sexta-feira, 4 de maio de 2012

As artes plásticas na formação do professor

Capa do livro
A Editora Plêiade publicou, esta semana, o livro de minha autoria As Artes Plásticas na Formação do Professor - uma perspectiva interdisciplinar.

Fruto do meu trabalho diário de pesquisa em torno da Arte e sua história, assim como das minhas reflexões pessoais a respeito do assunto, este livro nasceu, principalmente, como resultado e complemento a este Blog.

O livro é direcionado ao ensino de artes nas escolas, como apoio para o professor de artes ou de educação artística, pois pretende somar-se ao esforço para que esse ensino nas escolas não seja apenas uma atividade cosmética, de menor importância no âmbito do currículo e das práticas docentes.

Dentro da formação humanística que se faz absolutamente necessária em qualquer nível escolar nos dias atuais, as artes plásticas, a história, a geografia, a música, a literatura e o teatro, entre outras áreas da produção simbólica, se articulam para mobilizar reflexões muito além das especializações técnicas que empobrecem a visão do homem como um todo.

Mas eu fiz um recorte necessário e óbvio, como acontece sempre que nos deparamos com amplidões que jamais abarcaremos de uma só vez. A História da Arte é muito ampla e abrange um período vasto que vem desde os primeiros desenhos e inscrições rupestres em cavernas e em pedras, há mais de 20 mil anos. Para mostrar como ao longo da história da humanidade, a arte vem ocupando um papel fundamental em sua vida social e individual.

Muitas vezes precisamos confrontar épocas, rever trajetórias, para nos indagar: o que fizemos e por que fizemos? O que aprendemos? O que transmitimos?

Todos os sistemas sociais tiveram seus artistas, aqueles que deixaram a marca de um determinado período na história e na cultura, de um modus operandi social, econômico, cultural, político, espiritual. Porque a arte tem o dom de criar e fortalecer vínculos históricos, enquanto traça o caminho, na alma humana, entre o mundo real e o imaginário, entre a existência diária e presente e o sonho futuro.

A intenção não foi esgotar tão amplo assunto, mas levantar algumas ideias sobre períodos tão diversos que vão da Grécia antiga ao Barroco holandês, das figuras da Commedia dell’Arte italiana ao nosso carnaval de rua, apenas para trazer à tona um esboço muito pequeno de como se dá a evolução do pensamento artístico humano. Esse recorte, claro, foi baseado numa certa visão pessoal de que habitamos um mundo que é simultaneamente concreto e imaginário, cuja relação dialética se dá nesse vai e vem do nosso olhar.

Exemplares do livro em meu atelier
Uma resenha dos editores:

No primeiro capítulo desta obra, a título de exemplo, a autora vasculha os tempos remotos em que os homens garatujaram seus sonhos, medos e deslumbramentos nas paredes das cavernas. Porém, sem perder de vista que esse homem é um personagem mutante no eixo do tempo, comparecem em suas análises com foco na arte elementos de sociologia, com o que ficam contextualizados de maneira perspicaz os assuntos, sempre tratados à luz das estruturas sociais pelas quais os indivíduos lutaram ou contra as quais se insurgiram.

No segundo capítulo a autora apresenta ao leitor as possibilidades de acesso ao patrimônio imaterial da humanidade, que pode estar acondicionado em museus, mas que igualmente pode estar, e com frequência está, distribuído pela paisagem urbana (que o digam a cidade italiana de Florença, verdadeiro museu a céu aberto, e, no Brasil, as nossas cidades históricas mineiras).

A propósito de viagens a cidades como Paris ou Berlim, Rio de Janeiro ou Curitiba, e a diversos museus da Europa ou do Brasil, Mazé Leite demonstra como o espírito aberto e os olhos atentos podem contribuir, e muito, para a formação de nossos estudantes, particularmente de grandes e médias cidades, para os quais visitas a museus organizadas por escolas se vão tornando, felizmente, prática recorrente.

No terceiro capítulo, têm lugar reflexões sobre métodos e técnicas empregadas pelos artistas para expressar emoções e sentimentos, a partir de diversos formatos de texto, que vão da resenha crítica ao ensaio, passando pela entrevista e pelo texto com sabor de crônica – o que torna sua leitura um verdadeiro prazer. Aqui, não se está no domínio exclusivo das artes plásticas, mas na dimensão dela que faz fronteira não com os saberes do especialista, mas com o do observador, do leitor de obras visuais.

Isso se justifica em razão de que a consciência crítica só se desenvolve no espírito a partir de um aprofundamento necessário de leitura para o qual concorrem habilidades de observação, de comparação, de extrapolação, de ajuizamento – melhor exercidas quando explicitados os meios de produção dos próprios textos visuais.

