sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Arte em construção, o sonho de Tatlin - parte I


Como neste ano de 2017 se comemora uma data muito importante da história mundial, a Revolução Soviética de 1917 na Rússia, iremos dedicar este ano a falar da arte e da cultura russa neste blog. Os assuntos são muito vastos e são riquíssimos em conteúdo! 

De artistas antigos como Andrei Rubliev, o pintor de ícones, à nova safra de jovens artistas estudantes da Academia Ilya Repin de São Petesburgo, passaremos por todos os assuntos possíveis de serem alcançados em meu trabalho de pesquisa para este blog, levando-se em conta que o material de que dispomos aqui no Brasil, e em São Paulo, onde moro, são um pouco escassos. Faremos o possível para apresentar uma boa mostra do que significa para o mundo ocidental a imensa riqueza que a cultura russa trouxe ao mundo, em especial no século XX. 

Iniciaremos com um primeiro artigo sobre o Construtivismo, que acabei de escrever e será publicado na revista Princípios, da Fundação Maurício Grabois. Aqui, o artigo será dividido em duas partes, sendo que a próxima será publicada nesta segunda, dia 30 de janeiro.


"O ciclista", Natalia Goncharova, 1913, pintura cubo-futurista
Arte como construção, o sonho de Tatlin

Entre o final do século XIX e 1932 aconteceu na Rússia o aparecimento de muitas escolas e movimentos artísticos e intelectuais. Pela primeira vez na história, um grupo de jovens artistas viu concretizar sua visão de arte em termos práticos e com a grandiosidade patrocinada pela Revolução de 1917. Vladimir Tatlin, uma das figuras centrais da chamada “vanguarda russa”, inspirou o nascimento de um destes movimentos, o Construtivismo.

A história do povo russo vem de muito longe, quando povos eslavos começaram a se aglomerar em torno de  Kiev, cidade que hoje se situa na Ucrânia. Os Rus de Kiev, como eles se chamavam, passaram a ocupar uma região que, em termos atuais, alcança toda a Bielorrússia, uma grande parte da Ucrânia e o centro e noroeste da Rússia.

Desenho representando o que seria a antiga Kiev
Na passagem para o século XX, ainda era um país muito atrasado. A imensa maioria de sua população vivia nos campos; suas cidades eram aglomerados labirínticos onde viviam os pobres em casas mal iluminadas, com comida escassa. O regime de servidão somente tinha sido abolido em 1861 e o analfabetismo era generalizado. Os romances de Dostoievski fazem um bom retrato do que era a vida nessa Rússia.

Mas antes ainda, em 1682, tomou posse como czar, o homem que tinha mais de dois metros de altura, Pedro, o Grande. “O reinado de Pedro, o Grande, representou a maior transformação da Rússia antes da Revolução de 1917”, diz o professor de história da Universidade de Yale, Paul Bushkovitch em seu livro “História Concisa da Rússia”. Acrescenta: “Ele realizou em 36 anos uma mudança na cultura russa que levou séculos na Europa Ocidental”. E grande parte de seus feitos diz respeito a ter trazido para a Rússia muito da cultura europeia.

Ponte sobre o rio Neva, 1860
Uma de suas reformas foi a construção da cidade de São Petersburgo em 1703, nos pântanos do rio Neva, no golfo da Finlândia. A construção de São Petersburgo “foi planejada, projetada e organizada inteiramente por arquitetos e engenheiros estrangeiros, trazidos da Inglaterra, França, Holanda e Itália”, diz Marshall Berman em “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Pedro construiu São Petersburgo nos moldes das cidades europeias, num padrão de planejamento urbano advindo do Renascimento. O desenho geométrico e retilíneo dava “ao panorama urbano uma aparência de amplitude horizontal infinita”.

Com suas linhas retas em meio à sinuosidade caótica das velhas cabanas da aldeia anterior, São Petersburgo era considerada por muitos autores como “produto do pensamento” Iluminista. Criou-se, e acentuou-se nas décadas seguintes, a polaridade Moscou - São Petersburgo. Petersburgo representando as forças estrangeiras e ocidentais, a modernidade, a civilização, o novo; Moscou, por seu lado, a tradição, o sagrado, a nacionalidade, o antigo. Este dualismo também alcançava as mentes da intelligentzia russa, chegando ao final do século XIX com duas grandes correntes antagônicas: os Ocidentalistas, defensores da modernidade e os Eslavófilos, defensores da tradição e da cultura nativa.

