domingo, 24 de junho de 2012

Vincent Van Gogh: seus quadros resultam de muito estudo


Detalhe de um de seus autorretratos
Vincent van Gogh, pintor holandês nascido em 30 de março de 1853 (leia mais aqui), escreveu mais de 700 cartas a seu irmão mais novo, Theo, que era negociante de arte nos Países Baixos e foi um apoio fundamental para seu irmão artista. Theo van Gogh apoiou não só financeiramente a Vincent, mas era muito presente na vida do irmão mais velho, dando apoio emocional e incentivo em sua carreira de artista. Diz-se que os dois eram tão unidos que no ano seguinte à morte de Vincent, Theo também morreu.
Mas o tema que nos interessa no momento, dentro das cartas de Vincent a Theo, é apontar como Vincent van Gogh era um estudioso de sua profissão de artista. Acho importante enfatizar isso, pois vivemos em um tempo em que o sistema artístico hegemônico atual considera que técnica não serve para nada e que o aluno não precisa mais se debruçar dias e dias, anos de sua vida, no estudo da técnica e da teoria. Prega-se a instantaneidade, a rapidez das coisas. E “gênios” são fabricados a partir daí, com todo o apoio da mídia. Hoje em dia, basta ter uma boa ideia, à moda da “Caninha 51”, como aponta Ferreira Gullar.
Terraço do café à noite, Arles, 1888
Mas os mestres, todos, estudaram muito para produzir arte. Se olhamos para um quadro com as cores vivas de Van Gogh, que não nos iludamos: aquilo ali é fruto de aplicação ao estudo, ao desenho, às anotações, à observação das cores, de como elas se comportam em um quadro, umas em relação às outras. E respeitava aqueles que vieram antes dele, sabendo que ele só alcançaria algum status nas artes se soubesse em que terreno pisava, se conhecesse o que falaram e fizeram os que vieram antes dele. Mesmo que fosse para inovar. E Van Gogh o fez.
Extraio aqui alguns trechos de cartas escritas por Vincent a Theo entre 1883 e 1885, no que diz respeito às cores. Há muito mais nesse livro, que recomendo a leitura aos interessados. Esses excertos abaixo foram retirados do livro da Editora L&PM Cartas a Theo, de 2010:
“Escrevo-lhe a respeito de uma passagem de Os artistas do meu tempo, de Charles Blanc: 


