sábado, 3 de abril de 2010

Anita, a mulher que modernizou as artes brasileiras

“Não posso falar pelos meus
companheiros de então, mas eu,

pessoalmente, devo a revelação do novo
e a convicção da revolta a ela
e à força de seus quadros”.
(Mário de Andrade)



A obra de Anita Catarina Malfatti, uma das pintoras brasileiras de maior destaque, está tendo uma retrospectiva, em exposição do Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. A mostra, que foi inaugurada no dia 23 de fevereiro e permanecerá até 24 de abril de 2010, apresenta 120 obras de 70 colecionadores particulares e de museus.

Anita Malfatti, nascida em São Paulo no dia 2 de dezembro de 1889, era filha do italiano Samuel Malfatti e de Betty Krug, norte-americana de origem alemã. Uma característica de sua personalidade era enfrentar os próprios medos e limites, desafiando sua própria fragilidade. A prova disso é que fez um esforço para aprender a desenhar com a mão esquerda, por causa da distrofia de que sofria na mão direita. Além disso, ela fez viagens ao exterior, em um tempo onde não era comum uma moça viajar sozinha pelo mundo. Por volta de 1912, ela foi para a Alemanha, patrocinada por um de seus tios maternos, que incentivava seu estudo de pintura. Depois de passar cerca de quatro anos entre Berlim e Dresden, Anita voltou ao Brasil, para depois viajar em mais uma temporada de estudos, desta vez aos Estados Unidos.

Anita Malfatti com 23 anos
Por que Alemanha e Estados Unidos e não Paris, o destino desejado por qualquer artista plástico de sua época? Em entrevista à professora e estudiosa de Arte, Aracy Amaral, a irmã de Anita, Georgina Malfatti, explicou que isso se deu porque sua família vinha desses países, e essas línguas lhes eram familiares.

De sua experiência na Alemanha, disse Anita: “Procurei o homem de todas as cores, Lowis Corinth, e dentro de uma semana comecei a trabalhar na aula desse professor. (…) Não me lembro das comidas, dos cansaços, das viagens desse tempo, só da alegria de descobrir cores. Fiz uma viagem para o sul da Alemanha para ver a primeira grande exposição dos pós-impressionistas. Pissarro, Monet, Sisley, Picasso, o 'douanier' Rousseau, Gauguin e Van Gogh. Vi também Cézanne e Renoir”...

Voltou ao Brasil cheia de entusiasmo com o expressionismo alemão, mas não encontrou forma de compartilhá-lo com sua família. Ninguém lá gostou dos quadros expressionistas que ela trouxe de sua temporada do lado de artistas alemães. Isso impactou a artista de uma forma muito desestimulante, o que se repetiu em vários outros momentos de sua vida.

A estudante, 1915-1916, de Anita Malfatti
Mais uma vez ela obteve possibilidade de fazer novos estudos, desta vez nos Estados Unidos. Lá o grupo “Ash Can School” se solidificava em torno de uma série de pintores realistas americanos empenhados em retratar cenas da vida das cidades que começavam a absorver as populações de origem rural. Anita deve ter chegado aos EUA por volta de 1915. Em 1913 havia acontecido em Nova Iorque o “Armory Show”, um acontecimento artístico que representou para os EUA o que a Semana de 22 representa para nós, brasileiros. A artista encontrou, então, um ambiente de grande efervescência cultural e artística, muito reestimulante para ela. Anita estudou inicialmente na “Art Students League”, mas um pouco decepcionada com essa escola, procurou o atelier de Homer Boss, um pintor já muito conhecido, com quem ela aprendeu muito.

Em Nova Iorque, convivendo mais uma vez com artistas que se empenhavam na pesquisa de novas estéticas, Anita Malfatti viveu uma das fases mais intensas de sua vida artística, e foi uma época onde ela pintou muito, convivendo inclusive com artistas europeus que buscavam nos EUA refúgio contra a guerra e a fome. “Só falavam no cubismo”, ela disse “e nós começamos a fazer as primeiras experiências”.

A volta ao Brasil, mais uma vez, foi um baque para ela, por causa do conservadorismo reinante na São Paulo provinciana e pequena. “Quando viram minhas telas todos as acharam feias, dantescas, e todos ficaram tristes, não eram os santinhos dos colégios. Guardei as telas”, lamentou ela.

Mas em seguida, apareceu um convite para que ela expusesse esses quadros,, o que aconteceu de dezembro de 1917 a janeiro de 1918. Exposições eram raras por aqui, e apenas ocorriam por obra de viajantes de passagem, portugueses e italianos. O primeiro Salão paulista de Arte só surgiu em 1922.

