quarta-feira, 16 de março de 2011

A transgressão, na Arte, virou norma?

Affonso Romano de Sant’Anna, poeta e crítico de arte, fez uma palestra no dia 25 de fevereiro, na Escola de Magistrados da Justiça Federal de São Paulo, sobre as transgressões atuais da chamada Arte Contemporânea. No texto abaixo, uma síntese das idéias defendidas por ele, com as quais – em muito – comungo.
Primeiro, uma historinha ilustrativa...
A Fonte, Marcel Duchamp
Em 1917 houve em Nova Iorque uma exposição de vanguarda para a qual o artista francês Marcel Duchamp mandou um urinol de parede, sob o pseudônimo de R.Mutt. O júri dessa exposição ficou perdido sobre o que fazer com aquele urinol e, numa reunião onde estava presente o agente de Duchamp, o presidente do júri, George Bellows, questionou: “- Nós não podemos expor este urinol, porque este urinol é apenas aquilo que ele é”. Ao que o agente de Duchamp disse: “- Mas esse urinol, é mais do que um urinol, é uma ideia.” O presidente do júri respondeu: “Você quer dizer que se alguém enviar esterco de cavalo colado numa tela, nós vamos ter que aceitar?” O agente de Duchamp respondeu que infelizmente achava que sim.
Desde essa época, iniciando-se pelo próprio Duchamp, vem se falando que a Arte está morta, assim como o autor. Na década de 1980 Francis Fukuyama, pensador norte-americano afirmou, dentro da onda neoliberal, que a História também tinha morrido. Falou-se muito de morte no século XX, sem esquecer do banho de sangue provocado por duas guerras mortíferas. Um século onde a morte fez presença tão marcante, precisa ser analisado. Nesse sentido, diz Affonso, “habitamos um cemitério onde a teoria perambulou como um zumbi entre o sentido e o não sentido” e teorizar sobre a morte de certas categorias, e mesmo de ideias, parece que explica um pouco o caos contemporâneo.
Nesse contexto, dentro da Arte Contemporânea (que vamos chamar de AC neste texto) todos seriam artistas e qualquer coisa pode ser considerada arte. Tendo como base dois de seus livros, Desconstruir Duchamp e O enigma vazio Affonso Romano desnuda a situação atual das artes. Segundo ele, a AC tornou-se tão complexa que necessita ser avaliada através da intervenção de outras disciplinas – que não só a Estética – como a Antropologia e a Psicanálise, para tentar explicar o que é essa produção que segue à risca o que foi prescrito por Duchamp, um dos intocáveis ícones pós-modernos.
Como artista e como escritor que desde a juventude se envolveu com os movimentos de vanguarda dos anos 50 e 60 e, portanto, conhece por dentro o mecanismo da constituição desses movimentos, Affonso Romano, também como um teórico, tenta desvendar esses enigmas que cercam a questão da criação artística. Nesse sentido, depara-se com um certo tabu atual sobre se fazer uma revisão da história da Arte do século XX, apesar de atravessarmos uma situação histórica que deveria interessar a todos.
As apregoadas morte da arte e do autor são dois sofismas contemporâneos: se não existe arte não existe autor. Mas há um paradoxo tragicômico: por um lado a AC vive de matar-se a si mesma e, por outro, demonstra uma vitalidade econômica assombrosa, pois uma arte que se mata o tempo todo anda rendendo muito nas Bolsas de Valores!
No plano da autoria – continua Affonso Romano – embora alguns digam que o autor está morto, (esta afirmativa deve-se sobretudo a dois autores: Michel Foucault e Roland Barthes – dois autores dizendo que o autor está morto), pode-se dizer que nunca houve um festival de narcisismos como nesta época da chamada sociedade do espetáculo. “Aí os mortos – vivíssimos! – disputam seus 15 minutos de glória”, diz o poeta, que acrescenta: “estamos num cemitério originalíssimo, onde os artistas, embora zumbis, estão mais vivos do que nunca!”
Ele levanta também uma questão interessante sobre os famosos Manifestos lançados desde os princípios da Arte Moderna, que adiantavam que tipo de produto estava sendo colocado na praça. Deles, a arte do século XX caminhou radicalmente em outra direção: constituiu a Arte Conceitual, privilegiando o conceito em relação à obra, até chegar o momento, muito atual, de que o Conceito passou a dispensar a obra! “Como se a bula dispensasse o remédio”, reflete ele. A ideia da obra passou a ser a própria obra, instituiu-se que qualquer conceito lançado pelo artista é digno de ser observado e discutido, como se qualquer conceito fosse autosustentável ou tivesse uma dose de genialidade implícita.