Selo em homenagem a
Dostoiévsky, com uma
reprodução de pintura de
Vasily Perov
A Literatura era o “campo de batalha da ideologia política e cultural”, como aponta Paul Bushkovitch. As revistas literárias de Puchkin e Senkovski guerreavam entre si sobre suas opiniões de autores russos ou estrangeiros como Goethe e George Sand. O crítico literário Vissarion Belinski, que fazia parte do movimento Ocidentalista, “passou a ser visto na Rússia como o arquétipo do crítico ‘engajado’, que julgava as obras de arte segundo critérios amplamente utilitaristas e de acordo com sua relevância para a reforma da sociedade russa”.

Ele se inspirava nas ideias de Hegel, que dizia que “a arte era uma das manifestações da Ideia na história, junto com a filosofia ou o desenvolvimento do Estado”. A arte que não tinha esse fim utilitarista era insignificante e ruim. Ele considerava que a sociedade russa deveria se aproximar do padrão civilizado do Ocidente - idealizado, é claro. Com esse ponto de vista, Belinski - que se alinhava com os socialistas utópicos - rejeitava totalmente a antiga cultura russa e inaugurava também uma forma de pensar a arte que mais tarde foi utilizada pelos Construtivistas.

Mas em 1863, treze estudantes da Academia de Arte abandonaram a instituição. Ivan Kramskoi e seus amigos se opunham às condições da premiação anual da academia e formaram a “Associação Livre dos Artistas”. Eles rejeitavam os modelos acadêmicos, as regras e convenções da técnica ensinada naquela escola, importados em grande parte da Academia Francesa. Para esses jovens rebeldes, a pintura que se ensinava lá nada tinha a ver com a realidade russa, “que mudava tão rápido em torno deles nos anos 1860”, diz Bushkovitch. Eles e outros artistas pensavam que se tinham que se inspirar em algum modelo europeu, era no pintor francês Gustave Courbet ou nos realistas alemães. Nessa década a pintura russa realista retratava a vida em seu próprio país, como o fizeram Ilya Repin, Vladimir Stasov e Isaak Levitan.

Entre aquelas duas grandes correntes de pensamento (Eslavófilos e Ocidentalistas) foram se gestando miríades de movimentos artísticos, que também acompanhavam o desenrolar da luta política e ideológica que levou à Revolução de Outubro de 1917. Do final do século XIX até à primeira década de 1920 os debates em torno desta questão - a assimilação ou não da cultura europeia - eram muito intensos dentro do mundo artístico russo. Mas uma grande parte dos artistas, em contato com as novidades francesas se deixaram influenciar por elas e levaram as novas estéticas artísticas às suas últimas consequências, inspirados pelo espírito revolucionário que incendiava o país e criava esperança no futuro. “Una de las metas esenciales de todos los artistas de principios del siglo fue incorporar lo experimental - tan característico de los ámbitos científicos - al mundo del arte”, explica Lourdes Cirlot em “Las vanguardias artísticas en el siglo XX”.

"O galo e a galinha", pintura em estilo
raionista, de Larionov, 1912
Matisse, Cézanne, Manet, Gauguin e depois Picasso, com seu Cubismo, tiveram grande influência sobre os artistas russos, que também buscaram formação na França. Também mantiveram uma constante interrelação com correntes estéticas diversas, da França e Alemanha. Os franceses já haviam inaugurado a pintura Impressionista, que depois gerou outros movimentos como o Pontilhismo e o Fauvismo. Na Alemanha, o movimento “Die brücke” (A ponte) já dava os primeiros passos do Expressionismo alemão.