Mas voltando à exposição de 1917, Anita mostrou que ousara como pintora, e seus quadros, no dizer de Aracy Amaral, “expressavam força, firmeza e vitalidade”. Eram 53 trabalhos entre pinturas, gravuras em metal, aquarelas, desenhos e caricaturas. Essa Exposição de Anita Malfatti, que aconteceu na rua Líbero Badaró, centro de São Paulo, chocou e desestruturou a consciência estética baseada até então num ideal de beleza acadêmico e neoclássico.

Monteiro Lobato escreveu no jornal “O Estado de São Paulo” uma crítica feroz à jovem pintora que tinha tido coragem de atacar os cânones da época. O artigo intitulado “A propósito da Exposição Malfatti – Paranóia ou Mistificação?”, publicado no dia 20 de dezembro de 1917, representava o conservadorismo em pânico, que se via ameaçado por uma jovem artista, frágil, tímida e com distrofia na mão direita, mas com uma vigorosa linguagem expressionista.

A Exposição de Anita de 1917 teve um papel revolucionário. Foi o estopim da pintura moderna no Brasil e o marco inicial de um movimento modernizante que culminou na Semana de Arte Moderna de 1922, e ela atraiu as atenções de um grupo de escritores jovens, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia, que tomaram a sua defesa contra os ataques conservadores de setores retrógrados da Paulicéia.

Mário de Andrade escreveu: “Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que chamavam “O Homem Amarelo”, “Estudante Russa”, “Mulher de Cabelos Verdes”... (…) Éramos assim”.

O artigo violento de Lobato feriu profundamente a artista. Ela já convivia com a falta de apoio de sua família, a quem era muito apegada, e que preferia que seus quadros seguissem o estilo acadêmico. Anos depois, lembrando deste fato, Mário de Andrade diria: “... (ela) brigava todo dia consigo mesma porque tudo nela dizia 'Faça obra expressionista' porém a vontade berrava 'Faça obra impressionista pros outros lhe quererem bem' e a mão dela indecisa, tremendo entre essas coisas diferentes, se perdia pouco a pouco e se perdeu”.

Mas já estava cumprido seu papel histórico de unir as forças jovens em busca de um novo tempo nas artes. A pintora da “Estudante Russa”, de “A Boba”, de “O Farol”, está registrada como um marco para a pintura contemporânea brasileira. Anita é bandeira de renovação, mesmo que sua carreira não tenha prosseguido com aquela força inicial, e seja marcada pela inconstância. Era uma moça tímida em resistência contra toda uma sociedade atrasada. Era uma pintora, que com seus quadros ameaçava o conservadorismo do seu tempo.

Anita Malfatti: O Farol
Neste dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, nada melhor do que relembrar essa figura de Anita Malfatti, que mudou os rumos da pintura brasileira e fez Mário de Andrade afirmar, anos depois: “... (meus companheiros) podem testemunhar se o primeiro espírito de luta, a primeira consciência coletiva, a primeira necessidade de arregimentação foi despertada ou não pelo que se passava na cidade, com a exposição de Anita Malfatti. Foi ela, foram seus quadros que nos deram uma primeira consciência de revolta e de coletividade em luta pela modernização das artes brasileiras. Pelo menos a mim.”

"Vejo o tempo obrar a sua arte..."

Tela "Os operários" de Tarsila do  Amaral, uma das pintoras modernistas brasileiras.
Tela "Os operários" de Tarsila do Amaral, uma das pintoras modernistas brasileiras.
"Vejo o tempo obrar a sua arte
tendo o mesmo artista como tela
Modelando o artista ao seu feitio

O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapesos de um sorriso”.

(Tempo e artista, Chico Buarque, 1993)

Muiitas vezes nos perguntamos o porquê de necessitarmos, de vez em quando, olhar para o passado. É como nossa âncora, que, apoiada no leito do rio, nos fornece segurança. Olhar para trás com “o olho de águia do pensamento”, como dizia Marx, para sabermos exatamente onde pisamos. Ou para compreendermos melhor o momento presente, o que facilita nossa ação.

Voltemos à Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922 no Brasil, um evento que, por si só, seria desimportante, não fosse o contexto histórico em que se deu, tanto nacional quanto internacionalmente.