‘Três meses aproximadamente antes da morte de Eugène Delacroix, nós o reencontramos, Paul Chenavard e eu, nas galerias do Palais-Royal, às dez horas da noite. Foi à saída de um grande jantar onde se havia discutido questões de arte, e a conversação sobre este mesmo assunto tinha se prolongado entre nós dois, com aquela vivacidade, aquele calor que dispensamos sobretudo às discussões inúteis. Falávamos sobre a cor, e eu dizia:
- ‘Para mim os grandes coloristas são aqueles que não pintam a cor local’. E eu ia desenvolver meu tema quando percebemos Eugène Delacroix na galeria da Rotunda.
‘Ele veio a nós exclamando: tenho certeza de que eles estão discutindo pintura! Com efeito, disse-lhe eu (...), eu dizia que os grandes coloristas não pintam a cor local, e convosco certamente não precisarei ir além.  
‘Eugène Delacroix deu dois passos para trás piscando um olho segundo seu hábito: ‘Isto é perfeitamente verdadeiro, disse ele, veja um tom, por exemplo (e indicava com o dedo o tom cinza e sujo do chão): pois bem, se disséssemos a Paolo Veronese (pintor italiano do Renascimento): pinte-me uma bela mulher loira cuja pele tenha este tom, ele a pintaria, e a mulher seria uma loira em seu quadro’.
A noite estrelada sobre o rio Rhone, 1888
Van Gogh continua:
“A respeito de ‘cores pobres’, não se deve, no meu entender, considerar as cores de um quadro por si mesmas; uma ‘cor pobre’ pode muito bem exprimir o verde tênue e vigoroso de uma campina ou de um trigal quando, por exemplo, estiver sustentada por um castanho-vermelho, um azul-escuro ou um verde-oliva."
“(...) Uma cor escura pode parecer, ou melhor, produzir claridade; isto no fundo é mais uma questão de tom."
 “Mas, então, no que diz respeito à cor propriamente dita, um vermelho-cinza, relativamente pouco vermelho, parecerá mais ou menos vermelho em função das cores que lhe dão vizinhança."
“Assim como o azul e o amarelo. Basta colocar um pouquinho de amarelo numa cor para fazê-la tornar-se muito amarela, quando colocamos esta cor num – ou ao lado de um – violeta ou lilás."
Autorretrato, 1888
“Lembro-me como alguém se esforçava em reproduzir um telhado vermelho sobre o qual batia a luz, por meio do vermelhão e do amarelo-cromo, etc... Não funcionava."
(...) “Li com muito prazer Os mestres de outrora, de Fromentin. Vi tratadas nesse livro , em diversas passagens, as mesmas questões que me preocupavam muito nestes últimos tempos e nos quais penso continuamente... (...)”
“Faz muito tempo, Theo, que estou desgostoso com certos pintores atuais, que nos privam do bistre e do betume*, com os quais se pintaram tantas coisas magníficas e que, bem utilizados, dão sabor, riqueza e generosidade ao colorido, sendo sempre tão distintos. E que possuem propriedades tão notáveis e específicas.”
 “Aliás, também exigem esforço para que se aprenda a utilizá-los, pois deve-se usá-los de forma diferente que as cores ordinárias, e acho muito provável que mais de uma pessoa tenha ficado assustada com as tentativas que é preciso fazer no início e que, naturalmente, não dão certo logo ao primeiro dia em que se começa a utilizá-los.”
Estudo para Marguerite Gachet ao piano, 1890
“(...) Quando encontrar boas obras como, por exemplo, o livro de Fromentin sobre os pintores holandeses, ou se você se lembrar de uma delas (obras), não se esqueça que eu desejo muito que você compre algumas, deduzindo do que você costuma me enviar,desde que tratem de técnica. Tenho a intenção de aprender seriamente a teoria; não considero isso de forma alguma inútil, e acredito que frequentemente o que sentimos ou o que pressentimos instintivamente torna-se claro e certo quando somos guiados por alguns textos que tenham um real sentido prático."
“Quando ouço dizer que ‘na natureza não há preto’, penso que na realidade o preto também não existe na cor.”
“Sobretudo não se deve cair no erro de acreditar que os coloristas não empregam o preto, pois não é preciso dizer que desde que o preto entre em composição com elementos azuis, vermelhos ou amarelos, estes tornam-se cinzas, seja vermelho-escuro, amarelo ou azul-cinzento. Acho especialmente muito interessante o que Charles Blanc no Os Artistas de meu tempo diz sobre a técnica de Velázquez, cujas sombras e semitons consistem, na maioria das vezes, em cinzas frios e incolores, em que o preto e um pouco de branco são os elementos de base. Neste meio neutro e incolor, a menor nuvenzinha, por exemplo, já é muito expressiva.”
E mais à frente:
“(...) Sei entretanto e muito bem quem são os artistas verdadeiros e originais em torno dos quais girarão, como ao redor de um eixo, os paisagistas e os pintores de camponeses. Delacroix, Millet, Corot e o resto. Isto é o que eu sinto, embora mal expresso.”
“Quero dizer com isto que, mais que as pessoas, existem regras, princípios ou verdades fundamentais, tanto para o desenho quanto para a cor, aos quais é preciso recorrer quando se encontra algo de verdadeiro.”
“(...) Quero portanto assegurar a Portier nesta carta que minha crença em Eugène Delacroix e nestas pessoas antigas é muito exata e correta.”
“E enquanto trabalho num quadro em que não se veem claridades de uma lâmpada (...) talvez não seja inútil observar que uma das coisas mais belas dos pintores do nosso século foi pintar a obscuridade, que apesar de tudo é cor.”
“... Como é correto e verdadeiro. E como é importante poder fazer em sua palheta essas cores que não sabemos como chamar e que formam a base de tudo.”
Os comedores de batata, 1885
 -------
* Bistre – bistre é uma tonalidade marrom escuro acinzentado com tom amarelado, feito a partir de fuligem.  Muitos mestres antigos usaram o bistre para seus desenhos. Betume – decomposição de origem animal ou vegetal, de cor escura como o petróleo, serve de base também para a pintura, usando-se por exemplo para dar impressão de envelhecimento a alguma base.
--------
Se quiser mais informações sobre o pintor, acesse o site do Museu Van Gogh de Amsterdam, Holanda:


Van Gogh Museum - em espanhol

quinta-feira, 14 de junho de 2012

A grandiosidade de Rafael Sanzio

A Stanza della Segnatura, no Vaticano, onde se encontram os afrescos de Rafael. Vê-se na parede da direita
"A Escola de Atenas" e na da esquerda "O Parnassus".
Neste último dia 12 de junho, o Museu do Prado de Madri, na Espanha, inaugurou aquela que, segundo seus organizadores, é uma das exposições mais importantes, até esta data, da obra de Rafael Sanzio. Também é a primeira delas que se concentra no período mais tardio de sua produção que o converteu em um dos pintores mais influentes da arte ocidental.