Os italianos, em 1909, inauguraram o Futurismo, movimento que foi liderado por Filippo Marinetti, que depois se rendeu ao Fascismo. Do Futurismo italiano e do Cubismo francês, os russos criaram o movimento conhecido como Raionista, no começo do século XX. Em 1914, Kasimir Malevich cria na Rússia o seu Suprematismo, corrente que abria espaços largos para a Abstração, que já havia sido iniciada por Vassili Kandinsky. Outros artistas russos já haviam passado pelo Raionismo, pelo Simbolismo…

"Tribuna de Lenin", projeto de
El Lissitzky, 1920
Veio a Revolução de 1917. Naqueles tempos de radicalismos, para “os artistas, este era o sinal para a exterminação da odiada velha ordem e a introdução de uma nova, baseada na industrialização”, diz Camilla Gray em seu livro “O grande experimento - Arte russa - 1863-1917” (Camilla Gray foi uma bailarina inglesa que visitou a URSS pela primeira vez em 1955 e deixou como legado uma rica pesquisa sobre a vanguarda russa). “A revolução deu um senso de realidade às suas atividades e uma direção, longamente aguardada, às suas energias - uma vez que não havia, em suas mentes, nenhuma dúvida que os impedisse de identificar suas descobertas revolucionárias no campo artístico com essa revolução econômica e política”.  

A Revolução acendeu verdadeiras fogueiras no coração dos artistas. Malevitch, Rodtchenko, Maiakovski e Tatlin, dentre muitos outros, tomaram em suas próprias mãos a reorganização da vida artística russa enquanto anunciavam que estava terminada a fase da “pintura de cavalete” que eles associavam ao sistema burguês: agora eles tinham as ruas para pintar, as praças e pontes, como arena de suas atividades artísticas.

Nos quatro primeiros anos pós-revolucionários conseguiram montar museus e escolas de arte por todo o país, assim como salas de teatro e de concerto. Foram eles que decoraram as ruas para as celebrações de Primeiro de Maio e do aniversário da Revolução. Artistas, atores, escritores, músicos e compositores se empenharam em organizar espetáculos de arte para festejar essas datas. “Trens decorados com temas revolucionários foram enviados para o front levando notícias da Revolução política e artística para todos os cantos do país”, conta Camilla Gray.

Vladimir Tatlin
Em 1919, o Departamento de Belas Artes encomendou a Vladimir Tatlin o “Monumento à III Internacional”. Era um projeto para ser erguido no centro de Moscou.Tatlin trabalhou neste projeto de 1919 a 1920, construindo um modelo em madeira e metal. Esta obra foi exibida no VIII Congresso dos Sovietes em dezembro de 1920. Foi este o primeiro símbolo do movimento Construtivista, que se tornou modelo para as esculturas de Naum Gabo e os móbiles de Alexander Rodtchenko.

Camilla Gray, que teve acesso aos esboços e projetos, assim descreve o “Monumento à III Internacional”, de Tatlin:

O monumento de Tatlin era para ter duas vezes a altura do Empire State Building. Seria executado em ferro e vidro. Uma armação espiral em ferro apoiaria um corpo formado por um cilindro de vidro, um cone de vidro e um cubo de vidro. Esse corpo seria suspenso sobre um eixo assimétrico dinâmico, como uma Torre Eiffel inclinada, que prolongaria, assim, seu ritmo espiral, espaço adentro. Tal ‘movimento’ não iria limitar-se ao desenho estático. O corpo do próprio Monumento mover-se-ia literalmente. O cilindro deveria girar sobre seu eixo uma vez por ano: a esta parte do edifício seriam destinadas atividades tais como: palestras, conferências e reuniões do congresso. O cone deveria completar uma revolução uma vez por mês e abrigar atividades do executivo. No topo, o cubo deveria completar uma volta completa em seu eixo uma vez por dia, e ser um centro de informações. Iria constantemente transmitir boletins, proclamações e manifestos - por telégrafo, telefone, rádio e alto-falante. Como traço singular, uma tela ao ar livre, iluminada à noite, deveria constantemente retransmitir as últimas notícias; uma projeção especial deveria ser instalada para que, em tempo nublado, pudesse lançar palavras no céu, anunciando o lema do dia.”

O projeto nunca foi executado. Os tempos eram de profunda penúria, pois a Rússia estava passando por um período de muita fome, causada pelos longos anos da guerra civil e dos ataques estrangeiros à recém-inaugurada nação soviética. Mas os artistas construtivistas eram férteis na criação de seus projetos.