O mundo capitalista produzira uma Primeira Guerra sangrenta, enquanto na Rússia a Revolução Socialista saíra vitoriosa em 1917. O Brasil, especialmente São Paulo, se industrializava, e uma parcela muito grande de imigrantes chegava, em busca de trabalho. Greves operárias muito importantes estouraram em 1917, mesmo ano em que a pintora Anita Malfatti expôs pela primeira vez suas pinturas com clara influência do Expressionismo alemão, que tanto chocou o escritor Monteiro Lobato, avesso às novidades vindas de fora.

No próprio ano de 1922, enquanto os cabeças do movimento modernista preparavam a Semana de Arte Moderna, tenentes começavam a se sublevar nos quartéis e a preparar a famosa Revolta do Forte de Copacabana. Também germinava e frutificava a criação do Partido Comunista do Brasil, em 25 de março. Nas Artes, os sopros das mudanças que ocorriam na Europa desde o século passado, começava a incomodar nossos artistas, levando-os a buscar novos caminhos, na literatura, na música, na pintura...

Na pintura, predominava a arte acadêmica, monitorada pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Mantinha a tradição, ou, melhor dizendo, mantinha os ensinamentos que começaram com a chegada da Missão Artística Francesa, lá pelos idos de 1816. Predominava a pintura de figuras ilustres, de cenas bíblicas, de heróis e acontecimentos nacionais relevantes. É quando surge o pintor Almeida Júnior, formado inicialmente dentro do ambiente acadêmico. Este artista, depois de uma temporada na França de onde voltou em 1882, resolveu voltar os olhos para a temática regional, afirmando sua vontade de identidade com uma nação que fosse soberana. Inspirado na revolução estética do Realismo de Gustave Courbet (que preferia “pintar a verdade do que a formosura”), inaugurou o Realismo no Brasil e a primeira grande mudança nas Belas Artes brasileiras, voltando seu cavalete para a gente do povo. Ele foi a semente da futura ruptura estética causada pela Semana de 22.

O movimento modernista e modernizante, de um Brasil que se industrializava e caminhava para o seu segundo ciclo civilizatório representado pela Revolução de 30, espalhou-se em ondas pelo país, afetando as nossas artes.

Mário Zanini, Igreja de São Vicente, 1940
Em 1935, no centro de São Paulo, um grupo de trabalhadores iniciou o que ficou conhecido por Grupo Santa Helena. Eles se reuniam aos finais de semana no atelier de Francisco Rebolo localizado no Edifício Santa Helena, Praça da Sé. Para lá acorriam os pintores de parede Alfredo Volpi e Mário Zanini, o ferroviário Clóvis Graciano, o ourives Manoel Martins, o mecânico Alfredo Rizzoti, o dono de açougue Fúlvio Penacchi, o figurinista e bordadeiro Aldo Bonadei e o professor de desenho Humberto Rosa. Todos de origem humilde. Todos inscreveram seus nomes com fortes tintas na História da Arte brasileira! Pesquisando e estudando sozinhos, foram reconhecidos muito depois dos eventos da Semana de Arte Moderna, pela qualidade de suas obras.

No Rio de Janeiro, em 1931, cria-se o Núcleo Bernardelli. Seu primeiro presidente foi o artista Edson Motta, ligado à Escola Nacional de Belas Artes, mas que sonhava em trazer o modernismo para sua cidade. Organiza um Salão de Artes em 1931 com a finalidade de apresentar uma nova linguagem artística. É lá que se destacam pela primeira vez os artistas Manoel Santiago, Roberto Burle Max, Quirino Campofiorito, Rui Campelo, Cândida Cerqueira, entre outros.

Em 1938, no Rio Grande do Sul, é criada a Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa, onde despontou a genialidade do artista Carlos Scliar (que foi durante muito tempo filiado ao PCdoB, como tantos artistas pelo Brasil a fora).

No Paraná, em 1940, destaca-se o gravurista Poty Lazzarotto e em 1948 é criada a Escola de Música e Belas Artes de Curitiba, com destaque para o pintor Lóio Pérsio.

Em Fortaleza, Ceará, em 1941, criou-se o Centro Cultural Belas Artes, onde se destacaram os artistas Antonio Bandeira, Inimá de Paula e Aldemir Martins. Este último, ganhou diversos prêmios com seus temas nordestinos, como na Bienal de São Paulo em 1955, e de Veneza em 1956.

Na Bahia, a partir de 1944 começou a ofensiva modernista em Salvador, com Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Rubem Valentim, Carybé, e outros.

Ainda em 1944, em Minas Gerais, o prefeito de Belo Horizonte Juscelino Kubitschek, organiza a primeira Mostra de Arte Moderna, além de apresentar ao público a arquitetura de Oscar Niemeyer.

