terça-feira, 23 de agosto de 2016

Pequena história do autorretrato - parte I

"Narciso", Caravaggio, óleo sobre tela, 1594-96, 
Ao longo da história da arte, os artistas têm se dedicado - uns mais outros menos - a se autorretratarem. São conhecidos os muitos autorretratos de Rembrandt van Rijn, o grande pintor holandês. Pode ser puro interesse em sua própria imagem, pode ser algum tipo de narcisismo, pode ser simplesmente não ter um modelo ali na frente a não ser o próprio rosto do pintor, o autorretrato tem uma longa história.

Capa do livro
Em 2011, procurando aleatoriamente algum livro na seção de artes de uma livraria em Paris, um título me chamou a atenção: “Histoire de Moi - histoire des autoportraits”, de Yves Calméjane. Comecei a ler alguns meses depois, fiz muitas anotações, guardei. Tão bem guardado, que somente nestes dias encontrei novamente minhas anotações e então vou fazer o que já devia ter feito: transformá-las em textos para este Blog.

Como é um tema bastante vasto, mais uma vez vamos dividir este tema em vários pedaços de texto, para não cansar o leitor, seguindo a ordem do livro de Yves Calméjane, mas procurando retirar dele apenas a essência do que seja importante para este Blog. Se o leitor quiser se aprofundar, pode adquirir o livro pela internet, importando-o (referência bibliográfica segue abaixo).

Tão velha quanto a primeira sombra projetada sobre o chão, tão velho quanto a água da fonte onde homens e animais mataram sua sede e onde se reflete a sua imagem, o autorretrato é o fundador do pensamento – esta afirmação é de um dos primeiros teóricos da arte e pensador do Renascimento Leon Battista Alberti, que escreveu em 1435 em seu tratado “De Pictura”: “O inventor da pintura pode ter sido esse Narciso que foi transformado em flor, porque se é verdade que a pintura é a flor de todas as artes, então a fábula que se conta sobre Narciso é muito conveniente à pintura. O que é realmente pintar, se não a arte de beijar a superfície de uma fonte?”

Cézanne também dizia que “pintar é pensar com um pincel na mão”. 

Um dos diversos autorretratos de
Rembrandt van Rijn
No caso do autorretrato, o que se pergunta o pintor quando se vê diante do espelho: quem sou eu? Como é minha imagem, quando outros me vêem? O que dizem meus olhos sobre mim? Enfim, uma infinidade de respostas são possíveis a outro tanto de infinitas perguntas. No fundo, o que busca o artista quando se pinta a si mesmo: ou a fascinação com seu próprio retrato ou a desnudação de seu próprio ser. Sempre se volta ao jogo de Narciso e se dá vida ao velho mito: Narciso, o ser prisioneiro de sua imagem descoberta no reflexo no lago de águas tranquilas e frias. Sigmund Freud elaborou o conceito ligado a este mito, o de que o Narcisismo, mesmo que faça parte da constituição psicológica de cada um de nós, levado ao extremo gera sujeitos voltados para seu próprio umbigo. Nada que seja alheio à própria imagem pessoal, desperta interesse. 

Mas olhar para a própria face também significa se conhecer a si mesmo. Ver-se de perto, olho no olho. Se desnudar. Neste sentido, podemos nos lembrar de um outro mito, o de Mársias, o músico grego que ousou desafiar o deus Apolo e teve sua pele arrancada, seu corpo exposto literalmente.

“Nós somos convidados em efeito a não mais somente ver um ser que se adora e se perde em si mesmo, mas ao contrário, um buscador de identidade, que quer se conhecer a si mesmo, despreocupado com os ecos do mundo”, observa Calméjane. Na verdade há duas espécies de sujeito narcísico: um apaixonado pela própria imagem; outro fascinado pelo mistério de seu ser. Todos os mortais comuns como nós levamos conosco algum desejo de imortalidade.

Umas das características da pintura do autorretrato é de ser uma prática cultural, diz o escritor francês. Nós não encontramos autorretratos nem no mundo hebraico, nem no mundo árabe, nem no indiano. Na China e no Japão ele apareceu mas muito recentemente. É, pois, uma prática do mundo ocidental, advinda da cultura greco-romana. Concluímos: num mundo globalizado como o nosso atual, estes - e outros - valores da cultura ocidental se espalham por todos os cantos. Nunca se produziu tanto autorretrato como nos dias atuais, com a profusão de selfies e as auto-exposições nas janelas abertas das redes sociais.

Desenho na caverna de Lascaux, França
Os primeiros retratos humanos nasceram no fundo das cavernas, “o útero da arte”. No dia 12 de setembro de 1940, quatro garotos descobriram inscrições que datam de mais de 17 mil anos, na caverna de Lascaux, considerada por um padre (Henri Breuil, grande arqueologista e especialista em Pré-História), a “capela sixtina do paleolítico superior”. Eram desenhos que representavam seres humanos e animais. Também foi encontrado um verdadeiro bouquet de mãos humanas situado a 7 metros de altura, que datam de 12 mil anos, e foi descoberto por Luc-Henri Fage e Michel Chazine nas ilhas Keneeng, em Bornéu, Indonésia.

Há 12 mil anos, no período Neolítico, teve lugar a sedentarização do homem, surgindo novas profissões: os caçadores-coletores se transformam em agricultores e começam a construir suas moradias. Desenvolve-se a religião xamânica ou totêmica, que se manifesta através de esculturas ligadas a práticas rituais funerárias. A arquitetura e o artesanato nascem. Criam-se imagens de ídolos e deuses.