Para empreender uma análise de todo esse processo, basta fazer o que ele chama de deslocamento de conceitos. Ele observa que todas as grandes transformações teóricas da história e da cultura foram deslocamentos de conceitos, como em Copérnico, Kepler, Einstein, Freud e Marx, pensadores que deslocaram conceitos, deslocaram o conhecimento e a perspectiva, instalando novos paradigmas.
Affonso Romano de Sant'Anna
Affonso Romano de Sant’Anna, refletindo sobre o urinol de Duchamp destaca um silogismo intrigante: se um urinol, como qualquer coisa, é obra de arte, então cocô de cavalo, como qualquer coisa, é obra de arte, e o mínimo que esse sofisma faz é acabar com a idéia de diferença e de identidade, o que traz conseqüências terríveis. Prega-se a mesmice. Hoje tanto na Arte quanto no Direito, há uma glamourização do culpado. Se Duchamp é o grande responsável pela morte da Arte (os livros de história da arte dizem isso) nunca o autor foi tão glamourizado, nunca se escreveram tantos livros interpretativos e elogiosos da sua obra. E assim como Duchamp, Andy Warhol e Joseph Beuys, quanto mais radical e mais “assassino” da arte for o artista, mais glorificado passa a ser.
A transgressão parece ter se tornado norma em nossa sociedade, entre os artistas, como se pode ver nas últimas Bienais de São Paulo. Mas quando um grupo de grafiteiros quiseram preencher o “vazio” da 28ª. Bienal, acabaram sendo presos a pedido dos organizadores da própria Bienal. De repente, diz Affonso, a Bienal não é mais um assunto de artista, mas um assunto de justiça!
Essa ideologia do tempo atual precisa de uma profunda revisão e de um profundo deslocamento, pois o pensamento pós-moderno envolucra tudo o que está acontecendo com a AC e impõe alguns comportamentos, o que leva à pergunta que ele fez em seu último artigo sobre a 29a Bienal de 2010: “é o artista um cidadão acima de qualquer suspeita?” E acrescenta: “o artista pode se comportar como um bebezão, que estraçalha brinquedos, que interrompe o que seja para chamar atenção?”
Há um traço da pós-modernidade que cria paradoxos que confundem a todos. O poeta cita um exemplo de um episódio recente da guerra de traficantes no Rio, quando um matou o outro e colocou sobre o cadáver da vítima um cartaz escrito assim: O lado certo da vida errada. “Isto é a síntese da pós-modernidade”, diz Affonso, e a AC nada mais é do que o sintoma de que algo mais grave está acontecendo em nossa época e que exige reflexão. A sociedade atual diz o tempo todo: transgrida! E aí surge o paradoxo: se a transgressão virou uma norma, não transgredir passou a ser a exceção. Se se diz atualmente “seja livre”, esta afirmativa é uma condenação.
O século XX trouxe grandes alterações nas formas da vida social mas nos jogou uma série de paradoxos que ainda não conseguimos resolver. E isso implica fazer uma profunda revisão na Arte de hoje, mesmo que seja para destronar os ícones que o pensamento atual protege como a uma religião, como Duchamp, por exemplo. Precisamos de um novo deslocamento teórico, portanto. E Affonso Romano convida a uma visão crítica, pois “só podemos avançar se tivermos nitidez sobre o que está acontecendo atualmente com o pensamento dominante, inclusive na AC”, criando um novo patamar onde possamos não só questionar a arte do nosso tempo quanto a ideologia vigente.
A maneira de resolver esse conflito é pensar isso pelo deslocamento, pela tentativa de um novo enfoque que agora privilegie, não mais a morte, mas a vida.

terça-feira, 15 de março de 2011

Lápis grafite sobre papel Fabriano

Foram muitos recomeços na minha vida! Há uns três anos retomei - de novo! - meus estudos de desenhos, à mão, largados por um tempo em favor do desenho digital, na tablet, para meu trabalho de designer gráfica... Cansei do computador como máquina para desenhar! Ele não chega nem aos pés do simples lápis e papel! Até porque papel há de monte (ainda) com texturas diferentes, que dão resultados diferentes. 

