segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Burton Silverman: em busca do humano - II

A pintura de Burton Silverman é a pintura da "vida real", caminho que ele escolheu e segue há quase oito décadas. Seu primeiro retrato foi pintado aos 13 anos de idade, era o de um camponês. Nesta linha, ele segue até hoje em suas representações de trabalhadores, ou mesmo de párias ou de outros indivíduos que fazem parte da sociedade. Com 87 anos de idade, o artista se realiza na busca do que é real e genuíno em sua arte.

Ao longo dos anos, Silverman tem orientado e inspirado muita gente, seja com seu ensino, seja com sua pintura. Em seu ateliê em Manhattan, desde 1971 ele tem recebido centenas de aprendizes, seja em cursos regulares, seja em workshops. Ao mesmo tempo, deu aula na Liga dos Estudantes. Com quase 80 anos de atividade no mundo da arte de Nova York - que passou pelos modismos do expressionismo abstrato, da pop-art, do foto-realismo ao pós-modernismo - ele interagiu com figuras importantes de todos os lados. Silverman é um verdadeira fonte de história da arte nos EUA dos últimos 80 anos. Além disso, é sempre franco ao dar suas opiniões e é sempre alguém a quem muitos artistas podem recorrer para obter uma crítica sincera de seu trabalho ou do de outros artistas.

Mesmo tendo se formado em arte e música em boas escolas de Nova York, assim como na Columbia University, Silverman é principalmente autodidata. Ele diz sempre que o aprendizado acadêmico trouxe-lhe mais formação em história da arte do que qualquer outra coisa. E que aprendeu mais com seus dois companheiros e amigos de vida e ofício (que ele conheceu no colégio) Harvey Dinnerstein e Dan Schwartz. Silverman diz que a melhor maneira de aprender pintura é “experimentando, praticando e pintando". Ele e seus amigos se perguntavam como os grandes artistas do passado fizeram o que fizeram. “Os museus se tornaram a nossa sala de aula”, diz ele. Iam lá, analisavam as telas, as técnicas usadas e em seguida desenhavam e pintavam continuamente. “Até que fomos capazes de descobrir alguma coisa”.

Foi com Dinnerstein e Schwartz que ele criou seu movimento e manifesto “Visão Realista”. Eles lançaram esse Manifesto Realista em meados da década de 1950 junto com David Levine, Aaron Shikler e mais outros três artistas, assim como fizeram uma exposição de seus trabalhos. O manifesto falava da importância da Arte Realista em contraposição ao Expressionismo Abstrato que crescia muito na época, especialmente após as obras de Jackson Pollock. Estes artistas faziam um esforço consciente para criar um contraponto intelectual a estas novidades modernistas. Fizeram várias exposições e protestos em defesa do realismo.

A respeito, Silverman diz que ele e seus companheiros sempre se sentiram em desacordo com os movimentos predominantes no dia. "Desde Jackson Pollock em 1950, passando pela arte da década de 1960, 1980, 1990... Eu nunca estive esteticamente relacionado a qualquer desses movimentos", admitiu. "Eu sempre estive meio que entre as fendas. E, para ser honesto, ainda me sinto fora do que ocorre atualmente. Não de forma negativa ou com raiva, mas apenas no sentido de que eu realmente não me ligo a um monte de outros pintores que estão fazendo outros tipos de arte”. Na verdade, Silverman aspira que as gerações mais jovens de realistas alcancem um alto padrão e sejam conscientes da história da arte do passado recente, tanto do realismo como da tradição histórica da qual ele se originou.

Parte das críticas de Burton Silverman sobre a chamada “arte contemporânea” diz respeito, “muitas vezes” à falta de conteúdo ou de convicção dos artistas. Ele diz que há exceções significativas, mas em geral ele vê “uma proliferação de demonstração de habilidade técnica e de aumento do tamanho de obras que não têm conteúdo para sustentá-las", disse ele.

Se a pessoa leva em conta critérios duradouros de excelência, vê que “a grande arte vai além de quaisquer regras. Eu percebo que para uma obra de arte sobreviver ao longo do tempo, desde os primórdios da história da arte até o presente, há algo que é inevitável: uma qualidade que toca em nossas raízes humanas e em nossos anseios históricos para algum tipo de espiritualidade que chamamos de 'belo'. Mas não acho que 'beleza' deve ser o objetivo da arte, apesar do apelo para isso nos dias de hoje”.

