.” Por isso também, o consumo de bens culturais mantém relações estreitas com as desigualdades sociais. Pois se a maioria do povo não é “dotado de capital econômico” isso “implica alta probabilidade de desapossamento do gosto e dos hábitos de consumo de certos bens da cultura, ou seja, implica uma grande possibilidade de desapossamento cultural”, diz o IPEA. Um outro dado importante do IBGE: de 2003 a 2005 as empresas da área cultural tiveram um crescimento 19,4% superior ao total de empresas de outros setores. Entre 2005 e 2006, em consequência, o número de trabalhadores do setor cresceu 5,4%, contra os 2,4% de trabalhadores de outras categorias.

O relatório do IBGE lembra que nas duas últimas décadas do século XX Cultura deixou de ser sinônimo de Belas Artes e luxo acessível a uma elite, para ser encarada como direito humano que pertence a todos. E acrescenta que “mais recentemente, a palavra “Cultura” como termo e como conceito, passou a ser incorporada às cartas constitucionais da maior parte dos países latino-americanos”.

Apesar de terem se passado quatro anos da divulgação dessas pesquisas, elas mantém sua atualidade, porque esses números lançam sobre o governo a responsabilidade imensa de tentar diminuir a desigualdade social, também na área da cultura. Dilma Roussef tem falado em erradicação da miséria; não podemos esquecer que acabar com a miséria econômica passa por também acabar com a miséria cultural, e passa por propiciar, à ampla maioria da população, o direito básico e fundamental da fruição de Cultura.

É muito preocupante, portanto, que neste ano de 2011 o governo vá pagar 230 bilhões de reais de juros a banqueiros, a tal dívida pública! Esse montante é quase 15 vezes maior do que o que deve ser destinado ao Bolsa-Família e quase seis vezes maior do que os 40,1 bilhões de reais destinados ao PAC. Para piorar a situação atual, no recente corte de 50 bilhões feitos pelo governo, nos gastos públicos, a Cultura é um dos setores duramente atingidos.

Essa situação só agrega mais injustiça social, pois os mais ricos podem continuar indo a shows, ao teatro, ao cinema e podem comprar livros, enquanto que a imensa maioria do povo ainda está longe disso, como se vê na pesquisa “O Consumo Cultural das Famílias Brasileiras”, do IPEA: 

- das pessoas das classes D e E, 92% nunca vão a shows, 95% nunca alugam filmes, 83% nunca vão ao cinema, 92% nunca vão ao teatro e 75% nunca leem nada (nem livro, nem revista, nem jornal)! A maior forma de fruição cultural da maioria das famílias brasileiras vem – pasme-se! – da televisão!

Um país com 5.565 municípios (censo do IBGE de 2010), possui 2.953 municípios que não têm um único centro cultural, um único museu ou cinema! 84,6% das cidades brasileiras não têm órgãos exclusivos para gerir cultura e só 4,2% possuem uma Secretaria de Cultura!

Além disso, se convive com uma produção simbólica que circula em aura de raridade, não pela sua raridade e genialidade intrínseca, mas em razão da falta de apoio institucionais consistentes. Nesse cenário, o bem cultural distante e produzido por especialista ganha um encanto que permite tanto sua sacralização quanto seu desprezo, dada a dificuldade para entendê-lo”, acrescenta o estudo do IPEA (grifo meu). Onde espaços públicos de cultura são escassos e pouco acessíveis e os deslocamentos confusos, desorganizados e caros, resta outra alternativa do que a telinha e o plim-plim?

É preocupante saber que o consumo cultural das classes D e E, e mesmo da C, é pouquíssimo direcionado às belas artes e às letras! Pois isso mostra que bens culturais estão fortemente submetidos à extrema desigualdade de renda, às desigualdades de escolarização e à desigualdade de acesso a equipamentos públicos que ofertem bens culturais variados. Para completar o índice das desigualdades: o que dizer de um povo cujo público consumidor de livros reside em 90% nas classes A e B? E que 75% das classes D e E não leem sequer jornal ou revista, quanto mais livros? E que apenas 42% dos pobres têm mais de 10 livros em casa (incluindo aí livros didáticos e religiosos)?

É necessário pensar a política cultural brasileira a partir de uma ênfase que seja inovadora, para propor rumos diferentes que levem nosso povo a um outro padrão de vida econômico, social e cultural. Para um necessário salto de civilização, a cultura concorre em muito! Proponho, em face disso, um olhar reflexivo maior – e mais frequente – sobre a vida cultural do povo brasileiro.

Estudantes de escola pública visitam exposição de pinturas
de Anita Malfatti, no CCBB, em Brasília, 2010

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Algo a ver com Perséfone?

Hoje, terceiro dia de Rio de Janeiro, fui até à Gávea, dar uma olhada no Instituto Moreira Salles, onde sempre há exposições. Foi para cá que veio primeiro a exposição de fotografias de Aleksandr Ródtchenko, antes de ir para São Paulo. Mas cheguei lá às 11 horas e ainda estava fechado. Abre às 13h, o que só descobri vindo ao local, após duas horas de ônibus e trânsito. Falha do portal, que não divulga o horário de funcionamento.

