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sexta-feira, 1 de março de 2019

As Marias, Mahins, Marielles, malês

 

E começa o carnaval, a festa mais longa do Brasil, que foi estendida além dos clássicos três dias. E não, não termina mais na quarta-feira de cinzas… E viva a folia, que ninguém é de ferro! Está aberto o reinado de Momo e que ele traga alegria a este país entristecido por um governo parvo, caótico, perdido! Salve Momo, abaixo Bolsonaro!

O nosso carnaval é algo herdeiro do espírito original das festas pagãs. São aqueles dias em que todo mundo se esquece de tudo o que há de ruim e mergulha nas festas pelas ruas do país.

Mas foi no tempo de um papa, Gregório Magno (590-604), que o velho espírito da Saturnália - um festival que durava dias e onde reinava a mais completa orgia dos cidadãos romanos - migrou de vez para a festa do “dominica ad carnes levandas”, o nosso Carnaval, uma combinação de desfiles, festas, bebidas, comidas, fantasias, que se estende até o primeiro dia da Quaresma. Se estendia, pois nestes tempos tristes melhor empurrar a alegria até o final de semana seguinte. Pois, depois, tudo volta ao cinzento da luta pela sobrevivência… E do nefando projeto de reforma da previdência ameaçando a todos nós.

Carnaval, tempo de se fantasiar de qualquer coisa e sair por aí, vestido de qualquer coisa, no grande teatro da folia. Tempo de usar máscaras, de criar uma persona, de se vestir de outro alguém…

O triunfo da dúvida, Victor Brauner, 1942
Num certo sentido resgatando também o velho teatro grego, assim como os personagens da Commedia Dell’Arte da Idade Média, como Pierrot, Arlequim e Colombina, que aqui se misturam aos bonecos de Olinda, ao Axé da Bahia, aos Fofões do Maranhão, aos mendigos vestidos de rei porque o império é o da alegria que se espalha… Mesmo que não seja só alegria, ou que a alegria seja um tanto só na superfície... Estamos em tempos estranhos...

O carnaval carrega em si algo de tristeza… Assim como o samba, que entoa o grito do mais profundo do peito do nosso povo negro. Pois por trás da máscara, há a realidade da vida no Brasil destes tempos. E por isso os palhaços do carnaval escancaram um sorriso, mas denunciam uma tristeza, como na lágrima que escorre do olho de Pierrot…

E a Estação Primeira da Mangueira neste 2019 leu a alma do povo e resolveu contar tudo o que se passa, pra geral. Salve! Salve! E salve Marielle Franco e todas as grandes mulheres de luta!

História pra ninar gente grande

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasil que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa as multidões

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês...
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E aqui vai minha homenagem, pra não esquecer nem na folia:

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

“Hoje tem espetáculo!”


É Carnaval. De hoje até quarta-feira de cinzas as ruas do Brasil serão os lugares da alegria, da folia, da brincadeira, esquindô, esquindô-lelê...

Quando eu era criança, este período me atraía de forma estranha: eu tinha medo de uma figura misteriosa, mascarada, que invadia minha casa com sua feiúra, correndo atrás de mim que, apavorada, me escondia embaixo da cama, com o coração nas mãos e muito, muito medo dele! Trata-se de uma figura coberta dos pés à cabeça, com uma máscara em geral muito feia e que se chama Papangu. Até que um dia descobri que o papangu era meu tio...

Essa figura folclórica do carnaval nordestino, especialmente pernambucano, parece ter surgido em Pernambuco no século XIX. Mas as origens mais antigas desta figura provavelmente remonta às personagens da Commedia dell'Arte. Que foi um movimento de cultura popular na Itália do século XV, que reunia trupes de artistas que saiam pelas ruas e praças fazendo suas apresentações, um misto de teatro e circo, fazendo rir e chorar os públicos que iam juntando em suas passagens pelas cidades italianas. Satirizavam e ironizavam a vida e os costumes das classes dominantes de então. As peças apresentadas eram improvisadas, mas tinham personagens mais ou menos fixos, que cumpriam certos papeis, como o Pierrot, o Arlequim e a Colombina e seguiam mais ou menos o mesmo roteiro.

Nos tempos do império romano, já existiam figuras fantasiadas, uma espécie de esboço do que seria depois a Commedia dell’Arte, com pequenas farsas (peças, no sentido atual), muitas vezes obscenas seguidas de uma peça trágica. Entravam em cena quatro personagens mascarados: Maccus, o comilão, Bucco, um bêbado imbecil, Pappus, o velho gagá e Dossennus, o corcunda malicioso. O espetáculo era ensaiado, mas sempre havia espaço para alguma improvisação.

Com o tempo e a queda do império romano, esses grupos de artistas populares, que tinham já personagens fixos e carregavam suas lonas, foram se extinguindo aos poucos, com seus espetáculos popularescos obscenos e debochados. Os anfiteatros antigos que eram usados por essas trupes foram se transformando em quarteis com soldados que defendiam o império que se desmoronava.

Mas os espetáculos cômicos populares foram sobrevivendo através de acrobatas, charlatães contadores de causos, malabaristas e vendedores ambulantes. Se apresentavam nas ruas, em frente às igrejas ou aos castelos.

