“Meu conceito parece à primeira vista
um barrococó figurativo neo-expressionista
com pitadas de art-nouveau pós-surrealista
calcado na revalorização da natureza morta...”
(música “Bienal”, Zeca Baleiro)
A Bienal Internacional de Artes de São Paulo está em cartaz até dezembro. Excelente momento para algumas reflexões e questionamentos acerca da velha contenda entre arte figurativa e arte conceitual.
Um dia desses, lendo um texto do psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge, cujo título me chamou a atenção (“Despertar para o Real”), pude observar que pode existir uma confluência muito grande entre linhas de pensamento aparentemente distantes, quando estas direcionam o foco de suas pesquisas em uma mesma direção: a essência do Real.
Logo de cara, o autor cita uma frase do psicanalista francês Jacques Lacan, que pode ser o mote inicial para uma conversa sobre arte contemporânea. Eis a frase: "A realidade é aquilo sobre o que a gente repousa para continuar a sonhar."
Essa frase me saltou aos olhos como a lanterna salvadora que surge em momentos de solitária busca de sentido para algumas intuições. E vinha do campo da psicanálise, mesmo que a fonte esteja na antiga escola de pensamento grega.
Mas minha intuição fustiga meu pensamento e me faz constantemente a mesma pergunta: onde está presente a referência maior para qualquer ato de criação? E ela (minha intuição) insiste: não é no céu, nem no inferno, é aqui, agora, em contato direto com a realidade. É para o Real que apontam nossos olhos; é no embate diário com a realidade que vamos engendrando nossos caminhos. E nossos sonhos.
Coutinho Jorge faz uma distinção interessante entre o mundo da subjetividade e o contato com o Real. O mundo da abstração subjetiva é o mundo daqueles que, buscando se distanciar da realidade, se voltam para dentro de si mesmos, criando uma espécie de isolamento narcisista. Ilustro essa ideia de “isolamento narcisista” usando como exemplo um artista conceitual presente na Bienal de Artes de São Paulo: Nuno Ramos, cuja atual instalação ficou famosa após a pichação que solicitava a liberdade dos três urubus. Urubus que já tomaram seu rumo, após a intervenção do Ibama...
Nuno Ramos, a partir dos anos 90, dedicou-se a instalações de grande porte, como esta dos urubus. E como “Mar Morto”, uma instalação formada por uma canoa e um barco de pesca cobertos de sabão. E como “Fruto Estranho”, dois aviões monomotores presos em árvores e, mais uma vez, revestidos de sabão. “Pra entender um trabalho tão moderno”, diz Zeca Baleiro na canção, nada melhor do que ouvir a opinião do professor da USP, Lorenzo Mammi: “Nuno sempre procura o limite de cada linguagem, até sair dela e cair em outra coisa. Essa tensão permanente faz dele não apenas um grande artista, mas um dos principais pensadores do país.” (!)
Essa arte onde apenas meia dúzia se refestela, me remete ao que Coutinho Jorge diz sobre o sujeito com problemas psicóticos: ele enxerga o mundo a partir de suas neuroses, fazendo com que sua descrição do mundo seja pobre. O máximo que a pessoa imersa dentro das nebulosidades de seu mundo subjetivo consegue, é viver num mundo onde predomina a fantasia, distante do Real.
Mas o Mundo – o Real – é tanto mais atraente quanto mais se deixa revelar em formas diferentes para cada indivíduo, para cada grupo social, para cada período histórico. A Realidade é que é verdadeiramente infinita, por permitir mil modos de enxergá-la e de traduzi-la. No contato com o real, o sujeito pode expressar-se de infinitas maneiras: seja na música, na pintura, na poesia, no teatro, na fotografia, no cinema... A realidade é a potencialidade de tudo acontecer.
Quando o artista cria uma obra de arte, está fornecendo uma parte do real vista por ele, que apresenta à visão do público, com quem cria um diálogo, mesmo que silencioso. É como se a obra do artista fosse uma espécie de janela para ver o mundo, uma "irrupção do real" através da obra de arte.
Essa ideia já deu muito pano pra manga. Desde o começo do século XX, com as pesquisas do pintor russo abstrato Vassili Kandinski, a discussão entre arte figurativa e abstrata foi objeto de longas polêmicas. O pintor russo dizia que o retorno ao mundo da espiritualidade era capaz de produzir uma nova arte. Baseada não na realidade do mundo (que na época era das piores possíveis, com o advento das guerras), mas na subjetividade do indivíduo, bem distante do Real. Era assim que pensava Kandinski. Devia ter suas razões.
Mas tinha suas razões também o imperialismo estadunidense quando decretou, na década de 40, que estava estabelecida a hegemonia e o reinado da arte abstrata, considerada a arte moderna verdadeira. Para contrapor-se aos russos figurativos, a CIA patrocinou as principais exposições de Arte a partir da década de 40, nos EUA e na Europa. Assim como na nossa latina América.
Jackson Pollock – um dos ícones atuais dessa arte – parecia entrar em transe quando jogava baldes de tinta enlouquecidamente sobre suas telas gigantes, torcendo para que os movimentos da força gravitacional fossem coadjuvantes em sua fúria criativa. Era o começo de um tempo em que os pobres pintores figurativos amargaram um exílio dentro de seus ateliês, num ostracismo que dura até hoje. Em menor escala no exterior do que aqui no Brasil, onde a mentalidade colonizada tupiniquim ainda segue o que “bomba” na cultura branca.
A arte conceitual surgiu como co-irmã da arte abstrata, a partir de Marcel Duchamp. Ela considera a Ideia, o Conceito por trás de uma obra artística, como sendo superior ao próprio resultado final. Basta um bom discurso, a obra pode até ser dispensável. Diz o artista João Werner: “A arte conceitual (...) dará primazia não à obra de arte enquanto ser material, mas à concepção desta. Na arte conceitual, o espaço teórico toma frente à práxis.”
Ou seja, usando um termo que fará fremir de êxtase qualquer artista conceitual: não, o ovo não veio antes da galinha, a IDEIA do ovo é que veio antes da IDEIA da galinha! É o cúmulo da abstração! Nem Kandinski conseguiu ir tão longe!
Essas idéias – pasmem! – são ensinadas com todo o rigor da Nova Academia que surge aí, nas escolas e faculdades de artes, da USP à FAAP! Ensina-se essas concepções e convicções fechadas quanto à Arte, com apologias à modernidade pós-moderna, buscando a diminuição da função do ato artístico enquanto transformador do status quo para alimentar a ideia da superioridade do conceito estético: o fazer pelo fazer. Questionar a sociedade e a arte contemporânea, a desfiguração cultural causada pela cultura de massas e a globalização cultural, isto não se faz!
Para concluir, cito o poeta e crítico de arte Afonso Romano de Sant’Anna, que se lançou há alguns anos na peleja crítica dessa concepção de arte. Diz ele: “É preciso tirar as artes do gueto em que a instalaram como se fosse um produto totalmente solto no tempo e no espaço” e fazer “um esforço para afastar o entulho e descortinar outros caminhos”.
O Real é sempre a bússola que aponta mil caminhos outros...