Organizada em colaboração com o Museu do Louvre, de Paris – que receberá a exposição na sequência desta -  a mostra traz mais de setenta obras, sendo quarenta pinturas e trinta desenhos, de acordo com uma cronologia que abarca os últimos sete anos de vida do pintor. A seleção das obras que estão expostas em Madri incluirá quadros célebres como o do altar de Santa Cecília (de Bolonha, Pinacoteca Nazionale), ou o retrato de Baldassare Castiglione, do Louvre. Também vai destacar a ampla representação de obras de seus principais discípulos: Giulio Romano (1499-1546) e Giovanni Francesco Penni (1488-1528), que, sob o controle estrito de Rafael, participaram ativamente dos últimos trabalhos do ateliê do mestre.

Sorte do público espanhol, que pode ir ver de perto a obra de um dos maiores mestres de todos os tempos.

Sobre o mestre

Rafael: Autorretrato, cerca de 1506
Rafael Sanzio nasceu em 28 de março de 1483, em Urbino, Itália. Era filho de Giovanni Sanzio, pintor da corte do duque de Urbino. Seu pai era também ourives, escultor, poeta e negociante de cereais. Urbino era, então, um importante centro cultural e ele teve uma educação refinada, que fez dele um homem culto e de modos elegantes. Segundo o historiador das artes italianas do século XVI, Giorgio Vasari, Rafael foi iniciado no ateliê de seu pai, onde ele aprendeu as bases técnicas de sua arte. Mas seu pai morreu por volta de 1494, três anos após a morte da esposa. Rafael tinha onze anos quando se viu órfão de pai e mãe.

Em 1500, com apenas dezessete anos ele deixa sua cidade natal e parte para a Perúgia, região da Úmbria, onde também vivia o pintor Pietro Vannucci, conhecido como Perugino, que acabara de terminar seus afrescos na Capela Sistina. Perugino possuía um estilo fluido e gracioso e as primeiras obras de Rafael seguem o estilo do mestre. Mas Rafael já não era mais um aprendiz e nesse mesmo ano já é citado como “mestre”, por causa da realização do retábulo “O Coroamento do bem-aventurado Nicolas de Tolentino”, um eremita canonizado em 1406, pela igreja de Santo Agostinho da Cidade de Castello. Rafael executa esse quadro com a ajuda de Evangelista da Pian de Meleto, velho assistente de seu pai.

Na condição de mestre, ele agora tinha seu próprio ateliê e seus próprios assistentes e discípulos. Sua reputação crescia. Mudou-se para Florença, aonde Michelangelo e Leonardo da Vinci disparavam suas pesquisas individuais que ultrapassavam os limites da época. Rafael morou em Florença por quatro anos e nesse tempo pintou algumas das mais conhecidas imagens de Maria. De Michelangelo, ele emprestava seus estudos de anatomia e de Leonardo da Vinci, as composições piramidais e a iluminação, bem como sua técnica do sfumato. Mas com isso em mãos, Rafael criou seu próprio estilo.

Um estudo feito quando era adolescente
A partir de 1508, Rafael começa sua carreira de pintor do papa. Naquela época, Roma era a cidade que mais atraía artistas de todos os cantos, em busca de trabalho e, mesmo, de reconhecimento. Bispos, cardeais e papas foram grandes mecenas das artes, transformando a cidade de Roma num verdadeiro canteiro de obras artísticas. Pintores, escultores, arquitetos, artesãos trabalharam em Roma durante décadas.