Uma parte desses atores ambulantes fazia representações de histórias bíblicas em frente às igrejas, com o apoio dos padres, com o objetivo de educar o público ignorante e analfabeto. As cenas bíblicas, mesmo que repetidas, eram interpretadas a cada vez com alguma modificação. Mas junto a esses atores também haviam os que preferiam encenar histórias da vida cotidiana.

Ao final do século XV, no norte da Itália, surgiram esses grupos de atores que se baseavam na improvisação e apresentavam personagens vestidos com roupas bem coloridas.

A Commedia dell’Arte (literamente “comédia de artistas profissionais”) fazia apresentações ao ar livre com grupos de atores itinerantes. O enredo era básico, muitas vezes uma história familiar, mas os atores improvisavam o diálogo. Os atores adaptavam esses diálogos ao tipo de público que os assistiam, às vezes juntando comentários maliciosos sobre poderosos locais ou frases de humor picante, muitas vezes censurados. O tema mais comum era o amor: um casal que se amava e não podia ficar junto por algum motivo. Os Innamorati (o casal de atores que fazia os papeis principais) em alguns enredos pediam a ajuda de personagens menos importantes, os servos, chamados em italiano de zanni (a palavra “bobo” deriva daí), que, mais astutos, davam um jeito de juntar os amantes. Talvez Shakespeare se inspirou nesse enredo para criar sua peça "Romeu e Julieta", a história de amor trágica sem final feliz? Pode ser.


O ator francês Charles Deburau
em cena como Pierrot,
fotografado por Nadar em 1855
Nesta história dos Innamorati, todos os personagens usavam máscaras, exceto Pedrolino e Colombina. Pedrolino hoje é conhecido por Pierrot, por causa da influência francesa. As máscaras dos outros personagens, por sua vez, eram influência das comédias romanas antigas. Os zannis (servos) eram os personagens mais subversivos, mais astutos e que aprontavam muitas travessuras. O mais conhecido deles é, ainda hoje, o Arlequim (em italiano Arlecchino).
Arlecchino era caracterizado como um homem pobre, original de Bérgamo, que usava retalhos de roupas em forma de losangos em sua roupa, sinal de sua pobreza. Sua máscara era cheia de verrugas e às vezes tinha a forma de uma cara de macaco, de gato ou de porco. Era um acrobata brilhante, mas também era guloso, mal-educado, analfabeto e ingênuo. Mas tinha uma amada: a Colombina, ou Arlecchina, uma serva inteligente e sensual. O pintor francês Jean Antoine Watteau o retratou como um amante melancólico e apaixonado. Outro pintor, o italiano Giovanni Domenico Tiepolo o pintou em uma apresentação em praça pública.

"Mezzetin", personagem pintado por
Jean Antoine Watteau, óleo sobre tela, 1720
Além destes dois, os mais conhecidos até hoje e tema de diversas canções de nosso carnaval brasileiro, havia também o Pedrolino, nosso Pierrot, como já falamos. Ele tinha uma natureza doce e ingênua, sempre disposto a assumir a culpa dos outros. Sua roupa é branca e seu rosto está tingido com pó branco, às vezes com uma lágrima pintada caindo de um dos olhos. 

Alguns franceses, mais tarde, entre eles o poeta Baudelaire, consideraram o Pierrot como símbolo do artista criativo e solitário.

No começo do século XVIII, sob a influência dos movimentos políticos e sociais na França, os zanni (personagens servos) dos novos comediantes vão assumir uma postura mais altiva, até arrogante, mais autoconfiante, menos subalterna do que na velha Commedia dell’Arte na Itália. Dois deles, em especial Brighela e Arlequim, que antes se reconheciam como pobres e dependentes de seus patrões, agora são mais otimistas em relação a seu futuro e têm esperança de que sua situação um dia vai melhorar. Eles são ainda mais astutos.

No século XIX, a Commedia dell’Arte desaparece de cena. Alguns escritores ainda farão referência a ela, como o poeta Paul Verlaine e Théophile Gautier, que conta a história de uma trupe de comediantes que atravessam a França fazendo suas apresentações.
Representação de Joseph Grimaldi,
o célebre clown do circo inglês do
século XI

O circo, como o conhecemos hoje, surgiu no final do século XVIII na Inglaterra. O Clown inglês - palhaço - tem muita semelhança com os personagens da Commedia dell’Arte: era - e ainda é em nossos circos - um personagem fixo, com roupas excêntricas e maquiagem carregada, que cria situações cômicas e arranca gargalhadas do público.

E lembramos uma música que permeia a infância de muitos de nós, moradores das cidades do interior brasileiro (em Caruaru era assim), quando uma pequena trupe de atores percorria as ruas chamando o povo para o Circo, entre eles o palhaço, cantando:

“- O raio, o sol suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua
- Hoje tem espetáculo?
Tem, sim, senhor!”


Hoje, em nosso carnaval, quando vestimos nossas fantasias, muitas delas de Arlequim, Colombina e Pierrot, rememoramos esta antiga tradição. Para a nossa alegria, e a alheia, quase nada é necessário nestes carnavais: uma máscara, uma fantasia, uma canção simples, alguns passos de dança e a alegria toma conta, num contágio quase universal.

Grande lição do carnaval brasileiro, resgatando a Commedia dell’Arte: vamos rir de tudo, vamos rir de nós mesmos, dar grandes gargalhadas! O futuro é para se rir!

Pintura representando o Arlequim, de Giovanni Domenico Tiepolo, 1755