Maquete do Monumento à III Internacional, de Vladimir Tatlin,
realizado entre 1919 e 1920
CONTINUA ... ----------->

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Pequena história do autorretrato - final

"O desesperado", Gustave Courbet, óleo sobre tela, 1843-45

"O bocejo", Masserchmidt
Finalmente, chegamos ao final da leitura do livro “Histoire de Moi”, de Yves Calméjane.

Na parte final de seu livro, o autor vai passando rapidamente por diversos artistas do século XVIII ao século XX, passando por Jacques-Louis David, Eugène Delacroix, Gustave Courbet, Gauguin, Van Gogh, Lucien Freud...

Mas me pareceu que vale a pena pinçar um artista dentre os diversos, para falar um pouco mais dele... Trata-se de Franz-Xaver Messerchmidt.

Escultor austríaco, Franz-Xaver Messerchmidt (1736-1783) considerava as caretas e outras deformações da face humana como tradutoras de disposições espirituais. Isso se tornou uma obsessão para ele de tal forma que tentou criar uma espécie de sistema científico produzindo uma série muito precisa intitulada “Rostos de personagens”, que acabaram por torná-lo bastante conhecido. Messerchmidt buscou traduzir em escultura os movimentos da alma expressos na face humana. Trabalhou nisso até sua morte. Foi encontrado em seu ateliê de Bratislava sessenta e quatro “extraordinários” autorretratos, em diversos materiais, de alabastro a mármore, chumbo e estanho.

Quarenta e nove destas esculturas foram expostas em 1793. Uma delas se encontra hoje no Museu do Louvre em Paris e tem como título “Homem de mal humor”. Messerchmidt criava suas peças a partir das expressões de seu próprio rosto, diante de um espelho.

"Caretas", Masserchmidt
O homem Franz-Xaver Messerchmidt sofria de alucinações constantes e tinha sentimentos de que estava sendo sempre perseguido. Dizia que era vítima de espíritos maliciosos e que suas esculturas tinham as feições adequadas para repelir as forças perversas que o atacavam. Por isso também ele esculpia as expressões de seu próprio rosto, numa “prática frenética” de se autorretratar.

Yves Calméjane lembra de uma frase do poeta e ator teatral francês Antonin Artaud, que também reproduzimos aqui:

“Nós escrevemos ou pintamos, esculpimos, modelamos e criamos só para sair do inferno!”

Na parte final do livro, o autor francês também faz um destaque inusitado: em termos de auto-imagem ninguém superou Adolf Hitler, que encomendou a seu fotógrafo particular cerca de 5 mil retratos! E lembra que uma das frustrações do ditador nazista era ter sido um pintor mediano...

Saltamos do período sangrento da Guerra para os dias atuais...

Estamos em 2017 e NUNCA, em nenhum tempo da história mundial se fez tantos autorretratos quanto tem sido feito com esta verdadeira febre dos chamados selfies… Um mar de selfies invadem as telas de computadores e smartphones, preenchendo as redes sociais com inumeráveis “egos” que se mostram a quem quiser vê-los, num festival de sorrisos e de angústias…

Estranho mundo povoado de milhões de solitários” - conclui Yves Calméjane - “que fazem retomar a questão de todos os artistas desde os primórdios e que um, entre eles, Paul Gauguin, expressou no título de seu último quadro-testamento”:

De onde viemos?
O que somos?
Para onde vamos?


Autorretrato feito na prisão, Jacques-Louis David
......
Autorretrato de 1837, Eugène Delacroix
Autorretrato de 1893, Paul Gauguin
...
Autorretrato de 1889, Vincent Van Gogh
Autorretrato de 1985, Lucien Freud

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Pequena história do autorretrato - parte VI

"Dança da Música no Tempo", Nicolas Poussin, 1638, óleo sobre tela
UM FRANCÊS


Nicolas Poussin (1594-1665), pintor francês radicado na Itália, é a própria imagem do Classicismo, na opinião de Yves Calméjane. Há dois autorretratos seus, um em Berlim e outro em Paris. Mas há um desenho em sanguínea que se encontra atualmente no British Museum de Londres que é muito mais revelador da “grandeza e nobreza desse pintor contemporâneo de Corneille e Descartes” (ver imagem abaixo).