O papa que chamou Rafael a Roma foi Julio II. Rafael logo obteve reconhecimento público e nessa cidade ele morou até o fim da vida. Era famoso não só por ser artista, mas sua beleza e sua personalidade encantavam a todos. Giorgio Vasari, que escreveu sobre a vida dos artistas de sua época, disse que Rafael “era tão talentoso quanto bondoso... e ainda com modos afáveis e agradáveis.” Tinha uma saúde frágil, em especial os pulmões, era franzino e pálido, mas tinha uns olhos brilhantes, como observa Carlos Cavalcanti no livro Conheça os estilos de pintura. Parecia que sua vida era sustentada por um fio.

Entre sua maiores obras estão os afrescos pintados dentro do Vaticano, entre eles o mais conhecido, "A Escola de Atenas" (1510-1512). As figuras criadas por Rafael são a expressão da beleza ideal, dentro dos parâmetros da época, mas de atitudes simples e graciosas, como observa também Cavalcanti. O papa Júlio II lhe encomendou a decoração de todos os apartamentos da residência papal – conhecidos como Stanze – para cujo trabalho Rafael contou com a ajuda de ajudantes e de discípulos. Enquanto isso, Michelangelo iniciava a decoração da Capela Sistina, por encomenda do mesmo papa.

Retrato do papa Júlio II, que em 1650 irá inspirar
Diego Velázquez a pintar na mesma posição o "Retrato
do papa Inocêncio X
O primeiro ambiente que ele pintou foi a Câmara da Assinatura, local onde o papa costumava assinar bulas e documentos. Numa parede, pintou a "Escola de Atenas"; em outra, em frente àquela, compôs "A Disputa do Santíssimo Sacramento", opondo a antiga sabedoria grega às ideias do cristianismo. Cavalcanti diz que Rafael deve ter contado com a assessoria de teólogos e humanistas para compor toda a sala, onde misturou elementos da cultura grega, as musas, os poetas, os filósofos, assim como figuras do cristianismo.

Ainda seguindo Cavalcanti: “Na Escola de Atenas, por exemplo, o tema é justamente a glorificação da sabedoria grega. Sob majestoso pórtico bramantesco, cercado de pensadores, poetas e artistas da Grécia, Idade Média e Renascença, avançam conversando Platão e Aristóteles. Platão está com o ‘Timeo’ na mão.” O quadro é, de fato, grandioso e nele o próprio Rafael se autorretrata.

E. H. Gombrich diz em História da Arte que para “apreciar toda a beleza dessas obras, é necessário passar algum tempo nessas salas e sentir a harmonia e diversidade do plano total, em que um movimento responde a um movimento, e uma forma a outra forma.”

Exatamente nesse período, Rafael conhece aquela que será o grande amor de sua vida: “La Fornarina”, denominada assim porque ela era a filha de um padeiro. Diz-se que depois de certa época um estilo novo de beleza feminina começa a aparecer em seus quadros. Diz-se também que ela era muito bela e foi com ela que Rafael viveu até seus últimos dias. Quatro meses após a morte dele, Catarina ainda inconsolável, resolveu se internar num convento. Carlos Cavalcanti conta que ainda existe em Roma, numa casa que pertenceu à família Sassi, uma placa onde se diz que ali viveu “La Fornarina”, a paixão de Rafael.

Em 1513, morreu o papa Júlio II, quando Rafael ainda trabalhava nos afrescos do palácio. Mas o papa que veio a seguir, Leão X, pertencia à família Médicis, tradicional família italiana ligada às artes e às letras. Também o novo papa é admirador de Rafael, que vivia cercado de admiradores e de discípulos dispostos a aprender com o mestre.

O enorme afresco "A Escola de Atenas", na Stanza della Segnatura, Vaticano, 1508-1511. No centro do quadro, Platão e Aristóteles. No grupo de figuras à direita, o próprio Rafael se autorretrata em meio a outras personagens.
Rafael foi um dos maiores influenciadores das artes e um dos maiores modelos italianos para artistas de outras terras. Era grande retratista. Em suas composições, os “sentimentos de ordem, segurança e harmonia que nos comunica – diz Carlos Cavalcanti – resultam em grande parte do modo por que interpretava o espaço, sempre amplo e luminoso, conferindo-lhe inesperadas sugestões líricas”.