Atualmente tenho feito muitos estudos com carvão. Há seis meses, mais ou menos, apanhando muito, mas evoluindo. Pelo menos já domino melhor o carvão, elemento fugidio por natureza... Mas carrego comigo, quase o tempo todo, meu sketchbook e minha caixinha de lápis grafite, esfuminho e lápis-borracha. Para as emergências da vida! Desenhar o mundo inteiro, era a minha grande vontade!

Destes daqui debaixo, dois são feitos sobre fotografias: Cartier-Bresson e um sambista que não lembro o nome. O terceiro foi baseado num desenho de um artista russo do século XIX, cujo nome é impossível de saber. O papel é aquele famoso - e caro - Fabriano. Tem uma textura forte, bonita e dá resultado bem diferente do simples papel sulfite. Dá textura ao desenho. Tudo feito com lápis grafite.



sexta-feira, 11 de março de 2011

Cinema e Arte no Baixa Augusta

Um grupo de artistas: cineclubistas, documentaristas, escritores, poetas, cantores, músicos e artistas plásticos se reunem toda quinta-feira na sede do Cineclube Baixa Augusta, na Rua Augusta, São Paulo. Usando como pano de fundo filmes históricos do cinema brasileiro, discutem experiências, pontos de vista, cultura, história, literatura, belas artes, poesia. Numa quinta-feira, assiste-se a um filme. Na quinta seguinte, encontram-se para conversar sobre o filme.

Começamos com o filme O ÉBRIO, clássico filme brasileiro de 1946, da diretora Gilda de Abreu, com Vicente Celestino no papel principal. Ele vive o personagem Gilberto SIlva, jovem do interior que vem à cidade grande e sofre todos os obstáculos possíveis até se formar em medicina. Torna-se rico e cantor famoso, além de médico, e acaba sendo traído pelos parentes e pela esposa. Desiludido, torna-se um bêbado mendigo, vagando pelas ruas da cidade.

Para ilustrar a conversa desta quinta-feira, 10 de março, brinquei um pouco com desenhos à carvão com a figura de Vicente Celestino em "O Ébrio." Assim como meu amigo João Pinheiro, ilustrador, começou a fazer uma história em quadrinhos, cuja primeira página pode ser vista aqui.

carvão sobre papel canson, 2011
carvão sobre papel canson, 2011

carvão sobre papel canson, 2011
carvão sobre papel canson, 2011
--------------------------------------------------------------
Programação deste semestre:

quinta-feira, 10 de março de 2011

Sonhos femininos do mês de março

Hendrickje adormecida (1655)
REMBRANDT
Pincel com tinta marrom - 20,3 x 24,6 cm
Museu Britânico  de Londres (Reino Unido)
Havia um sonho povoando a noite inquieta, enquanto seu corpo rolava entre fronhas e lençóis de uma imensa cama. Um sonho onde algo se partia ao meio: meio carne, meio alma. Dois pedaços, um pra cada lado se encontravam separados nas sinuosidades do espaço-tempo curvo, voando à velocidade ultraluminosa, numa perene transmutação de matéria em energia e em matéria novamente. Sem forma. Sem nome. Sem significado. Por que haveria de significar algo?

Ventos, como espadas afiadas, trespassavam o rosto sem forma, sem cara. Deformando-o, o vento cósmico. 

Naquela longínqua solidão de frios graus negativos, neutrinos rasgam tecidos, enquanto quarks recompõem nêutrons, e elétrons apaixonados zarpam sedentos da carga elétrica de prótons... Vagavam, algo partido, separados no espaço, meio tudo, meio nada,  multidimensionalmente caóticos, alma e corpo. 

