sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Hoje na avenida Paulista eu vi...

Os excluídos. Desenho bico de pena, 2008, Mazé Leite
O BICHO

VI ONTEM um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

(poema de MANUEL BANDEIRA)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

São Paulo sem Macunaíma?

Uma herança maldita deixada pela campanha eleitoral pessedebista: as forças obscuras que antes pareciam desmanteladas, ressurgiram de uma forma assustadora durante a campanha para a presidência da República, espalhando ódio e preconceito. Passada a eleição, eleita a Presidenta Dilma Rousseff, a velha elite paulista, retrógrada e conservadora, agora mostra os dentes tintos da mais repugnante xenofobia. Para isso usa, como emissários, seus filhotes internautas.

Grande Otelo interpretando o personagem Macunaíma
Macunaíma, romance do paulista Mário de Andrade, nasceu junto com o movimento modernista brasileiro, na esteira da famosa Semana de Arte Moderna de 1922 e do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Eram tempos de descoberta de novos paradigmas trazidos pela modernidade e, como conseqüência, eram tempos de descobrir o Brasil, de conhecer o povo, a cultura e a língua brasileira. Do estrangeiro, propunha Oswald, abocanhemos o que trouxerem de bom, como bons antropófagos que somos.

Mas o Macunaima de Mário de Andrade, publicado em 1928, é a síntese do povo brasileiro. Nessa história, Mário revoluciona a escrita literária, trazendo palavras e expressões tiradas diretamente da fala do povo que ele pesquisou de norte a sul. Em Macunaíma, Mário reúne as várias regiões do Brasil, e também une, num só personagem, as três raças brasileiras: negro, índio e branco. Macunaíma nasceu no meio da floresta amazônica, “preto retinto, filho do medo da noite”.

O herói sem nenhum caráter, como diz o subtítulo do livro, vem para São Paulo atrás de sua pedra (um talismã conhecido da cultura indígena), sua Muiraquitã, que foi roubada pelo gigante comedor de gente Venceslau Pietro Pietra que morava aonde? “No fim da Rua Maranhão olhando para a Noruega do Pacaembu”, ou melhor, em Higienópolis, mesma rua, mesmo bairro de um certo FHC pessedebista. Coincidência?

Como o gigante-ladrão morava em São Paulo, “cidade macota do igarapé Tietê”, Macunaíma e seus irmãos descem o rio Araguaia e vão para a metrópole na tentativa de recuperar sua Muiraquitã. A maior parte do romance se passa em São Paulo, onde acontecem diversos embates entre Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra. O autor, nessas refregas entre os dois, satiriza alguns aspectos da vida paulistana provinciana. Ao final, Macunaíma mata o gigante e recupera seu amuleto, partindo de volta para o Uraricoera, seu lugar de origem. O defunto Venceslau é um dos únicos do romance que não se transforma numa estrela cadente no céu...

Macunaíma é a síntese do que é ser brasileiro, essa mistura de raças, essa heterogeneidade cultural que é nossa riqueza. É o negro, o índio e o branco convivendo em paz e gerando essa linda gente bronzeada e plena de valor, lembrando o samba de Assis Valente.

Pois bem. Macunaíma – o povo brasileiro – também mora em São Paulo. Mas há uma certa categoria de gente que também mora em São Paulo que não suporta o diferente, que prefere a monotonia da monocromia cultural e racial. Essa gente não suporta sentar-se ao lado de Macunaíma em seus restaurantes e em suas viagens aéreas. Eles querem que Macunaíma volte definitivamente para o Uraricoera, lá no fim do mundo, onde vivem outros macunaímas pobres, mulatos, injustiçados pelo sistema durante séculos, que não lhes tem dado direitos básicos fundamentais.

Só que a elite de Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente e ladrão do que há de mais essencial na cultura brasileira, essa gente que mora nos Jardins e em Higienópolis não consegue admitir que um Macunaíma-Lula-Operário tenha sido por oito anos Presidente de todos os Macunaímas do Brasil! E até da elite! Elite essa muito mal-agradecida que ganhou ainda mais dinheiro nesses últimos oito anos! Esse gigante-anão, que é essa minoria de paulistas com um olho sempre voltado para 1932, também não admite que uma cunhã (mulher, na língua de Macunaíma) tenha sido eleita para ser a Presidenta de todas as cunhãs brasileiras, pobres e ricas, e de todos os Macunaímas e Venceslau Pietros Pietras do Brasil! Sim, porque Dilma Rousseff disse que vai governar para TODOS os brasileiros!

E querem – eles, essa minoria de retrógrados – expulsar Macunaíma de São Paulo!