Mazé Leite
Porém, todos sabem o quanto os artistas desenvolvem verdadeiros idiomas próprios para comunicar-se. Por isso, Mazé Leite, no quarto capítulo, visita importantes artistas plásticos europeus, americanos – inclusive brasileiros – e orientais. Dos clássicos aos contemporâneos, o leitor tem em mãos aspectos biográficos, estéticos e mesmo filosóficos mobilizados por esses artistas para expressar seu tempo ou negá-lo.

Sobre a autora: Mazé Leite é artista plástica, bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo, e faz pesquisa em História da Arte. Estudou pintura na Sociedade Brasileira de Belas Artes, no Rio de Janeiro, na década de 1980. Passou pelo atelier de Feres Khoury e Louise Weiss, no começo da década de 1990. Pertence atualmente ao Atelier de Arte Realista de Maurício Takiguthi, em São Paulo. Também participou de workshop de pintura e oficinas de desenho em Paris, França, em 2011. Vem visitando museus em vários países, com finalidade de pesquisa, como Holanda, Polônia, Alemanha, Espanha, Portugal, França e Argentina. Desde 2009, mantém este blog onde escreve sobre artes plásticas e tem colaborado com diversas revistas e sites com textos sobre arte.

(Os editores)
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Obs.: Os interessados em adquirir o livro, podem escrever diretamente para a autora, através do e-mail:mazehsp@gmail.com.


Livro: AS ARTES PLÁSTICAS NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR
           – uma perspectiva interdisciplinar
Autor: MAZÉ LEITE
Editora: PLÊIADE
Assunto: ARTES – TEORIA, VIVÊNCIAS E HISTÓRIA
Ano: 2012

segunda-feira, 30 de abril de 2012

O homem dos olhos azuis

                 Os olhos? Os olhos são azuis. Azul de cobalto, azul da Prússia, o de Lápis-Lazuli, o Ultramarino lá no fundo, algo clareado com pigmento branco, ou um azul prateado... talvez. Lembra uma palheta formada com tons de azul. Mas há um azul de céu e de mar. Ou um azul que vem de uma alma sossegada, serena, como um lago sem vento, ou o mar sem ondas.
Portinari: autorretrato, desenho de 1957
                 Também há um sol lá no fundo daqueles olhos azuis. Algo de amarelo, algo de dourado, que um pouco se esparrama ao redor e ilumina redondezas. Colore redondezas. Quando se vê, cores surgem nos rostos das crianças. Parece que bandeirinhas coloridas de festas juninas tomaram todo o espaço do Memorial da América Latina, ou a América Latina inteira, e tornaram todo o espaço festivamente colorido. Mas para quem é criança. Não no corpo, na alma. Coração de criança, olhar de criança, dessa curiosidade infantil singular de ver o mundo com olhos novos.
                 Eu vi os olhos azuis de Portinari.
                 Eu vi pessoalmente.
                 Eu vi através da cadeia biológica que replicou os olhos azuis que viam um mundo para ser pintado em outros olhos azuis que veem um mundo para ser construído. De olhos de pintor a olhos de engenheiro. Azuis. Os de João Candido Portinari.
                 Semana passada, Adalberto, um amigo, me telefonou. Era um convite: ir ver os painéis “Guerra e Paz” de Portinari junto com João Candido Portinari. Eu estava com febre, mas a febre maior era a de ir. E eu fui, e mais onze pessoas. Era um resgate de uma parte da história do pintor dos olhos azuis de alma imensa que de tão grande coração que tinha, tão grande amor sentia pela sua gente. Era comunista porque era a vontade imensa que ele tinha de que todo mundo fosse feliz. De que todas as crianças que ele pintou – que foram tantas – sorrissem felizes no dia luminoso do amanhã. E porque o coração era vermelho, o homem dos olhos azuis era comunista. Abracei o filho dele com meu coração vermelho gerando um link histórico com o pintor vermelho...