Enquanto isso, fui para o Museu do Universo, no Planetário do Rio, aqui também na Gávea. E por isso diria - dentro do velho ditado - de que os deuses escrevem certo por linhas tortas...

Plutão e Perséfone, de Gian Lorenzo Bernini,
escultor italiano, 1622
Lá no Museu do Universo vi, vendo a história da Astronomia e sua relação com a cultura dos povos, que os antigos - assim como nós - estavam visceralmente ligados às estrelas. E viam imagens nas estrelas!

Os povos de antigamente usavam o céu como pano de fundo de suas vidas, num tempo em que a luz artificial não ofuscava os céus... Nessa época não havia, nem em sonho, a "feia fumaça que sobe apagando as estrelas".

Os antigos projetavam nelas seus mitos, suas crenças, sua história. As estrelas eram pontos luminosos que se ligavam em linhas imaginárias, na imaginação de nossos antepassados. Ou pixels formadores de imagens. Olhavam ali para aquela multidão de estrelas e viam muito naquilo tudo!

Um exemplo dos mais bonitos sobre a rica capacidade humana de criar imagens e, com elas, criar sua cultura, sua riqueza artística, expor sua alma, está na constelação de Virgem. Nela, nossos antepassados viram estampado o drama da deusa Démeter, protetora da fertilidade e da agricultura. Démeter tinha uma filha de nome Perséfone. Ocorre que Plutão foi ferido pela seta de Cupido e por causa disso raptou a filha de Démeter e a levou consigo para o reino dos mortos.

Perséfone, do pintor italiano
Dante Gabriel Rossetti, pintada entre 1873-77
Desesperada, Démeter procurou a filha pela terra inteira e, não a encontrando, deixou de fazer com que o trigo nascesse. Júpiter, preocupado com isso, enviou o deus Mercúrio para que negociasse com Plutão o resgate de Perséfone. Um acordo foi feito, mas Plutão impõe uma condição que Démeter é forçada a aceitar: durante seis meses do ano Perséfone estaria com a mãe, e os outros seis meses permaneceria com ele, no Hades. Em troca desse acordo, Démeter só permite que a natureza floresça e dê frutos durante o período em que sua filha estiver com ela, período que começa na primavera e termina no final do verão. Nos seis meses em que Perséfone jaz prisioneira de Plutão, a terra não produz nada. É outono e inverno. Então quando as flores começam a brotar e a natureza dá seus frutos, enchendo tudo com mil tons de verde, é a mãe Démeter feliz com o retorno da filha. A terra se torna iluminada pela luz do sol, que cria todas as cores.

E o ser humano, cá embaixo, vendo aquela inundação de luz e cor, pega o seu pincel e sua palheta e joga sobre a tela as cores que vê ali à sua frente. Mas de uma forma que conte uma história, como contavam os antigos olhando para a imensa tela do céu... Afinal de contas, contar histórias tem sido a forma de o homem se juntar aos seus iguais, falar a mesma língua, criar laços, conexões, figurações...


No período do Renascimento italiano, pintores e escultores, como Bernini e Rossetti, interessados nesse mito, retrataram Perséfone, provavelmente intrigados com uma deusa que passava metade do ano habitando o reino de Hades, para onde vão todos os mortos. Com isso, esses artistas resgatavam velhos mitos gregos e romanos para trazer de volta o Homem para o centro do mundo, indo muito além do mito, hegemônico numa época de muito poder da Igreja Católica, do cristianismo. Démeter, Plutão, Júpiter, Perséfone... são a forma humana de inventar uma cosmologia para o mundo, inspirada nas estrelas do céu profundo. A Cosmologia avançou muito, com a ciência, mas ainda hoje é encantador olhar para o céu estrelado e rever nele as figuras que povoam a mente criativa do homem...

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Arte "Sem Título"

O Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro
De volta ao Museu Nacional de Belas Artes hoje, aqui no Rio, fui concluir minha visita ao terceiro piso do prédio. Faltou ver as obras de artistas contemporâneos, como Tomie Ohtake, Flávio Shiró, Abrahan Palatnik, Eduardo Sued, Paulo Pasta, Renina Katz, Dió Viana, Laura Vinci, Iole de Freitas, Jorge Guimle, Beatriz Milhazes, Daniel Senise, Lygia Pape, Fayga Ostrower, Leonilson, Luíse Weiss, entre outros.

Com exceção da alta qualidade das gravuras de Renina Katz e da beleza forte do traço de Luise Weiss, o resto... bem, eu não gosto mesmo! 

- Tomie Ohtake não me diz nada; 
- não gosto das manchas polockeanas de Jorginho Guinle; 
- Leonilson, o tal endeusado pelos "experts", não me toca; 
- outra "deusa" da expertise contemporânea, Beatriz Milhazes e suas florezinhas coloridas, para mim não se encaixa no gênero das Belas Artes, o que ela faz é decoração e padronagem ilustrativa para tecidos de decoração; 
- Laura Vinci, a que vi aqui, apenas copia uma cópia da cópia da cópia da abstração; 
- Paulo Pasta, idem;
- assim como outros, a maioria que estava lá. 
Garatujas de Jorge Guinle.
Prefiro Carlos Oswald, acima.