Ele dá um exemplo: veja a diferença entre dois artistas pintando um retrato. Um deles só registra e se preocupa exatamente em que o rosto se pareça com a pessoa. O outro pinta um rosto onde se pode ler, através dele, o que é a vida dessa pessoa. Ou a diferença entre uma pintura feita a partir de um cartão postal de um lugar bonito, contra um artista que pinta o lugar em que ele vive, ou mesmo viveu e sonhou, mas que "possui" como parte de sua experiência diária. “Como fizeram Innes ou Constable ou Wyeth”, aponta Silverman.

Herb Steinberg pintado por Silverman
Não é o que se vê hoje na arte do momento. Crítico à respeito, Burton Silverman mostra como é difícil um debate deste tema que não caia na passionalidade: “Sempre recai sobre uma defesa emocional de posição. Então, não é racional nunca. Por quê? Porque toda a arte chamada de contemporânea, modernista, realmente é, em grande parte, emocional e subjetiva. As ideias podem até infiltrar-se dentro dela, mas a maioria das discussões acabam num beco sem saída e voltam a cair na questão de gosto, ou então naquilo ‘que move’ a pessoa individualmente."

Ele diz que nos primeiros anos de sua vida como pintor, lhe foi solicitado que escrevesse em defesa da arte realista em oposição à suposta superioridade da arte abstrata. “A base filosófica para a arte abstrata foi dada de Roger Fry a Clement Greenberg, dizendo que queriam "purificar" a arte de seu apego ao mundo real, e isolar a beleza do contexto real. Eu nunca entendi o que queriam dizer com isso: por que as imagens seriam "impuras" ou tinham uma natureza contaminante? Eu me senti pessoalmente atingido por essas ideias! Parecia um ataque à validade da minha arte! Mais recentemente, no entanto, eu realmente abandonei essa polêmica cansativa “Realismo versus Arte Modernista”. Eu não posso simplesmente rechaçar as pessoas que pintam abstratamente, nem quero abolir o modernismo, mesmo se pudesse. Isso aí já é um fato inescapável da história da arte, e da arte que satisfez um monte de gente. Mas às vezes é difícil ficar quieto quando a própria ideia de realismo é constantemente ridicularizada na imprensa da arte do mainstream”.

Questionado sobre a também velha polaridade forma e conteúdo de sua obra, Silverman disse que sempre busca um equilíbrio entre estas duas coisas. “Eu quero ligar o corpo e a alma, a forma e o conteúdo na minha arte”.

Herb Steinberg,
segundo retrato feito por Silverman
Mesmo no auge do domínio da arte abstrata nos Estados Unidos, diz Silverman que muitos artistas figurativos como ele estavam produzindo coisas muito interessantes, como os pintores Andrew Wyeth e o “recentemente canonizado Edward Hopper”. Não tinha muita gente “olhando para o trabalho que estávamos fazendo”. Mesmo assim houve alguns críticos do antigo “New York Times” na década de 1940, como “Howard Devree, continua Silverman, que escreveu coisas terríveis mas de forma simpática sobre meu trabalho”. Alguns poucos críticos gostavam dessa ideia de haver esses ateliês pequenos, quase invisíveis, onde em pequena escala, agradáveis ​​pinturas estavam sendo feitas. “Isso mudou drasticamente depois do surgimento das imensas telas de Jackson Pollock (artista abstrato). As pinturas em galerias tornaram-se enormes”.

Ainda sobre a experiência do movimento “Visão Realista” do qual participou com seus amigos, Burton Silverman lembra que as pinturas nem eram muito “boas”, mas parecia ser mais interessante o fato de que mantinham a tradição pictórica do século XIX. Embora usassem os mesmos recursos pictóricos e realistas “foi muito diferente da pintura do século XIX. Nós pintamos as pessoas em nosso mundo, em nossas vidas”, observa ele.

Perguntado se guarda algum ressentimento por sua arte não ser a defendida pelo mainstream, Silverman diz que “não, pelo menos não mais”. De alguma forma ele atraiu seu público também sem precisar recorrer aos recursos dos artistas “contemporâneos” que precisam chocar para atingir a crítica e dar-lhe algum assunto para escrever. “Eu tenho feito meu trabalho, porque eu pinto o que me comove. Atualmente tenho acesso crescente que vai além das galerias, a um museu ou dois, onde meu trabalho pode ser julgado por seus méritos. Agrada-me ainda mais, não pelo prestígio de ter algumas exposições em museus, mas porque é minha visão de mundo que está sendo vista. E ainda com a vantagem de estar livre da necessidade de vender minhas obras”.

