“Elifas Andreatto foi o grande artista
que soube dar forma ao conteúdodos anos difíceis da ditadura”.(Raimundo Pereira, jornalista)
O Memorial da Resistência de São Paulo, local que guarda a memória dos anos trevosos da ditadura militar brasileira, e que funciona no mesmo local onde estava assentado o esquema repressivo do DOPS paulista, está apresentando até outubro próximo uma exposição do grande artista Elifas Andreatto. A exposição intitulada “As Cores da Resistência” apresenta cerca de 100 trabalhos, entre capas de discos, cartazes de peças teatrais, fotos de jornais e de cenários criados pelo artista nos últimos 45 anos.
Eram os idos de 1979/80. Eu era ilustradora do material de propaganda do movimento estudantil de São Luís, e arriscava ilustrações também em materiais de divulgação do movimento de resistência à ditadura naquela época, quando morava na capital do Maranhão. Procurava expressar em meus traços tanto a denúncia da falta de liberdade em meu país, que perseguia artistas, estudantes, intelectuais, gente do povo e militantes políticos, como queria mostrar nas páginas do jornalzinho da Comissão Pastoral da Terra o sofrimento e a miséria do povo, especialmente dos camponeses. Foi quando vi pela primeira vez um trabalho do Elifas Andreatto, o ilustrador-mor de toda a história brasileira do período da ditadura militar.
Era um cartaz da UNE, pelo ensino público e gratuito, de 1979. Olhava dezenas de vezes para aquele menino pobre, mal vestido, quase sem rosto, cujas perninhas magras estavam desenhadas com tanto realismo que imediatamente se podia reconhecer o estado de abandono e miséria em que se encontrava o povo brasileiro. Era o próprio retrato de um menino nordestino, magro, moreno, faminto e sem escola. E tinha sido feito por um artista do Paraná, a quem a partir de então eu passei a admirar e que me inspirou tantas vezes.
Fui ao Memorial da Resistência ver de perto seu trabalho. Nele podemos ver nada mais nada menos do que a história recente do Brasil contada por um artista ex-camponês, ex-operário. Talvez seja por isso que ele soube refletir tão bem o momento histórico que o Brasil atravessava, nos árduos anos do regime militar. Luís Inácio Lula, falando de Elifas, disse que se o artista tivesse continuado na fábrica, seria hoje um peão de respeito. Mas preferiu o pincel e o lápis, e disse Lula, quando ainda nem era Presidente da República: “Por onde passo, em cada canto deste país em que há alguém lutando por um Brasil mais justo, encontro Elifas nas paredes, um elo entre os primeiros embates e a utopia que continuamos perseguindo.”
Elifas nasceu no Paraná. Era filho de uma família de camponeses muito pobres. Tendo vindo para São Paulo no começo da adolescência, Elifas era obrigado a uma jornada diária dura para ajudar a sustentar sua mãe e seus cinco irmãos. Até que foi trabalhar numa fábrica de fósforos na Vila Anastácio, onde os papéis de embrulho, em suas mãos, viravam cenários para os bailes dos operários. Em seguida, seus primeiros trabalhos de ilustração foram feitos no jornalzinho da empresa. Aprendeu tardiamente a ler e escrever, e a crescer dentro do seu trabalho de artista. Fez inúmeras capas de discos, dezenas de cartazes, tanto para o teatro quanto para o movimento de resistência à ditadura, outras inúmeras ilustrações para diversos órgãos, participou da redação dos jornais alternativos Opinião e Movimento, fez capas para a antigamente respeitável revista Veja, capas que fizeram história do design de capas, trabalhando junto com Pedro de Oliveira, também artista gráfico e militante do PCdoB até hoje.
A arte de Elifas Andreatto também reflete profundamente a alma cultural do povo brasileiro, alma presente nos versos de Chico Buarque, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Adoniran Barbosa, e tantos outros artistas da música e do teatro que tiveram o privilégio de contar com o talento ilustrador deste artista. Sua leitura da cultura brasileira é visceral, oscilando entre a suavidade e a sensibilidade de um retrato de Clementina de Jesus, por exemplo, até a agudeza dramática das cores que ele escolheu para denunciar a morte de Wladimir Herzog ou a figura pendurada num pau de arara, denunciando a tortura política nos porões da ditadura. Ou os meninos pobres iluminados por estrelas cadentes em seus tantos cartões de natal. Elifas possui “um olho extraordinário para ver seu povo” – todo o povo brasileiro mesmo, pois brasileiro tem todos os sobrenomes do mundo – e passar para o papel sua alma, sua cor (do povo), seu momento e movimento, diz o cartunista Ziraldo.
Para concluir, vale à pena transcrever um trecho do que Elifas escreveu sobre seu papel de artista, na abertura do livro “Impressões”, que trata de sua vida e obra:
“Esta é a minha satisfação: minha arte se liga à história da minha vida, das vidas assemelhadas à minha, e serve para contar o que eu e pessoas semelhantes a mim entendemos seja o mundo, a justiça e a liberdade. Assim deve ser entendida essa trajetória: ela é a soma das impressões fixadas no papel, ao longo de um caminho que começa no Paraná e que não sei onde termina. O que aprendi como autodidata, coloquei a serviço do que acreditava e jamais traí minhas crenças nem as troquei pela melhor oferta.”
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