Esta semana, pós-eleição de Dilma, os filhotes dessa elite vomitaram em seus twits e posts seu ódio de classe e sua repugnante xenofobia: querem que os nordestinos saiam de São Paulo, querem São Paulo higienizada (né, Higienópolis?) de todos os “forasteiros”. Só que forasteiros são exatamente eles! Essa gente que odeia nordestinos, é ela que está fora de lugar, porque aqui em São Paulo, a imensa maioria dos paulistas são, como todos, brasileiros acolhedores, solidários, fraternos. São pessoas de todas as origens, cores, sotaques, culturas. São Macunaíma, a síntese da nossa cultura, a nossa heterogeneidade, a nossa riqueza!

Mas a mente mesquinha dessa gente medíocre que quer São Paulo para si, não faz ideia do que seria esta imensa cidade sem a mistura encantadora dos mil sotaques que se ouvem nas avenidas. São Paulo, a imensa realidade que cai sobre cada migrante que aqui chega, parece amedrontar quando se mostra do “avesso do avesso do avesso do avesso”.

Mas é aqui que se esconde a Muiraquitã de todos os Macunaímas, brasileiros ou estrangeiros. Nesta Babel de línguas e culturas, São Paulo é mais luz, é mais cor, é mais vida. Sem os nordestinos, as tonalidades de cinza dos céus deste lugar pesariam ainda mais sobre a alma dos que aqui habitam. Tudo seria mais triste sem o canto, a dança, a poesia, o trejeito, o molejo, a fala mansa, o coração quente, o trabalho e o abraço imenso do povo do nordeste que por aqui se aventura e que só deixou seu “cariri no último pau de arara”!

Para as gralhas xenófobas que estrilam seus gritos de morte, faço um convite nordestino:

“Batucada, reuni vossos valores
Pastorinhas e cantores
Expressão que não tem par, ó meu Brasil!
Esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Xilogravura de J. Borges


sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Carlos Drummond: O presente é tão grande!

Em momentos de sentimentos sombrios aflorando na esteira da mediocridade conservadora, um mineiro poeta nos convida: "NÃO NOS AFASTEMOS MUITO, VAMOS DE MÃOS DADAS! Poesia e Arte é sempre o melhor antídoto para maus sentimentos.




Mãos dadas
Carlos Drumond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.


O tempo é a minha matéria. O tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Poema de Maiakóvski

Por do sol, pintura de Monet
Algum dia você poderia?
poema de Maiakóvski

Manchei o mapa cotidiano
jogando-lhe a tinta de um frasco
e mostrei oblíquas num prato
as maçãs do rosto do oceano.


Nas escamas de um peixe de estanho
li lábios novos chamando.


E você? Poderia
algum dia
por seu turno tocar um noturno
louco na flauta dos esgotos?


(Maiakóvski - 1913 - tradução de Haroldo de Campos)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A Realidade e os urubus conceituais

“Meu conceito parece à primeira vista
um barrococó figurativo neo-expressionista
com pitadas de art-nouveau pós-surrealista
calcado na revalorização da natureza morta...”
(música “Bienal”, Zeca Baleiro)

A Bienal Internacional de Artes de São Paulo está em cartaz até dezembro. Excelente momento para algumas reflexões e questionamentos acerca da velha contenda entre arte figurativa e arte conceitual.

Um dia desses, lendo um texto do psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge, cujo título me chamou a atenção (“Despertar para o Real”), pude observar que pode existir uma confluência muito grande entre linhas de pensamento aparentemente distantes, quando estas direcionam o foco de suas pesquisas em uma mesma direção: a essência do Real.

Logo de cara, o autor cita uma frase do psicanalista francês Jacques Lacan, que pode ser o mote inicial para uma conversa sobre arte contemporânea. Eis a frase: "A realidade é aquilo sobre o que a gente repousa para continuar a sonhar."

Essa frase me saltou aos olhos como a lanterna salvadora que surge em momentos de solitária busca de sentido para algumas intuições. E vinha do campo da psicanálise, mesmo que a fonte esteja na antiga escola de pensamento grega.

Mas minha intuição fustiga meu pensamento e me faz constantemente a mesma pergunta: onde está presente a referência maior para qualquer ato de criação? E ela (minha intuição) insiste: não é no céu, nem no inferno, é aqui, agora, em contato direto com a realidade. É para o Real que apontam nossos olhos; é no embate diário com a realidade que vamos engendrando nossos caminhos. E nossos sonhos.

Coutinho Jorge faz uma distinção interessante entre o mundo da subjetividade e o contato com o Real. O mundo da abstração subjetiva é o mundo daqueles que, buscando se distanciar da realidade, se voltam para dentro de si mesmos, criando uma espécie de isolamento narcisista. Ilustro essa ideia de “isolamento narcisista” usando como exemplo um artista conceitual presente na Bienal de Artes de São Paulo: Nuno Ramos, cuja atual instalação ficou famosa após a pichação que solicitava a liberdade dos três urubus. Urubus que já tomaram seu rumo, após a intervenção do Ibama...