- “Há um princípio de prazer em toda a arte e, para mim, uma coisa que é extremamente importante é o elemento humano presente nela”. E complementa: ”Estou fazendo algo sobre o mundo em que vivo.”

Perguntado sobre os artistas que mais admira, Silverman responde que são poucos: Velázquez e Degas, Eakins e Sargent. “Rembrandt, é claro. Holbein, Hals, van Eyck, Vermeer, Caravaggio e Lautrec”. E Ingres. Mas com diferente valor e importância em cada fase de sua vida e formação.

Como pintor retratista, ele tem recebido muitas encomendas ao longo de sua carreira. Trabalha com aquarela, óleo, pastel, carvão ou simplesmente lápis-grafite. Já participou de inúmeras exposições coletivas e mais de 30 exposições individuais, nos EUA e no Exterior. Já recebeu 32 prêmios e menções honrosas por seu trabalho. Suas pinturas estão presentes em mais de 20 coleções públicas, como o Museu do Brooklyn, o Museu de Arte de Filadélfia, o Museu New Britain, o Museu Casa da Moeda, o Denver Art Museum, o Museu Nacional de Arte Americana, o Museu de Arte Delaware, o Columbus Museum e a National Portrait Gallery. Em 1999, ele recebeu o Prêmio “John Singer Sargent” da Sociedade Americana de Artistas Retratistas.

Ele diz que seu modo de pintar mudou um pouco ao longo dos anos, mas a motivação continua a mesma. "Se  olhar para trás, as pinturas que fiz há 20 ou 30 anos, todas elas são resultado da minha observação pessoal. Ou seja, me deparo com algo que provoca em mim algum sentido ou importância, mesmo que nem sempre eu saiba porquê. Ou fui atraído por alguém - não porque ele ou ela tinham qualidades atrativas por si - ou porque eu estava intencionalmente tentando retratar um certo status social, ou porque havia talvez algo inexplicavelmente especial sobre a sua humanidade."
O pedreiro, Silverman, óleo sobre tela

Um exemplo é a pintura de um pedreiro, um trabalhador sem camisa, com a barriga de quem bebe cerveja e uma expressão que revela seus muitos anos de trabalho. Ou a de uma mulher que Silverman conheceu durante seus verões passados ​na Itália, quando ele tinha uns 40 anos de idade e que lhe lembrou sua própria avó. Ou de duas pinturas que Silverman fez de seu amigo, artista como ele, Herb Steinberg: a primeira quando o amigo tinha por volta de 20 anos, e a outra feita muitos anos mais tarde, quando estava na casa dos 60 anos, pouco antes de morrer. Ele diz que o primeiro retrato do amigo é “um mau exemplo de minha pintura" e ele muitas vezes pensou em jogar fora. Mas se diz feliz por não ter feito isso “porque agora eu posso ver de onde vim. E mesmo assim, havia algo muito real sobre esta pessoa retratada”. Ele mais tarde percebeu a importância de incluir o cigarro nas mãos do amigo em ambos os retratos. "Pois ele constantemente estava com um cigarro na mão. Era a sua proteção contra o mundo: contra suas hostilidades, seus medos e suas ambiguidades. Infelizmente, o cigarro também acabou levando-o à morte."

Assim como Antonio López (pintor espanhol realista - leia aqui sobre ele), Silverman também evita pintar a partir de fotografias. Ele diz que tem grande dificuldade de pintar retratos de pessoas ausentes fisicamente porque não dá para observar o espírito e a personalidade dos sujeitos em tempo real. “Eu preciso pintar o ser humano como ele é”.

Em 2004, Silverman pintou um autorretrato, que causou alguma estranheza em alguns. Ele explica que estava apenas respondendo a uma reflexão pessoal sobre sua vida. "Eu pintei este autorretrato três anos depois de ter tido um ataque cardíaco. Eu estava certo dia entrando em meu ateliê, em um dia extremamente quente de verão, e vi meu reflexo na porta de vidro. Daí pensei: meu Deus, eu ainda estou vivo! E não só estou ainda vivo, como ainda estou pintando quadros! Eu preciso comemorar isso! Eu estava, na verdade, sobrevivendo em dois níveis: no físico e no artístico, no sentido de que as minhas convicções sobre o realismo ainda estavam produzindo pinturas. Eu apareço vulnerável nesse trabalho, quase nu, e acho que é por isso que incomodou. Acho que quando uma obra de arte alcança alguma noção universal, quando não se trata apenas de um momento mas sobre algo mais atemporal, é quando ela causa impacto. Eu uso sempre a jangada do Medusa de Théodore Géricault como exemplo. Foi a resposta de Géricault a um tema que veio à tona na época (o naufrágio de uma fragata que a monarquia francesa restaurada tentou sufocar, ocorrido em 2 de julho de 1816, na costa do Senegal, país africano, quando sobreviventes ficaram à deriva durante 13 dias). Mas tantos anos depois, esta pintura ainda é considerada uma das grandes obras da história da arte. Por quê? Porque as questões temporais podem até ter desaparecido, mas o que resta dela é universalmente compreendido. O tema da sobrevivência fala também sobre esperança, morte, medo, etc. São todas as mesmas emoções que continuamos a enfrentar!"