Em Recife, no ano de 1950 criou-se a Sociedade Moderna do Recife, com os artistas Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Reinaldo Fonseca e Francisco Brennand. Cícero Dias sempre se manteve fiel à temática de sua terra natal e seus quadros refletem a rica cultura pernambucana.

Em Natal, Rio Grande do Norte, em 1951 aconteceu a Primeira Mostra Moderna, nos Salões da Cruz Vermelha, destacando-se os artistas Dorian Gray Caldas, Newton Navarro e Ivan Rodrigues.

No Maranhão criou-se o Núcleo Eliseu Visconti, em 1959, com os artistas e intelectuais Ferreira Gullar, Luci Teixeira, Floriano Teixeira, Lago Burnett e Bandeira Tribuzi, que tinham a finalidade de renovar as artes maranhenses.

Ainda nos anos 40 foram criados o Museu de Arte de São Paulo (MASP), com o patrocínio de
Assis Chateubriand, assim como o Museu de Arte Moderna, também na capital paulista, e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em 1951, fruto de todo esse processo, é realizada a primeira Bienal de Arte de São Paulo.

Cena da peça de teatro do CPC da UNE:
A mais-valia vai acabar seu Edgar
Indo um pouco mais além, podemos dizer que os ventos da modernidade brasileira alcançaram os anos 60, com a fundação de Brasília, a Bossa Nova, o Teatro de Arena, o CPC da UNE, as Neovanguardas, o Cinema Novo, o Tropicalismo. Todos esses eram movimentos que guardavam uma crença na história e no sujeito, o que nos leva a refletir: nós, artistas, emitíamos nossos pontos de vista naquela época! Emitimos hoje? Alguém ouve o que não é dito? Ou diz-se hoje para uma minoria de iniciados que tratam o público dos museus e exposições como ignorante e atrasado porque simplesmente o público não “entende” e não gosta da sua “arte”? Como disse o poeta Ferreira Gullar sobre uma Instalação artística: “De gato morto e ovo frito no prato, sinceramente não sou obrigado a gostar!”

Porque hoje assistimos a essa “arte” que se voltou a falar para si mesma, quando deveria abandonar esse autismo-narcisismo e voltar a falar do mundo e da vida. A arte da moda, a arte-mercadoria, arte-coisa, arte-objeto, arte-conceito, arte discurso. Antiarte não é Arte. O cálculo, mesmo que conceitual, da arte contemporânea me faz lembrar o bom e velho Mário de Andrade em sua Ode ao Burguês, de onde extraio o verso que encerro por hoje a minha revolta:

“Fora os que algarismam os amanhãs!”

Nós, os antropófagos, e a Semana de 22

Cartaz da Semana de Arte Moderna de 1922
Em junho de 1556, os índios caetés – que habitavam uma parte do litoral alagoano – fizeram um verdadeiro banquete antropofágico: devoraram o primeiro bispo do Brasil (que era português), dom Pedro Fernandes de Sardinha. Por causa disso, os índios foram dizimados em cinco anos de guerra. “Tupi, or not tupi, that is the question”, diria Oswald de Andrade, 370 anos depois, em seu Manifesto Antropófago.

Em 1913, a Pinacoteca de São Paulo realizou uma Exposição de Arte Francesa, trazendo da Europa exemplares de mobiliário e decoração franceses, além de pinturas, com o intuito de inspirar, na sociedade paulistana, a estética do bom gosto europeu. A elite brasileira fazia questão, desde o século 19, de se manter em conformidade com a cultura europeia, importando os valores estrangeiros. Isso gerava também, é claro, alguns aspectos de distinção de classe, uma vez que não desejava ser confundida com negros, índios, mulatos, mestiços. Mais uma vez Oswald: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental”...

Mas o que esses dois fatos têm em comum? Exatamente a Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, que se realizou há exatos 88 anos completados no próximo dia 13 de fevereiro.

A nata da sociedade paulistana que, naquelas três noites, subiu as escadas do Teatro Municipal de São Paulo – vestida rigorosamente à caráter para assistir a apresentações musicais de Heitor Villa-Lobos e Guiomar Novais, conforme dizia um pequeno reclame escondido num canto dos jornais da época – jamais poderia imaginar de que seria, muito à contragosto, testemunha histórica de um momento de virada na vida artística e cultural brasileira. Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti Del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e outros jovens artistas brasileiros convencidos de que um salto havia que ser dado – um salto para DENTRO do Brasil, pois os ventos da modernidade forçavam esse salto – chocaram a platéia do teatro lotado, enquanto Ronald de Carvalho declamava em alto e bom som o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, que criticava o gosto da refinada poesia parnasiana:

“Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.”