E definitivamente não gosto de instalações. Ou melhor, gosto das primeiras instalações, aquelas do russo Vladimir Tatlin, que sabia o que fazia. Esses caras de hoje apenas copiam copiam copiam à exaustão, mas se acham - e outros "experts" acham também - que são muito criativos.

Ontem passei 4 horas observando as pinturas dos séculos XIX e XX. Hoje passei 1 hora vendo toda a parte de arte contemporânea, sem quase nada que valesse a pena me deter um pouco mais. Com exceção de Luise Weiss e Renina Katz, como disse. E somente passei todos os 60 minutos porque parei em todos, anotei todos os nomes expostos. E percebi uma coisa muito interessante sobre as obras desses artistas contemporâneos: muitos dos trabalhos - contei 11, mas tinha mais - não tinha um título para a obra. Ou melhor tinha como título o título "Sem Título"... Nem eles sabem como dar um nome à coisa amorfa que fazem? Ou será que o charme a mais da obra denominada de "contemporânea" é mesmo não ter um título?

Não tinha um único ser humano lá, além de mim, olhando para aquilo. Ou melhor, dois rapazes passaram por mim, olhando rapidamente aqueles quadros, rindo muito. Lembrei de um texto que li em um site inglês, onde o jornalista contava que fez uma pesquisa sobre quanto tempo as pessoas param em frente a obras desse tipo e concluiu que são poucos segundos... Os que param. Ainda vou falar desse texto por aqui, em breve. 

Gravura em água forte, água tinta e ponta
seca de Carlos Oswald (1882-1971)
Outra observação: textos para ler, tem! Talvez para ocupar o espaço da "obra", que parece não preencher direito a falta. Copiei estes dois exemplos, um deles de uma sala de exposições da Escola de Artes Visuais do Parque Lage: 

Exemplo número 1: "Pela percepção da essência de matéria prima num processo próprio de inspiração, (fulano) interage livremente no consciente e inconsciente. (...)"

Exemplo número 2: "(...) a exposição toca a profundidade característica da poesia e, ao mesmo tempo, sua noção de expansão. Tomando, pois, o artista como poeta de fazeres que destituem separações ou divisões de gêneros artísticos. Aventura-se na transposição de estruturas verbais em visuais e vice-versa, no limite da leitura e apreensão, no espaço em linha, luz, volume, movimento, feito poema que salta da página com alusões a formas, imagens. Sua unidade advém da expografia, cuja ordem escapa à do tempo comum. O enfrentamento dos trabalhos no espaço persegue o instante poético.”

Entenderam? ... Nem eu...

Mas tem uma música do Zeca Baleiro que resume tudo isso, olha este trecho aqui:
"Pra entender um trabalho tão moderno é preciso ler o segundo caderno,
Calcular o produto bruto interno, multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone,
Rodopiando na fúria do ciclone, reinvento o céu e o inferno
Minha mãe não entendeu o subtexto da arte desmaterializada no presente contexto
Reciclando o lixo lá do cesto chego a um resultado estético bacana
Com a graça de Deus e Basquiat, Nova York, me espere que eu vou já
Picharei com dendê de vatapá uma psicodélica baiana..."
O Parque Lage
O Parque Lage é um lindo parque que fica entre o Corcovado e o Jardim Botânico. Mata Atlântica, com árvores centenárias, palmeiras imperiais. Projetado inicialmente pelo paisagista inglês John Tyndale em 1840 ao gosto dos jardins românticos, foi parcialmente reformulado, nas décadas de 1920-30 e 1930-40. Pertenceu a uma família de sobrenome Lage. 
O prédio principal abriga a Escola de Artes Visuais. Passei hoje toda a tarde lá. Salas cheias de alunos desenhando e pintando. Um grupo de alunos estava no pátio interno, ao ar livre, fazendo desenhos de observação do prédio. Uma professora acompanhava o exercício e parava um tempo com cada aluno, orientando o desenho. Sentei-me atrás de um grupo, numa mesa, com meus lápis e meu sketchbook e desenhei um pouco. 
Fiquei observando os desenhos dos alunos, alguns bem bons. Depois dei uma passada em volta, nos corredores do prédio, onde tinha diversos cavaletes com trabalhos de alunos, começados. Pinturas em acrílico, a maioria. Alguns abstratos, alguns figurativos. Depende do professor, me disse uma aluna. Fiquei com muita inveja dessas pessoas (inveja boa) por terem um lugar como este para estudar pintura e desenho! Com o detalhe muito interessante de que qualquer pessoa pode entrar lá, pode ver as pessoas desenhando e pintando, pode comer um lanchinho ou tomar só um café na lanchonete do fundo, onde na mesa ao lado da minha um grupo de moças e rapazes fazia uma reunião para organizar sua apresentação próxima em algum teatro de alguma cidade. Eles eram atores. 
Aqui funciona a Escola de Artes Visuais do Parque Lage