                 Por isso eu vi além dos olhos de João. Lá naqueles dois painéis gigantes, um coração imenso havia pintado para o mundo ver que o mundo há de ser bom, deve ser bom para todos. Sim à Paz. Guerra, não! Guerra é morte, é sofrimento, é angústia, é separação, é humilhação, é fome, é sede, é divisão, é ódio, é execração, é capitalismo. O rubro coração daquele homem imenso deixou lá nas Nações Unidas esse grito que ecoa para quem alma tiver: o mundo há de ser bom, há de ser justo, há de ser humano, há de ser de todos. Um dia com certeza.
As crianças e João Candido Portinari
                 Ao redor de João, o filho, crianças se acotovelavam. Queriam tirar fotos, trocar e-mails, congelar o tempo e guardar aquele momento que a menina de lágrimas nos olhos dizia que nunca mais ia esquecer. Você é filho de Portinari? Parecia um sonho. Verdade. Era real, ele tava ali, ao alcance do abraço delas. Uma garotinha de cinco anos perguntou: você ficou triste quando seu pai morreu?
                 Abraçar João, apertar sua mão, posar para fotos a seu lado, era contentar uma vontade de chegar mais perto daquele pintor que disse que a pintura tem que falar ao coração. Que disse que a pintura que não fala ao coração não é arte. Que disse que só o coração entende a arte, que só o coração nos poderá tornar melhores. Será por isso que hoje tantas crianças corriam em volta de João Candido, como se tivessem pulado das telas pintadas por Portinari, crianças coloridas descendo de suas poses, aos montes, correndo para abraçar seu filho?
                 O pai, Portinari, também não tinha falado que não conhecia nenhuma grande arte que não fosse íntima do povo? Não é por isso que chorava aquela menininha negra, entre o painel “Guerra” e o João a seu lado, sem conseguir definir se a emoção era maior porque entendia a dor daquelas mães do quadro com seus filhos mortos, ou por estar sendo abraçada pelo filho do homem que pintou a dor daquelas mães com seus filhos mortos?
João Candido e eu
                 Eu também abracei o filho do homem que pintou a dor daquelas mães com seus filhos mortos! Que foi como abraçar através do tempo o meu camarada pintor Portinari quando ele queria ser mais do que pintor, queria ser a voz do povo na câmara e no senado, porque sua alma queria ser muito maior do que cabia dentro de seu corpo, e queria ser comunista para ser grande, grande homem e grande artista, maior do que era. Que queria fazer mais do que semear “margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos”, como escreveu seu amigo Drummond, que falou daquela mão que crescia quando pintava e fazia "mais e faz do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos." O mundo para todos.
                 João Candido Portinari é para não esquecer também. Filho de peixe... A alma mansa, o sorriso fácil, a fala boa, o coração grande, o abraço imenso onde cabem todos os abraços de todas as crianças ou de todos aqueles que têm boa vontade... E que agradeceu àqueles comunistas que lhe haviam feito lembrar-se dos tempos bons para seu pai.
                 Para contar como foi que eu conheci João Candido Portinari, não dava para não ser com meu coração... O resto eu deixo que Carlos Drummond finalize, pois meu coração tem seus silêncios:


A MÃO


Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta
o que não é para ser pintado mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos
A mão cresce mais e faz
do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor.
Tudo existe porque foi pintado à feição de laranja mágica
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da terra domícilio do homem.
Entre o sonho e o cafezal
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.
Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.


(Carlos Drummond de Andrade)


Detalhe do painel "Paz" de Candido Portinari

quinta-feira, 26 de abril de 2012

A liberdade expressiva de Eugène Delacroix

A barca de Dante, de Eugène Delacroix, óleo sobre tela, 189 x 242 cm, 1822, Museu do Louvre, Paris
          No dia de hoje, há 214 anos atrás, nasceu o pintor francês Eugène Delacroix, em 1798, em Saint-Maurice, nos arredores de Paris. Ele era o quarto filho de Victoire Oeben e Charles-François Delacroix, um político bastante ativo, e que era ministro das Relações Exteriores da França na Holanda, quando o menino nasceu. Seu pai era um revolucionário que acreditava profundamente nos ideais que moviam seu país em direção ao futuro. Além disso, era um homem culto e de formação iluminista.
Eugène Delacroix,
fotografia de Félix Nadar, 1858
          Era um período tumultuado da história francesa, que passava por mudanças bastante importantes, levando-se em conta que dez anos antes, em 1789, havia acontecido a Revolução Francesa. Por isso, Delacroix cresceu num tempo de muita instabilidade política, com notícias frequentes de decapitações, delações, castigos. Pessoas, inclusive e sua família, eram presas e até decapitadas. A monarquia e o clero vinham perdendo seus privilégios, enquanto a República se fortalecia.
          Delacroix tinha um tio materno, Henri Riesener, que foi aluno do pintor Jacques-Louis David. Riesener tinha perdido seus bens no período da Revolução, mas, graças à pintura, conseguiu garantir sua subsistência e até recuperar sua fortuna. Enquanto isso, o sobrinho Eugène Delacroix, desde muito cedo, demonstrava ser possuidor de muito talento para a pintura.
          Charles-François Delacroix, seu pai, foi nomeado prefeito da cidade de Bordéus, mas morreu pouco tempos depois, em 1805. Eugène e sua mãe foram para Paris, onde ele foi estudar no Liceu Imperial (hoje Liceu Louis-le-Grand), tendo recebido uma formação humanista. Em Paris, Eugène Delacroix deu asas à sua atração pelas artes plásticas e passou a frequentar os museus, especialmente o Louvre, onde descobriu e se encantou com a obra de Ticiano, Veronese, Rafel, Tintoretto e Rubens, além de outros. No museu, fazia cópias das obras. E frequentava os ateliês dos pintores que conhecia.
Autorretrato presumido,
Museu de Belas Artes de Rouen, França
          Quando tinha 13 anos de idade, morreu sua mãe, deixando-o em grave crise, não só emocional, como material e física. O menino foi morar com a irmã Henriette e seu marido, pois a saúde dele era frágil e tinha febres intermitentes. Depois, foi morar com seu tio pintor, Henri Riesener. Graças a ele, Delacroix ingressou no ateliê do pintor Pierre Guérin. Em 1816, se matriculou na Escola de Belas Artes de Paris.
          No ateliê de Guérin, Delacroix teve uma formação neoclássica, dentro do estilo dominante na época. Lá também estudava Théodore Géricault, que tinha então 25 anos de idade e seguia uma linha diferente da utilizada pelo mestre Guérin, que não se importava que seus alunos ousassem expressões próprias. Tornaram-se amigos, Delacroix e Géricault. Eugène chegou a posar como modelo para Géricault pintar sua famosa tela “A balsa da medusa”, já em ateliê próprio do pintor. Ter visto o amigo Géricault pintando essa tela, influenciou bastante várias das pinturas de Delacroix. Com isso, ele se via dividido entre a escola neoclássica do mestre Guérin e o romantismo de Théodore Géricault.
          A partir de 1819, Delacroix começou a receber encomendas, mas passou também a pintar retratos de amigos. Fazia também ilustrações e caricaturas políticas e literárias. Porque ele também tinha muito interesse em literatura, tanto a clássica, quanto a dos séculos XVII e XVIII. Lia também Lord Byron, Dante Alighieri e Shakespeare. Gostava muito também de ir ao teatro e chegou até a estudar música, uma vez que seu interesse pelas artes de uma forma geral era muito grande e ele tinha interesse em buscar as relações entre as diversas formas artísticas.
Cavalete de Delacroix em seu Museu em Paris (foto: Mazé Leite)
          Também aprendeu a técnica da aquarela com seu amigo Raymond Soulier, pintor e gravador. Eles trabalharam juntos no desenho de peças para máquinas industriais, com o que ganhou seu primeiro dinheiro a partir de seu talento de artista.
          No Salão de Outono de Paris de 1822, Delacroix inscreveu sua tela “A barca de Dante”, que dividiu especialistas e público. Uns o criticavam violentamente, outros reconheciam no quadro o talento do artista. O pintor Antoine-Jean Gros, um dos membros do júri do Salão de Outono, definiu o autor de “A barca de Dante” como um “Rubens atormentado”. Delacroix recebeu o elogio com mais satisfação ainda, por ter sido comparado a um de seus mestres preferidos. No período em que pintou esse quadro, Delacroix vivia tão precariamente que a moldura da tela era muito precária e se quebrou no transporte entre seu atelier e o local da exposição. Foi Gros quem financiou uma nova moldura para o quadro. Depois, o artista registrou em seu diário que com essa obra havia encontrado o seu estilo, inspirado na “Divina Comédia” de Dante.
Palheta de Delacroix (foto: Mazé Leite)