Na Grécia nasce a filosofia e o autorretrato.

A arte grega se desenvolve levando em conta a medida do homem como referência para todas as coisas, conceito que influenciou os artistas do Renascimento. Os gregos não separavam ciência e filosofia: Pitágoras, Thales, Heráclito, Parmênides, Zenon, Protágoras, Górgias, Sócrates e Demócrito foram pensadores que se sucederam entre os séculos VI e IV a.C. Eles sondavam o mundo que os cercava e lançaram as bases do pensamento ocidental. Foi em Atenas que apareceu uma das primeiras experiências de Democracia, onde “cada cidadão tinha a sua cota de poder”.

"Fidias mostrando o friso do Partenón a seus amigos", 1868,
pintura a óleo de Lawrence Alma-Tadema
Também na Grécia, Fídias – um dos maiores escultores conhecidos da antiguidade - realiza o primeiro autorretrato, e pagou um alto preço por isso, pois os gregos, seus contemporâneos, consideravam isso uma superestimação de si mesmo. Fídias, Péricles e Sócrates foram contemporâneos em Atenas, no séc. V a.C. conhecido como a Era de Ouro da Grécia. A Arte, o Poder e a Filosofia encarnados nesses três homens mostram que não surpreende que o verdadeiro nascimento do autorretrato, e então da afirmação do indivíduo, tenha acontecido na pátria da Democracia e da Filosofia. Mas foram todos os três repelidos: Fídias foi preso, Péricles morreu isolado de seus contemporâneos, enquanto Sócrates foi obrigado a tomar o veneno que lhe matou.

Fídias era também geômetra e foi capaz de controlar a perspectiva a tal ponto que ele deformou as colunas do Partenón para que, através de ilusão ótica, elas dessem sempre a aparência de equilíbrio, qualquer que fosse o ponto de vista. Acusado, portanto, de usar recursos destinados aos deuses com a finalidade de honrar a figura humana, Fídias foi levado à prisão, onde morreu.

Célebre mosaico bizantino
da Basílica de Santa Sofia,
em Constantinopla, atual Istambul,
Turquia 
Séculos depois ocorreu o declínio do Império Romano e o nascimento do Império Bizantino. Sucederam-se sociedades iconoclastas (que não permitiam o uso de imagens). No século VIII, o imperador Leão III suprime de seu palácio todas as representações de Cristo. O culto à imagem estava se excedendo, e ele o proíbe. Mas o Santo Sudário - pano onde se diz estar impressa a imagem de Cristo, por Ele mesmo - se mantinha muito bem guardado. Diz a fábula cristã que uma mulher chamada Verônica teria se apiedado do sofrimento de Jesus e teria lhe enxugado o rosto com um pano. Com isso, o rosto de Cristo teria ficado impresso no tecido. Foi o primeiro autorretrato da era cristã… Mas sobre esta mulher que virou santa na igreja, nada se sabe de biografia. Talvez tenha surgido de um certo jogo de palavras meio latino meio grego: “Vera” = verdade; “Icona” = imagem: Juntas, “verdadeira imagem” = "vera icona" = Verônica. Vai saber...

Em 743, após a morte de Leão III, seu filho o imperador Constantino, continua sua política iconoclasta ainda mais agressivamente. Ele convoca um concílio de bispos onde se estuda a dupla natureza de Jesus Cristo e manda condenar à morte quem possua ou venere um ícone. Houve uma verdadeira caçada e destruição de pinturas, mosaicos, relíquias e ícones durante todo aquele império. Mas havia o contraditório também. Outros pensadores cristãos diziam que as imagens podem levar o cristão a ter uma ideia da realidade “invisível”. São Teodoro Studita, um pensador da igreja bizantina, declara: “Através da imagem do Cristo, o invisível se faz ver”. Um argumento de inspiração nas ideias de Platão, que falava da imagem como símbolo de algo. Este monge foi preso e torturado por causa de suas ideias em favor das imagens.

Foi preciso aparecer uma mulher, mais tarde, para que se recuperasse o direito ao uso de pinturas de ícones. Irene, esposa de Leão IV, assume o poder após a morte do marido e, sendo favorável aos que defendiam o uso de imagens, convocou um concílio e inverte o jogo: agora é considerado um herege quem for contra o uso de imagens… Seguindo-se o império de Leão V o Armênio, volta-se a perseguição aos defensores das imagens. Mais uma vez uma mulher assegura o fim da iconoclastia: a imperatriz Theodora. Ela convoca uma missa solene na Catedral de Santa Sofia em 843 e restaura a ortodoxia no império Bizantino. Depois de mais de 100 anos de idas e vindas e de muito sangue derramado por causa da luta contra o uso de imagens, o ícone retoma seu lugar e começa a idade de ouro de Bizâncio…

O imperador Carlos Magno, na sequência, restaura o Império do Ocidente e durante seus 46 anos de reinado se produz o que ficou conhecido como o Renascimento Carolíngeo. Baseado numa enérgica reforma religiosa, o rei que nem sabia escrever, se ancora nas igrejas e conventos, onde o ensino se enraíza e se desenvolve. Houve um verdadeiro renascimento da literatura e das artes liberais, o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Foi aí o berço das primeiras universidades, como a de Oxford no Reino Unido. 

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continua no próximo post
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Referência bibliográfica:
Histoire de moi - histoire des autoportraits, Yves Calméjane, Thalia Editions, Paris, 2006

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