quarta-feira, 13 de maio de 2020

TEMPO, TEMPO, TEMPO CINZA

Nestes tempos terríveis de Covid-19, tenho estudado e lido muito sobre as Belas Artes. Hoje, lendo Fayga Ostrower, me veio a ideia que passo a por em prática aqui, retomando meu trabalho neste blog. Talvez inspire, talvez deprima. Porque não trago imagens de alegria, mas pinturas com temas de morte, doença, fome, desemprego… toda essa desgraça que nos atinge. Começo com Courbet, pintor francês, de quem compartilho a admiração com meu amigo Henri, de Paris.

Aqui Courbet retrata uma cerimônia fúnebre, sem nenhum tipo de floreio mitológico ou religioso. Não há anjos, nem figuras alegóricas. Nada! A morte mostrada com sua cara, nua e crua. Pessoas estáticas, em silêncio, de luto. Atrás delas um horizonte tão pesado quanto os sentimentos das pessoas. É uma pintura de uma tristeza imensa, como são as fotografias dos buracos abertos no cemitério da Vila Formosa em São Paulo ou de algum cemitério de Manaus. Junto ao féretro, acompanhando tudo, um cãozinho, como é comum acontecer de aparecer, em qualquer circunstância de uma pequena cidade como Ornans, que visitei com meu outro amigo Pierre Ringot no ano passado… “Enterro em Ornans” é a melancolia destes dias em que milhares de pessoas estão sendo enterradas solitariamente. Ninguém querido dando o adeus final. Pessoas que nunca se viram em vida, dividindo a mesma vala comum dos desgraçados... Além do coveiro talvez um pequeno cão vira-lata apareça para a despedida... ou nem mesmo um cão...

ENTERRO EM ORNANS, Gustave Courbet, 1849

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Manifesto "Brasil em transe"

80 TIROS!, Mazé Leite, óleo sobre tela, 70x50 cm, 2019
Somos artistas cujo pensamento pictórico busca se orientar pelo movimento da luz sobre as coisas do mundo. Nosso trabalho é reflexo do estudo técnico e da observação dos efeitos da luz sobre a realidade. Seguindo os conceitos pictóricos ensinados há muito tempo por Rembrandt, as cores que usamos e as formas que pintamos buscam se submeter às direções da luz. Mas somos artistas brasileiros vivendo em um país cuja luminosidade colorida interfere diretamente sobre nossas pinturas. Seguindo este caminho, nos inspiramos na eterna dança do claro e do escuro. Podemos comparar esse tipo de percepção ao de músicos como Hermeto Pascoal e Sivuca, retratados por mim nesta exposição, que conseguiam extrair sons musicais de qualquer coisa. Para nós, qualquer coisa é potencialmente bela, se percebemos através das aparências o deslizar dos movimentos explícitos, ou sutis, da luz.
Por isso, a realidade sempre será nossa maior e inesgotável referência. Seja a realidade física, seja a realidade de nossa existência como seres que ocupamos um determinado espaço e tempo. Na minha visão, a arte jamais esteve isolada do restante da vida, em qualquer período histórico. Quando o homem pré-histórico pinta um bisão na parede de uma caverna, está expressando um símbolo do seu mundo, mas também seu modo de vida. Quando Michelangelo pintou a Capela Sistina, ilustrou uma ideia, uma cosmologia baseada em uma visão de mundo. Eugène Delacroix, com sua “Liberdade guiando o povo”, pintou um verdadeiro manifesto, indicando um novo tempo que precisava nascer. Sim, a arte tem um papel importante no mundo: elevar o espírito humano, o que muitas vezes quer dizer, provocar deslocamentos, fazer refletir.
Por isso, as obras desta exposição são a expressão individual de cada um de nós sobre o Brasil dos dias atuais. De um lado, um país rico culturalmente, imensamente criativo, musical, expressivo, miscigenado, multicolorido. De outro, um país em transe caótico: político, econômico, ambiental, social, cultural... Os dias atuais no Brasil são de medo: da volta dos dias terríveis da censura, dos ataques à democracia, à rica cultura brasileira, ao seu povo, ao seu meio-ambiente, ao seu futuro.
Após a eleição de Bolsonaro, houve uma reação unânime entre nós artistas do Ateliê Contraponto: esta quadrilha que chegou ao poder central no Brasil é nefasta. Neste ano e meio de trabalho, enquanto pintávamos nossas telas para esta exposição, Marielle Franco foi assassinada, Lula foi preso, Bolsonaro foi eleito, o conservadorismo se aprofundou, o desrespeito aos direitos humanos também. Duas barragens de lama despejaram detritos sobre Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. A polícia militar mata mais jovens negros do que nunca, nas periferias do Brasil. E há poucas semanas, vimos o horror da floresta amazônica pegando fogo. Isso tudo nos afeta como sociedade e, obviamente, nos afeta como artistas.
Como artistas, expressamos nossos sentimentos frente a tudo o que está acontecendo. Como lidamos com imagens, pintamos! Mas como seres humanos, e brasileiros, gritamos contra o retrocesso que estamos sofrendo, contra os conservadorismos de todos os tipos, contra todas as injustiças, incluindo a injusta prisão do presidente Lula. Lula livre!
Mazé Leite
Ateliê Contraponto de Arte Figurativa
Paris 2019