Rafael viveu numa época que passou para a história conhecida como “Il Cinquecento”, o mais rico período da arte italiana e de todos os tempos. “Foi a época de Leonardo da Vinci e Michelangelo, de Rafael e Ticiano, de Correggio e Giorgione, de Dürer e Holbein no Norte, e de muitos outros mestres famosos”, diz E. H. Gombrich em A História da Arte, que acrescenta: “É-se tentado a perguntar por que todos esses grandes mestres nasceram no mesmo período, mas tais perguntas são mais fáceis de fazer do que de responder”. Resta-nos mais apreciar o gênio desses grandes nomes das artes italianas, que surgiram em meio a um período de efervescência das ideias, quando o mundo passava por mudanças profundas, quando o capitalismo já se instaurara como um sistema moderno.

Sua amada Caterina,
 La Fornarina, cerca de 1518-19
Rafael possuía uma grande capacidade de trabalho, apesar de sua compleição frágil. Fez inúmeros retratos, composições gigantes, afrescos, quadros de encomenda. Atingiu um tão alto nível em sua técnica que diz Gombrich: “Assim como se considerou que Michelangelo atingiu o zênite no domínio do corpo humano, Rafael foi considerado o artista que realizou o que a geração mais antiga se esforçara em conseguir: a perfeita e harmoniosa composição de figuras movimentando-se livremente”.

Delacroix certa vez teria dito que “o mero nome de Rafael traz à mente tudo o que é mais elevado na pintura”. Ingres durante toda a sua vida cultuou Rafael, tanto em seu estilo, próximo do mestre renascentista, mas também nas homenagens recorrentes que fez ao pintor de Urbino em seu próprio trabalho.

Rafael Sanzio morreu aos 37 anos de idade, em 6 de abril de 1520, em Roma. Era tão reverenciado que seu sepultamento se deu em meio a muitas honrarias e pompas. Carlos Cavalcanti afirma que depois da morte de Rafael “o povo de Roma o tinha na conta de um anjo que Deus enviara à terra para fazer bonitas Nossas Senhoras e lindos meninos Jesus...” Gombrich conta que um dos mais famosos humanistas de seu tempo, o cardeal Bembo, escreveu para o túmulo de Rafael este epitáfio:

“Aqui jaz Rafael; 
enquanto viveu, a Mãe Natureza temia ser por ele vencida; 
agora que está morto, ela receia morrer também”.

domingo, 10 de junho de 2012

Arte para quê?

"Êxtase de Ludovica Albertoni", escultura do italiano Gian Lorenzo Bernini, cerca de 1671
                Desde muito cedo em minha vida, uma atração muito grande para o desenho foi se gestando em mim. Não me lembro dos meus primeiros traços, apagados em minha memória, mas lembro de, com 6 ou 7 anos de idade, eu via se juntar em volta de mim na escola (Colégio do Sagrado Coração, de Caruaru, minha terra natal), uns 3 ou 4 colegas que ficavam me pedindo para desenhar coisas para eles. Talvez tenha sido esse o momento em que eu tenha tomado consciência da arte em mim: quando outras crianças, pequenas como eu, encontravam algum prazer comum em ver traços se trans-formando, tomando formas conhecidas, pelas minhas mãos. E enquanto crescia, na escola, desenhava para mim e para eles mapas, letras, Tiradentes, Jesus cristos, Dom Pedro I e II, paisagens, para aulas de história, religião, artes, geografia. Eu mesma me surpreendia com minha facilidade, mas mais feliz ficava por ter algo em mim que atraía as pessoas e que lhes encantava. Assim como encantava meu pai, que ia me orientando a desenhar as máquinas que ele inventava para a sua serraria. Ou que me contava estórias de caçadas e florestas, que depois eu desenhava; e ele ria, satisfeito.