As linhas neoclássicas dos detalhes arquitetônicos do Teatro Municipal pareciam vir abaixo! Vendo-se pega numa espécie de flagrante, a elite paulistana desabou em uivos, gritos e vaias, e o caos tomou conta da Semana de Arte Moderna de 1922. Nos dias que se seguiram, os jornais registravam aquele evento como uma “verdadeira falta de respeito” à gente tão refinada, à nata da sociedade paulistana! Um bando de rapazes e moças enlouquecidos, recitando poemas sem rima, sem metro, e mostrando pinturas e esculturas que eram um acinte ao gosto neoclássico e parnasiano da época! Um horror! As damas e os cavalheiros de Higienópolis e dos Campos Elíseos tinham sido acintosamente agredidos por aquele bando de loucos futuristas (denominação que se dava aos modernistas na época).

Mas além dos gritos histéricos e dos apupos, as senhoras e os senhores deixaram bilhetes malcriados atrás das pinturas expostas no hall do teatro, incapazes de achar beleza num homem que parecia sofrer do fígado de tão verde, numa tela de Anita Malfatti. Os modernistas haviam conseguido sacudir a modorrenta e provinciana elite de São Paulo, como o desejara Di Cavalcanti, que havia sugerido a Paulo Prado (escritor) a realização de "uma semana de escândalos literários e artísticos de meter estribos na burguesiazinha paulistana".

Eram os índios caetés de volta ao palco, sobre os ombros de Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e dos outros! A elite brasileira concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo, vivia sob os eflúvios da vida europeia, sua referência para todos os seus valores. A Europa estava lá para ser imitada e idolatrada! Nada da cultura da gentalha nacional, “peste dos chamados povos cultos e cristianizados”, diria Oswald de Andrade.

A Semana de Arte Moderna amplificou-se ao longo das décadas, e suas influências se seguiram além das três noitadas caóticas e ruidosas. Teriam feito ruído, os índios, enquanto comiam o bispo? Sua antropofagia alcançou os tempos novos que começavam com o modernismo brasileiro: já que “o de fora” é inevitável e deve ser assimilado, que ele seja primeiro deglutido! Deglutição pós deglutição, nas artes plásticas, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, e depois Portinari, Tarsila do Amaral, Clovis Graciano, Carlos Scliar, Quirino e Hilda Campofiorito, Lívio Abramo – e tantos outros – expressaram em suas obras o efeito colateral da refeição cujo prato era (sempre) o modelo europeu: já que a nova estética exigia novos pincéis e novas formas de pintar, que se pintasse o Brasil. Que se modernizasse o Brasil.

Alguns dos modernistas de 22:
Mário de Andrade e outros
Essa onda modernista alcançava também o outro lado da cidade, a região do Brás e do Cambuci, aonde viviam os operários e os imigrantes pobres, como o pintor Alfredo Volpi. Esses artistas que estavam desse lado da cidade, criaram o chamado Grupo Santa Helena, que era uma comunidade de artistas que se encontravam para trabalhar e aprender juntos num mesmo prédio do centro de São Paulo. Desses modernistas de outro calibre – uma vez que não eram intelectuais como os outros – surgiram pintores como Rebolo, Aldo Bonadei, Clovis Graciano, Mário Zanini, etc, que foram reconhecidos a partir da década de 30.

Hoje, ano 454 da Deglutição do Bispo Sardinha, os efeitos da Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922 ainda continuam lançando suas questões: como defender a cultura brasileira em meio a um mundo “globalizado”? Como defender as artes plásticas dessa “arte” vazia de sentido e conteúdo, minimalista e cansativa (e já agonizante)? Como argumentar contra o idealismo conceitual que antecede a obra? Como permitir que possibilidades infinitas não sejam subjugadas pela mesmice estética imposta pelo sistema de arte atual? Como vencer o velho problema da falta de espaço para os reclames (e obras de arte) que não sejam os preferidos da mídia? Como continuar engolindo os novos Sardinha e não sofrer de indigestão? Como voltar a meter estribos na burguesiazinha metropolitana?

Oitenta e oito anos depois da eclosão modernista no Brasil, ainda vemos, felizmente, que os componentes e as facetas da realidade são riquíssimos e inumeráveis! À contragosto do atual establishment...

Como bons antropófagos, comamos-lhe!