Os pensamentos eram vagos, incertos, entre as fronhas brancas de linho, onde um pequeno inseto escuro pousa... por um segundo... e revoa.

domingo, 6 de março de 2011

O Pierrot apaixonado

Dias de carnaval, dias de alegria no Brasil. Dias de esquecer tudo o que não seja, e não dê, prazer. Dias em que milhares de Pierrots, Arlequins e Colombinas se espalham em todos os sotaques brasileiros, ocupando as ruas, como uma grande, imensa Comédia.

Pierrot et Arlequin, Paul Cézanne, 1888
Mas o Pierrot e o Arlequim, imersos na folia carnavalesca, nem sempre estão esfuziantes de alegria, como mostra a música mais triste de todas as músicas do carnaval (a de Zé Keti): “Oh quanto riso, oh quanta alegria, mais de mil palhaços no salão, Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão.” E mesmo na música de Noel Rosa, “O Pierrot apaixonado que vivia só cantando, por causa de uma colombina acabou chorando, acabou chorando...”

Mas de onde vem essas figuras que habitam nosso carnaval, misturadas a tantas outras? E por que elas carregam essa dupla face, a de um palhaço triste e a de um malandro inquieto? Qual a imensa tristeza presente atrás das máscaras da alegria do carnaval?

No século XVI na Itália, trupes de artistas saiam pelas ruas, entretendo as pessoas, contando suas estórias, fazendo rir, fazendo chorar. A Commedia Dell”Arte italiana era, no começo, caracterizada pela sátira social e ironizava a vida e os costumes das classes dominantes de então. As peças apresentadas eram improvisadas na hora, como o são hoje os repentes e o rap. Ao chegarem nas cidades, se apresentavam em suas carroças ou em palcos improvisados. Mas tinham personagens mais ou menos fixos, que cumpriam certos papeis, como o Pierrot, o Arlequim e a Colombina e seguiam mais ou menos o mesmo roteiro, inicialmente chamado de “canovaccio”. Alguns atores viviam o mesmo papel durante toda a vida.

As representações teatrais das trupes da Commedia dell’Arte sempre ridicularizavam os poderosos, desde reis e rainhas, militares, padres, negociantes e nobres em geral. O esquema de criação era coletivo, havia um roteiro mais ou menos fixo, mas os atores tinham liberdade de improvisação. Muitas dessas trupes carregavam consigo uma pintura bem grande, com uma rua, casa ou palácio, pintados, que servia de cenário.

Pierrot, Pablo Picasso
O nome italiano do Pierrot era Pedrolino, que virou Pierrot na França do século XIX. Ele vestia roupas brancas feitas de sacos de farinha e tinha o rosto pintado de branco. Hoje ele é conhecido com o rosto todo branco e uma lágrima pendendo de um dos olhos. Vivia sofrendo de amor pela Colombina, que amava Arlequim e com isso era ele a principal vítima das piadas dos atores em cena. Pierrot é o “pai” dos palhaços de circo.

Arlequim, assim como Pierrot, era servo de Pantaleão, o mercador de Veneza (que virou uma peça de Shakespeare). Mas Arlequim era um malandro esperto, preguiçoso e insolente, que já entrava em cena saltitando e fazendo movimentos acrobáticos. Era também um debochado e adorava criar confusões com os outros personagens. Usava uma roupa feita inicialmente de muitos remendos coloridos, em losango, e tinha o rosto sujo de barro.

A Colombina, também empregada da Corte de Pantaleão, surgia vestida de branco e era disputada pelo amor do Pierrot e do Arlequim. Mas ela, apaixonada pelo Arlequim, cantava e dançava graciosamente para encantá-lo. O Pierrot, triste e tímido, jazia ao lado, sofrendo o seu amor.