É uma dor amarga, aquela do estóico prestes a ceder à mais dura pena”. Dá para perceber o desespero em seus olhos e sua boa parece que vai soltar um palavrão. Este homem sofre fisicamente e espiritualmente por estar à beira do desespero no qual vai cair. “Ele luta com Deus”.


Pouco se sabe sobre o começo  da vida de Nicolas Poussin, mas sabe-se que desde cedo ele guardava uma verdadeira paixão pelo desenho.


O pai de Poussin havia se arruinado com as guerras religiosas na França. Sem recursos, ele se estabelece na região da Normandia, onde se casa. Nasce Nicolas Poussin, que pode estudar com um professor de latim. Nesse período chega até Andely, onde viviam Poussin e sua família, um pintor que foi encarregado de alguns trabalhos de pintura na igreja local. Era Quentin Varin. Poussin consegue dos pais autorização para estudar desenho com o pintor e foi com ele que aprendeu também os primeiros ensinamentos sobre arte.


Mas seu desejo de crescer na arte, aquela vontade que move a gente pelo mundo, fez Nicolas Poussin partir para Paris, em algum dia de 1612. Ele vive com muita dificuldade, passando de um ateliê a outro… Conheceu e ficou amigo de Philippe de Champaigne e descobriu a arte do pintor italiano Rafael di Sanzio.


Um certo cavalheiro de Poitou se ofereceu para ajudá-lo, hospedando-o em sua terra. Mas Poussin foi tratado como um criado. Resolveu voltar à Paris, a pé, onde voltou mais uma vez a viver uma miserável existência, pintando aqui e ali… O princípio de carreira de Poussin foi muito duro! Exausto e doente, resolveu voltar à casa de seus pais, para se recuperar. Mas todas essas dificuldades não apagaram a chama da arte em seu coração. Poussin era de fato um apaixonado pela arte e toda a sua vida o demonstra.


Restabelecido, decidiu partir para a Itália. Roma era seu destino. Em Paris ele tinha ouvido falar tanto dos mestres italianos que resolveu ir conferir de perto e ver como aprender com eles.


Em sua primeira viagem à Itália, chegou até Florença e lá viu confirmadas suas expectativas de que seria lá que ele iria se desenvolver. Voltou à França, e trabalhou um pouco em companhia de Philippe de Champaigne em algumas encomendas para o Palácio de Luxemburgo em Paris. Depois partiu novamente em direção à Roma, sua obsessão. Mas foi preso por dívidas na cidade de Lyon. Novo retorno à Paris onde consegue uma encomenda dos Jesuítas, uma série de quadros sobre a vida de São Francisco Xavier, que ele pinta em uma semana. Por volta de 1622 ele conhece Giambattista Marino, um poeta napolitano que a Corte de Maria de Médicis havia acolhido em Paris. Poussin executa alguns desenhos para ele sobre temas retirados de Ovídio. Giambattista dá a Poussin o gosto pelos temas inspirados na cultura latina, que ele irá pintar durante toda sua vida.


Mais uma vez de volta a Roma, Poussin chega lá no começo de 1624.
Autorretrato em sanguínea, Poussin


Seu novo amigo, Giambattista Marino, traduziu bem o estado de espírito de Poussin naquela época: ele era animado por uma “fúria do diabo”. Nicolas Poussin acabou ficando sozinho em Roma, pois seu amigo partiu para Nápoles, sua terra natal, onde morreu no ano seguinte. Como em Paris, Poussin vive em Roma em verdadeira miséria. De vez em quando vendia um quadro, muito mal pago. Mas trabalhador furioso, ávido de progresso, ele frequentava as escolas para bons pintores. Aperfeiçoa seus conhecimentos de perspectiva e faz dissecações de cadáver para aprender anatomia.


Ele procura sua veia artística e recusa totalmente o estilo dos caravaggistas, por exemplo. Ele odiava Caravaggio! Dizia que ele tinha vindo ao mundo para destruir a arte da pintura: “uma pintura tão vulgar não pode ser feita senão por um homem vulgar. A feiúra de suas pinturas irá levá-lo ao inferno”, disse Poussin. “A morte da Virgem” de Caravaggio tinha horrorizado Nicolas Poussin, que acabou seguindo o caminho da pintura clássica, esfumada, linear.