Em seu ateliê de Manhattan, Silverman tem uma rotina de trabalho que já dura mais de 40 anos. Mora no mesmo endereço, com sua esposa. "O ateliê é um lugar privado, e quando entro aqui, fico meio insano. Falo sozinho, falo com as vozes em minha cabeça. Há uma grande frase de um outro artista que disse algo como ‘quando estou no ateliê, estou com 100 pessoas, mas quando saio de lá saio sozinho'. Para mim, isso significa que mesmo que todos nós somos animais sociais e somos perseguidos pelas exigências dos outros, como  artista quando eu entro em meu estúdio e começo a trabalhar, é só eu e minha pintura. A responsabilidade é toda e só minha."

Com relação aos planos futuros de ensino, Silverman diz que sua contribuição para a instrução pode estar chegando ao fim. "Eu não acho que eu vou ensinar muito mais", admite. "O que tenho ensinado, do ponto de vista técnico, pode ser ensinado por outros. Os métodos de pintura, certos dispositivos pictóricos, são todos muito familiar agora e há inúmeras pessoas ensinando. Isso, a parte técnica, é quase banal. Não tenho certeza de que estou acrescentando algo de útil neste momento. Mas o que não se pode ensinar é como realmente ser um artista - isso faz parte de uma autodescoberta. Toda a arte tem que sair dessa complexidade da personalidade, das experiências, dos afetos, dos aborrecimentos da vida de alguém. Estas são emoções altamente individuais, isso não pode ser ensinado."

A experiência de vida é de fato individual, e cada um tem a sua. Não há como ensinar o sentido que tem uma visão mais humana sobre o mundo a uma pessoa que está muito longe dos acontecimentos do dia a dia, a alguém que vive como se estivesse dentro de uma bolha, avesso a saber o que acontece com as vidas dos outros seres humanos, preso na visão de seu próprio umbigo… Burton Silverman quer dizer exatamente isso, pois ao longo de sua vida esteve sempre ligado aos acontecimentos de seu mundo, fazendo suas representações diretas da vida urbana cotidiana, acompanhando, por exemplo, as movimentações civis em defesa dos direitos humanos por ativistas da década de 1960.

Certamente o legado de Silverman vai sobreviver a ele, pois seu modo de pensar tem inspirado inúmeros alunos e colegas de profissão. Inclusive aqui no Brasil, inclusive eu.


"Signora", pintura feita na Itália





3 comentários:

  1. Cara Senhora, Mazé Leite
    Li algumas de suas postagens sobre arte, além de ver sua galeria autoral e fiquei muito impressionado. Hoje, estive pesquisando sobre Anita Malfati e acabei encontrando sua postagem sobre o museu novaiorquino dedicado à arte feminina.
    Como sou protestante e interessado em história, cultura e sociologia, logo me identifiquei com o texto e salvei parte em meu acervo de informações para trabalhos futuros (prometo manter o crédito de sua autoria).
    Quero lhe parabenizar pelo seu talento. Eu, desde há uns 10 anos tenho reafirmado que um dos meus desejos e aprender a pintar óleo sobre tela. Sei que não serei um Caravágio, mas sua arte, só me estimulou neste desejo.

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    1. Muito obrigada, Maurício! Que bom que este blog está lhe auxiliando de algum modo, em seu interesse sobre arte! Quanto a aprender pintura, caso queira conversar sobre cursos de desenho e pintura a óleo, pode entrar em contato com o Ateliê Contraponto ou pelo e-mail contato@ateliecontraponto.com.br ou pelo cel (11) 9-9988-4858

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  2. Olá!
    Wau, sao tudo pinturas?
    Fiquei muito impressionada e feliz com o teu blog.

    http://the3oclock.blogspot.pt

    Dá uma olhadela no meu também!
    beijinhos e continuação de um bom trabalho :)

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