"O Geógrafo", Jan Vermeer, 1669
A arte satisfaz o homem. Como o alimento e a água que nutrem o corpo, a arte vem nutrindo a alma humana desde os tempos mais remotos. Ainda hoje se questiona sobre o que exatamente a arte possui que cativa as pessoas de todos os tempos, culturas, tradições. O que é Arte?
Muitos autores já escreveram respostas para essa pergunta. Muitos debates, conversas, seminários, interlocuções vêm acontecendo desde os mais antigos tempos para se chegar a alguma aproximação sobre o que é Arte, qual o caráter essencial da Arte, essa capacidade humana que molda o mundo como a casa de todos, num fazer para onde confluem nossas alegrias e nossas tristezas mais profundas. E que nos atrai mais do que pensamos ou prevemos. E que irradia significado para a nossa vida do cotidiano, nos permite seguir em frente nas tarefas da existência, nos dando força para recriar nossas próprias vidas, enquanto vamos moldando o mundo.
A arte nos faz mais humanos, nos faz grupo e nos faz indivíduos.
Cantamos juntos a mesma música; ouvimos em bando silencioso um maestro regendo uma orquestra sinfônica; em grupo estamos no teatro, enquanto Antígona implora justiça para seu irmão morto; no cinema, damos estrondosas gargalhadas diante de Charles Chaplin ou choramos miúdo e quieto diante da morte da mãe do menino de “Roma, cidade aberta”; vamos aos milhões para as ruas das cidades em viradas culturais; mas também nos quedamos solitários, contemplativos diante de uma pintura que nos toca; ou admirados diante dos desenhos de Escher; ou esputefatos, se nos deparamos com as maravilhas criadas por gênios como Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Vermeer, Velazquez, Rafael, Courbet, Delacroix, Ingres, Sargent, Sorolla...
Pintar e desenhar é um exercício de aprender a ver o mundo. Porque normalmente nós não vemos o mundo. Vemos o trivial, o corriqueiro, o passageiro, o superficial. Quando pintamos e desenhamos, nosso olhar vai penetrando camadas do real que escapa ao olhar comum. E na medida em que vamos penetrando nas coisas, mais informações vão surgindo, mais há o que ver, num exercício de percepção que se aprofunda cada vez mais e que tende ao infinito... O Real é infinito... Nunca olhamos do mesmo jeito para a mesma coisa. Assim como a mesma coisa nunca aparece da mesma forma a cada olhada. A cada olhada, a coisa é outra, o mundo é diferente. Há algo na percepção do mundo que é uma via de dupla mão, e a relação não é nem predominantemente ativa e nem passiva. A coisa observada de alguma forma nos observa, como relatam as experiências da física quântica. O mundo está aí, desde seus primórdios, para ser descoberto. E jamais deixa de ser descoberto, porque infinito.
O autor inglês Laurence Olivier interpretando "Hamlet"
na famosa cena: "to be or not to be, that is the question!"
Mas pintar e desenhar também é uma forma de linguagem para descrever isso que vemos. A Retórica tem seus limites; a gramática é finita. Nenhuma língua humana é capaz de alcançar certos estados da realidade e nossa relação com ela, para descrever, para contar a experiência. Um por de sol maravilhoso, singular, vivenciado em um momento de êxtase, jamais poderá ser contado fielmente, se quisermos narrá-lo a outra pessoa. Há músicas, filmes, peças de teatro – obras de arte – que nos calam, sobre os quais não achamos palavras, todas são pobres, todas rebaixam as experiências, ou, como diria o poeta francês Mallarmé, se coisificam, se mercantilizam. Empobrecem a experiência do Real. Há estados de alma inenarráveis, sobre os quais não há o que se falar, não dá para descrever. Como uma mãe em profundo estado de choque pela perda do filho é capaz de falar da sua dor de uma forma que ela se torne no outro do mesmo tamanho que é para ela? Ou como ser capaz de por em palavras a emoção de um abraço na pessoa amada, depois de tempos sem vê-la? Ou como contar da alegria imensa que sentimos num momento qualquer de realização pessoal?
Cena do filme "Roma, cidade aberta", do diretor italiano Roberto Rosselini,
filmado no período da segunda guerra mundial
Mas pode-se fazer música, poesia, pintura, escultura, dança... com essas vivências para as quais a gramática é pobre. A Arte cria essa ponte entre o Real essencial e a vida cotidiana, numa linguagem inteligível por qualquer ser humano, de qualquer língua, porque a linguagem da Arte é a linguagem mais profunda que vem da alma humana e que une todos os seres humanos.
Mas como vivemos em um mundo desigual, uns se beneficiam da possibilidade da aproximação com obras de arte... O mundo capitalista é mal para a maioria, que corre atrás do cotidiano, sem direito a momentos de fruição dessas possibilidades de REAL-IZAÇÃO do Real em si mesmos. Do Real, essa potencialidade de beleza e de harmonia que nos chama e nos inflama, quando uma janela se abre para ele...
Mas um passarinho canta nesta manhã fria de São Paulo. Da gaiola do apartamento vizinho, ele entoa sons que nada custam, que não tem valor de mercado, que não servem para nada (no sentido utilitário das coisas do mundo atual). Mas que chama a um momento de silêncio, mínimo que seja, para que seu canto nos encante.
Sabiá laranjeira de nossas matas brasileiras