Poussin continuava vivendo na pobreza. Durante muitos anos ele procurou desesperadamente por ajuda e por encomendas. Caiu de novo doente, desta vez com o “mal da França”, a sífilis. Esta doença o fará sofrer muito, alternando períodos de certa tranquilidade com outros onde sentia muitos incômodos físicos. “Extremos”, como ele disse. Foi exatamente neste período que ele pintou seu autorretrato em sanguínea… Por este desenho, dá para perceber seus sofrimento, sua humilhação e sua incapacidade para trabalhar…


Mais uma vez ele encontrou alguém que veio ajudá-lo: o cozinheiro francês Jacques Duguet, que era de Paris. Duguet foi procurar algum médico que pudesse ajudar Poussin, enquanto sua esposa e filha aliviavam bondosamente as suas dores. Em troca da bondade dessa família, Poussin ensinou pintura a um dos filhos, Gaspard. Em seguida, Poussin se casa com a filha mais velha de seu amigo, Anne-Marie. Segundo seus biógrafos, Poussin finalmente conheceu repouso físico e mental após seu casamento e pode enfim se consagrar plenamente à sua paixão, a arte.


O ano deste autorretrato desenhado por Poussin representa uma reviravolta em sua vida. Ele retoma seu caminho, em direção à Arcadia, aos tempos dourados da Roma antiga, ao clássico modo de vida, à filosofia clássica.


UM INGLÊS


Do outro lado do Canal da Mancha, a atmosfera era mais descontraída.


"O pintor e seu cão", William Hogart, 1745
William Hogarth (1697-1764) era inglês e adorava cães. Assim que pintou um autorretrato, não deixou de pintar junto seu cão. Em 1745 ele se pinta vestido com roupas de traballho, repousando sobre obras de Shakespeare, Swift e Milton. Neste quadro pode-se ver sua paixão pelo teatro.

Seus quadros obtiveram muito sucesso na sociedade inglesa em plena expansão, mas que também guardava disparidades sociais terríveis. Hogarth se tornou um sátiro feroz dessa sociedade britânica, através de seus quadros que ele apelidou de “peças morais”.

Ele colocou o teatro na pintura, e também a pintura no teatro. Fazendo isso, ele também mostrava sua crítica social: “Minha pintura é minha cena e meus personagens são atores que representam uma pantomima silenciosa”, disse ele.

Na primeira de suas telas-teatro, a “A carreira de uma prostituta”, de 1731, pintura feita em 6 telas, ele conta a vida edificante de uma prostituta inglesa. Em seguida, pintou “A carreira de um vagabundo”, de 1735, também dividido em 8 telas. onde ele descreve a vida, edificante e desastrosa, de um homem jovem que não sabe resistir ao jogo, ao álcool e às mulheres. O quadro-teatro seguinte é “Casamento da moda”, 1743, em 6 telas, onde ele se inspira numa comédia de John Dryden, um antigo poeta e escritor inglês.


Ele obtém sucesso imediato com esses espetáculos em tela, que ele também divulgava em gravuras sobre papel que se propagaram pelas colônias britânicas e por toda Europa. Ele foi logo copiado e pirateado por toda parte. Sabendo disso, William Hogarth desenvolve uma verdadeira campanha que acaba gerando uma lei, em 1735, que carregava seu nome, consagrada à proteção do direito autoral.

Hogart também passou a pintar retratos, inclusive retratos de grupos, além de cenas cotidianas. Ele recusou pintar cenas religiosas e históricas, pois ele tinha aversão, misturada a um pouco de xenofobia, em relação ao que pintavam os mestres franceses e italianos.

Em 1757 ele pinta um novo autorretrato, em frente a seu cavalete, numa tela sem nenhuma decoração (como seu primeiro autorretrato), onde o centro de tudo é ele e seu ofício de pintor. Seu pequeno cão não está presente aqui. Ele não queria descrever nada mais do que pintou. Na época, já havia recebido um título como pintor da parte do rei George II.

Autorretrato de 1757, William Hogarth

Gravura inspirada na série "A carreira de um vagabundo", de Hogarth

"Casamento da moda", uma das telas-teatro de William Hogarth, óleo sobre tela