Nuno Ramos, a partir dos anos 90, dedicou-se a instalações de grande porte, como esta dos urubus. E como “Mar Morto”, uma instalação formada por uma canoa e um barco de pesca cobertos de sabão. E como “Fruto Estranho”, dois aviões monomotores presos em árvores e, mais uma vez, revestidos de sabão. “Pra entender um trabalho tão moderno”, diz Zeca Baleiro na canção, nada melhor do que ouvir a opinião do professor da USP, Lorenzo Mammi: “Nuno sempre procura o limite de cada linguagem, até sair dela e cair em outra coisa. Essa tensão permanente faz dele não apenas um grande artista, mas um dos principais pensadores do país.” (!)

Essa arte onde apenas meia dúzia se refestela, me remete ao que Coutinho Jorge diz sobre o sujeito com problemas psicóticos: ele enxerga o mundo a partir de suas neuroses, fazendo com que sua descrição do mundo seja pobre. O máximo que a pessoa imersa dentro das nebulosidades de seu mundo subjetivo consegue, é viver num mundo onde predomina a fantasia, distante do Real.

Mas o Mundo – o Real – é tanto mais atraente quanto mais se deixa revelar em formas diferentes para cada indivíduo, para cada grupo social, para cada período histórico. A Realidade é que é verdadeiramente infinita, por permitir mil modos de enxergá-la e de traduzi-la. No contato com o real, o sujeito pode expressar-se de infinitas maneiras: seja na música, na pintura, na poesia, no teatro, na fotografia, no cinema... A realidade é a potencialidade de tudo acontecer.

Quando o artista cria uma obra de arte, está fornecendo uma parte do real vista por ele, que apresenta à visão do público, com quem cria um diálogo, mesmo que silencioso. É como se a obra do artista fosse uma espécie de janela para ver o mundo, uma "irrupção do real" através da obra de arte.

Essa ideia já deu muito pano pra manga. Desde o começo do século XX, com as pesquisas do pintor russo abstrato Vassili Kandinski, a discussão entre arte figurativa e abstrata foi objeto de longas polêmicas. O pintor russo dizia que o retorno ao mundo da espiritualidade era capaz de produzir uma nova arte. Baseada não na realidade do mundo (que na época era das piores possíveis, com o advento das guerras), mas na subjetividade do indivíduo, bem distante do Real. Era assim que pensava Kandinski. Devia ter suas razões.

Mas tinha suas razões também o imperialismo estadunidense quando decretou, na década de 40, que estava estabelecida a hegemonia e o reinado da arte abstrata, considerada a arte moderna verdadeira. Para contrapor-se aos russos figurativos, a CIA patrocinou as principais exposições de Arte a partir da década de 40, nos EUA e na Europa. Assim como na nossa latina América.

Jackson Pollock – um dos ícones atuais dessa arte – parecia entrar em transe quando jogava baldes de tinta enlouquecidamente sobre suas telas gigantes, torcendo para que os movimentos da força gravitacional fossem coadjuvantes em sua fúria criativa. Era o começo de um tempo em que os pobres pintores figurativos amargaram um exílio dentro de seus ateliês, num ostracismo que dura até hoje. Em menor escala no exterior do que aqui no Brasil, onde a mentalidade colonizada tupiniquim ainda segue o que “bomba” na cultura branca.

A arte conceitual surgiu como co-irmã da arte abstrata, a partir de Marcel Duchamp. Ela considera a Ideia, o Conceito por trás de uma obra artística, como sendo superior ao próprio resultado final. Basta um bom discurso, a obra pode até ser dispensável. Diz o artista João Werner: A arte conceitual (...) dará primazia não à obra de arte enquanto ser material, mas à concepção desta. Na arte conceitual, o espaço teórico toma frente à práxis.”

Ou seja, usando um termo que fará fremir de êxtase qualquer artista conceitual: não, o ovo não veio antes da galinha, a IDEIA do ovo é que veio antes da IDEIA da galinha! É o cúmulo da abstração! Nem Kandinski conseguiu ir tão longe!

Essas idéias – pasmem! – são ensinadas com todo o rigor da Nova Academia que surge aí, nas escolas e faculdades de artes, da USP à FAAP! Ensina-se essas concepções e convicções fechadas quanto à Arte, com apologias à modernidade pós-moderna, buscando a diminuição da função do ato artístico enquanto transformador do status quo para alimentar a ideia da superioridade do conceito estético: o fazer pelo fazer. Questionar a sociedade e a arte contemporânea, a desfiguração cultural causada pela cultura de massas e a globalização cultural, isto não se faz!

Para concluir, cito o poeta e crítico de arte Afonso Romano de Sant’Anna, que se lançou há alguns anos na peleja crítica dessa concepção de arte. Diz ele: “É preciso tirar as artes do gueto em que a instalaram como se fosse um produto totalmente solto no tempo e no espaço” e fazer “um esforço para afastar o entulho e descortinar outros caminhos”.

O Real é sempre a bússola que aponta mil caminhos outros...