          Mas foi qualificado, pela Academia francesa, como “perturbador da ordem pública”. Sua afinidade com o estilo da nova geração de pintores o afastava cada vez mais da escola neoclássica. Gostava das ideias de Victor Hugo, de Cassiano Delavigne e de Lord Byron. Expôs o quadro “Os Massacres de Scio”, sobre a guerra de independência dos gregos, no Salão de 1824. Ele terminou de dar os últimos retoques no próprio local da exposição, inspirado nos céus das telas do pintor inglês John Constable. Ao lado da pintura “O voto de Luís XIII” de Jean-Auguste-Dominique Ingres, o quadro de Delacroix se destacava, como mais dinâmico e mais vivo.
          Em 1824, morreu seu grande amigo Géricault. Delacroix gastou todo o dinheiro que tinha comprando os desenhos e estudos do amigo falecido, e os guardou consigo.
A Grécia sobre as ruínas de Missolonghi, 1826,
Museu de Belas Artes de Bordeaux, França
          Com 27 anos de idade, em 1824, foi para Londres para estudar as técnicas de pintura dos ingleses, como Constable, Thomas Laurence, entre outros. Quando voltou a seu ateliê em Paris trouxe a experiência vivida em Londres e começou a trabalhar intensamente, iniciando uma fase muito produtiva. Dizia-se ser capaz de encher a cidade com pinturas. Pintava a óleo, fazia litogravuras, águas-tintas, estudos, aquarelas. Ganhava algum dinheiro fazendo ilustrações também, como as que fez para o livro “Fausto” de Goethe. Desenhou os figurinos para uma peça de teatro de autoria de Victor Hugo que ia estrear no Teatro Odéon. E enviava trabalhos para os salões anuais.
          Mas era o tempo em que imperava o estilo neoclássico em Paris. E isso o deixava sozinho em seu meio. Mesmo assim estreitou relações com os círculos intelectuais românticos, enquanto seu talento era reconhecido. Frequentava também salões literários, convivia com Victor Hugo, Alexandre Dumas, Prosper Mérimée e Stendhal.
          Em 1830 estourou em Paris a chamada Revolução de Julho. O povo e os trabalhadores franceses, guiados por ideais republicanos e com o apoio da burguesia mais liberal, se levantaram contra o rei Carlos X, que vinha se mostrando um déspota, cortando direitos, inclusive anulando as eleições. Carlos X foi deposto, mas uma monarquia burguesa ocupou seu lugar, com a posse de Luís Felipe, que era ligado ao setor financeiro da burguesia. O povo ficou de mãos vazias.
Jardim interno da casa onde viveu Delacroix até sua morte. Nessa espécie
de edícula com três janelas estava localizado o seu atelier (foto Mazé Leite)
          Eugène Delacroix, inspirado nesses e em outros fatos da história da França, pintou seu célebre quadro “A Liberdade guiando o povo”. Com ele, ganhou a medalha da Legião de Honra.
No mesmo ano, o embaixador francês Charles de Mornay convidou o pintor para acompanhá-lo numa viagem ao Marrocos. Essa viagem deixou Delacroix deslumbrado com o que viu. Desde o primeiro dia foi registrando suas impressões no famosos carnets de Marrocos. Da viagem ao norte da África e Espanha, Delacroix trouxe uma quantidade muito grande de desenhos, aquarelas, esboços, notas. Alguns dos quais eu puder ver em minha visita ao Museu Delacroix de Paris, em 2011.
          Em 1846, o poeta Charles Baudelaire, que também era crítico de arte, elogiou a obra de Eugène Delacroix, num momento em que toda a crítica estava contra ele. Baudelaire, em um artigo, dava a definição do Romantismo e destacava o papel de destaque que tinha Delacroix: “excelente desenhista, colorista prodigioso, compositor apaixonado e fertilíssimo”; “era capaz de expressar a intimidade do espírito e o aspecto assombroso das coisas” e terminava dizendo que Delacroix pintava “a alma em suas horas mais belas”.
          A partir de 1850, Delacroix se dedicou às grandes encomendas recebidas: as pinturas da capela de Santa Inês, em Saint Sulpice, da Galeria de Apolo no Museu do Louvre, e do Salão da Paz, no Hotel da Ville de Paris. Mas ao longo do tempo, começou a ter sérios problemas de saúde que o ritmo intenso de trabalho só piorava. Além de tudo, escrevia textos sobre estética. E em 1855, foi escolhido o representante da pintura francesa na Exposição Universal, ao lado de Ingres, que era então seu desafeto. Lembre-se que Ingres era um pintor radicalmente acadêmico e não suportava a liberdade expressiva de Delacroix.
          Em 28 de dezembro de 1855 mudou-se para a casa da Rua de Furstenberg, em Paris, que visitei no ano passado, pois lá funciona hoje o Museu Delacroix. Estava perto da igreja de Saint-Sulpice, já que era muito difícil, para ele, se deslocar diariamente vindo de longe para trabalhar na decoração da igreja. Por diversas vezes, por motivos de saúde, teve que sair de Paris para descansar em sua casa de campo ou na praia, o que aliviava um pouco o sofrimento com a laringite tuberculosa que o incomodava há anos.
          Eugène Delacroix morreu no dia 13 de agosto de 1863, em sua casa em Paris, com 65 anos de idade.
A Liberdade guiando o povo, óleo sobre tela, 260 x 325 cm, 1830, Museu do Louvre, Paris