Dos três personagens da Commedia dell’Arte, o Arlequim seria o mais “brasileiro”. Brincalhão, divertido e malandro, ele inspirou os blocos carnavalescos, especialmente em Pernambuco, de onde trago lembranças dos carnavais da minha infância, quando as figuras fantasiadas – os papangus – iam de casa em casa, passando pela minha, pedindo dinheiro ou comida e sempre aprontando alguma. Esse duplo caráter dessas figuras carnavalescas (alegres-tristes) sempre me trouxe um misto de medo e atração.

Mas também lembramos do circo e do palhaço em nossos carnavais. Irmão da Commedia dell’Arte, o circo – como o conhecemos hoje – surgiu na Inglaterra, no final do século XVIII. E com ele, o Palhaço (Clown), esse personagem irmão do Pierrot e do Arlequim, com o rosto maquiado, roupas excêntricas e criando situações cômicas, além de comentários engraçados, que o aproximam do público. As improvisações do Clown no circo, como as do Pierrot e do Arlequim, se realizam ali sob os olhos e a participação do público, criando um espetáculo que, mesmo que se repita a cada apresentação, se torna único no momento do espetáculo.

Essas representações populares que vem desde a Commedia dell’Arte sempre são o palco onde acontecem as narrativas das peripécias da vida humana. Com suas alegrias e seus dramas, elas surgem como a grande representação da multidão, como no carnaval brasileiro. É o grande palco onde é apresentada a comédia humana, como dizia o poeta francês Théophile Gautier. Criação de todos, criação de toda uma cultura, o Carnaval, como o Circo e como as representações teatrais de rua, são a grande forma de Creative Commons do povo. Pertence a todos, é Bem e Riqueza de todos.


------------------
Publico agora a crônica do poeta AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA, que enriquece muito este post. Publicação autorizada generosamente pelo próprio autor.



DE ONDE VEM O ARLEQUIM?


Affonso Romano de Sant’Anna

        Aí pelas ruas talvez exista ainda alguém fantasiado de Arlequim, como ocorria nos carnavais há algumas décadas.   Mas é raro. Assim como o Pierrô e a Colombina, o Arlequim foi muito popular na virada do século. Aliás, não só esse  trio, mas toda uma família de saltimbancos, que havia irrompido nos palcos do século XVI. Mas por uma série de fatores, a tematização desses tipos foi muito constante na virada do século XIX para o século XX.
Família de saltimbancos, Pablo Picasso
        
Em 1892 Leon Cavallo cristalizou o conflito do triângulo amoroso em “Os palhaços”. Em 1905 Picasso pinta “Família de saltimbancos” e outros  quadros com esses personagens. Degas e Cèzanne estão entre muitos que também pintaram seu “Arlequim”. A própria literatura brasileira  vem, em 1919, com “Carnaval” de Manuel Bandeira, em 1920, com “Máscaras” de Menotti del Picchia e “Arlequinada” de Martins Fontes. Mário de Andrade, por sua vez,   tematizou o carnaval sob várias formas e definia-se como uma criatura arlequinal.
        
Mas quem vê o Arlequim tão sestroso, folgazão e brejeiro (como se dizia), mal pode imaginar que num tempo remoto ele foi o avesso disto tudo. Exatamente. Originalmente, em vez de um sedutor, foi um violador. Em vez de amante, um estuprador. Em vez de um dançarino, um guerreiro bárbaro.


Por isto, o estudo de certas imagens e palavras mostram como o certo e o avesso vivem se intercambiando. Preocupado com essas ambivalências, Freud já havia anotado que a etimologia de “branco” e “preto” parecia ser a mesma, alertando para o fato de que o radical do francês “blanche”  e do inglês “black” é o mesmo.


Arlequim, Hallequim. O nome é quase idêntico. Mas o significado diametralmente oposto.


Quem vê no palco ou no carnaval o saltitante e sedutor Arlequim nem percebe que ele é uma variante moderna de um tipo selvagem que comandava uma horda de homens-bestas. Hallequim é uma deformação onomástica de Harila-King – rei dos exércitos. Tinha na mão enorme maça ou tacape. Comandava um feralis-exércitus (exército de mortos). Pertencia à mesma estirpe de figuras primitivas como o lendário rei Frotho, da mitologia dinamarquesa, que invadia aldeias, violentava mulheres e humilhava barbaramente os vencidos. Esses guerreiros exibiam a petulância (agressividade sexual), lascívia (exigências sexuais) e se consideravam conubernales (companheiros da tenda do rei). Vestiam-se de peles selvagens assemelhando-se aos ursos e não cortavam os cabelos até que matassem alguém. Também não tinham propriedades pessoais e viviam se deslocando atrás de presas, como centauros seqüestradores de mulheres.


Mito? Realidade?


Esse exército não era só uma crença. Era muito bem representado por máscaras. Temos uma prova disto, uma descrição que data de 1100, vinda da Normandia, que cita como rei da tropa selvagem um certo Herlechinus, que viria de Harilaking anglo-normando, rei da família Herlechini, que não é senão o Arlequim. Nosso Arlequim da commedia dell`arte foi, na origem, o sublime rei de um exército de fantasmas. Pode-se reconhecer esta forma primitiva do Arlequim em muitas personagens que existem no carnaval, graças à fantasia que usam. A partir de 1470 esta fantasia é descrita como despedaçada, cheia de rasgões, com pequenos pedaços de tecidos coloridos.


Um estudo semiológico das metamorfoses do personagem, sua passagem da horda primitiva para o palco da comédia poderia ser feita mais detalhadamente. Não só a transformação da roupa esfarrapada em estilizados losangos coloridos, mas a conversão do porrete original em espada fálica. Igualmente, a figura original do Hallequim está sempre num cenário onde há cavalos e se inscreve no mito dos centauros. Esses cavalos, carroças, carruagens encaminham o tema do seqüestro, presente nas diversas peças e gravuras que tratam do Arlequim moderno. O que  era grotesco atinge não apenas o cômico, mas até o sublime através da estilização, em peças como O Triunfo de Arlequim, Arlequim Imperador da Lua e Arlequim Cavaleiro do Sol. (séc. XVIII).


O  bárbaro e primitivo Hallequim surgia nas vilas e aldeias em meio a formidável charivari. Sobretudo no solstício de inverno (entre o Natal e a Epifania). Ele está registrado num texto do séc. XIV (Roman de Fauvel) que, em forma de poesia, narra o casamento de um cavalo e uma mulher.


E por aí teriamos muito ainda a discorrer. A moderna teoria da carnavalização, que amplia o que em 1927 foi lançado por Mikhail  Bakhtin, tem notável contribuição a dar não só na problematização e recuperação desse persoangem, mostrando como o imaginário civiliza as imagens arcaicas. Um estudo  moderno do Arlequim não pode desvinculá-lo da figura daquilo que em antropologia se chama de “trickster”- aquele mágico e malandro das tribos, que é tão bem encarnado no “Macunaíma” de Mário de Andrade.


E assim como a imagem do Arlequim se enriquece com a recuperação de seu metamorfoseado avesso histórico, também as figura do Pierrô e da Colombina, vão deixando de ser apenas fantasias episódicas e superficiais de uma festa carnavalesca, para serem estruturas simbólicas de nosso inconsciente e de nossos dramas sociais.


Tomemos um exemplo, entre tantos, na literatura brasileira: “Dona Flor e seus dois maridos” de Jorge Amado, é um romance que pode ser lido nessa clave. Vadinho é o Arlequim: dançarino, boêmio, brigão, don Juan, sedutor, jogador, vivendo aleatoriamente o prazer presente. Morre dançando no carnaval, fantasiado de mulher. Já Teodoro é o Pierrô: é o lugar da ordem, do prazer com horário certo, um burocrata no sexo e nos negócios. Porém, Dona Flor, envolvida por esses dois amores contraditórios, resolve imaginariamente o conflito que a Colombina tradicionalmente nunca pôde resolver. Ela fica com os dois. Trabalha pela inclusão imaginária, vivenciando uma verdade intemporal, pois as criaturas humanas são elas e suas contradições.


As máscaras nos falam das ambiguidades e  a teoria da carnavalização ajuda a resgatar enigmas de ontem e a aclarar comportamentos individuais e sociais hoje.