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Claude Monet: "Le bassin aux nymphéas, harmonie verte",1899 |
Era o dia de ver os Impressionistas.
O tempo está seco e quente demais para o inverno. O mês de
agosto ainda não trouxe nenhuma frente de ar polar, como deveria acontecer. Nem
mesmo frente fria tem aparecido por aqui. Mas o dia amanheceu claro, um sol que
começa a deslocar seus raios de luz em direção à parede à direita da minha
sala, como acontece todo ano quando estamos a um mês do fim do inverno. A
primavera chega em setembro, mas já se podem ouvir sabiás cantando
antecipadamente.
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Autorretrato, Leon Bonat, 1855 |
A cidade amanheceu congestionada. Como sempre. A moça do rádio
informa, monótona, que há mais carros na rua do que normalmente, “para o dia e
para o horário”. Pontos de ônibus recebem pessoas às dezenas, desde às quatro
horas da madrugada. Pessoas que vão trabalhar, que vão ao médico, que vão de um
lado a outro, horas e horas de tempo gastos dentro dos ônibus, dos metrôs
apinhados ou dos trens abarrotados. Mas mais abarrotadas estão as ruas: de
carros com uma pessoa dentro.
Uma ou outra bicicleta se arrisca entre ônibus e automóveis
guiados por motoristas tensos. Há uma bicicleta branca aqui perto, uma moça morreu. Um ônibus passou por cima. Dela e da bicicleta. Que está lá em sua
branqueza, parecendo um fantasma, mostrando o quanto esta cidade é dura com os
mais fracos.
Motoqueiros loucos, que nem cachorros, doidos para entregar
suas encomendas, passam ziguezagueando entre os carros. Xingando e sendo
xingados. O meu ônibus sobe a rua Teodoro Sampaio, devagar, cansado. O cobrador
chama todas as mulheres de “minha linda”, “gata”, “amor”. E os homens de
“amigão”, “queridão”... Ele procura sua cota de felicidade nesse mundão cão. As
pessoas gostam: as mulheres sorriem, os homens se sentem parceiros. Nem tudo é
selva em meio a tantas torres! Ou como dizia meu poeta Drummond “uma flor
nasceu na rua!”
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Retrato de Fernand Ralphen, Auguste Renoir |
Ônibus, depois metrô. Pessoas ainda indo pro trabalho. Toda
hora há turnos de trabalho sendo iniciados nesta metrópole. O meu começa às
13h. Mas ainda é cedo e eu vou para o centro. No meio dessa confusão de pernas
e braços que correm em todas as direções, me lembro de novo de Drummond: “Preso
à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.”
Chego no Centro Cultural Banco do Brasil. Há alguns oásis em
meio a tanto deserto e de vez em quando uma brisa fresca sopra e nos permite
respirar. Mesmo com a garganta seca.
Uma hora na fila. Leio “Zona Leste”, de
Jeosafá Gonçalves.
Converso um pouco com meu amigo. Ouço a conversa da senhora ao lado, tagarela,
voz que arde nos nossos ouvidos. Meu amigo pára de ler seu “The Prince” de
Maquiavel, pois a lenga-lenga da senhora tira a concentração. Conversamos mais
um pouco. O mundo passa na calçada: pessoas no fluxo e no contrafluxo, indo
trabalhar. Ou mesmo vagabundos que não tem pra onde ir. Todos passam ali.
Olhamos calados. Nós somos todos eles.
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Público na fila hoje, no CCBB |
Dez horas, a porta grande se abre. Abre um mundo, um outro
mundo. Os Impressionistas de Paris, do Museu d’Orsay que visitei algumas vezes, estão aqui à nossa frente, com suas cores claras, suas luzes quase nos
incandescendo. O prazer estético vai aumentando. Paramos diante de Boldini e
seu “Conde Robert de Montesquiou”, muito bem trabalhado, elegante. A pintura e
a figura. Giovanni Boldini era grande retratista, tanto quanto
John Singer Sargent. E Fantin Latour com sua “Família Dubourg”, pintada em 1878. Eu e meu
amigo paramos em frente a esse quadro melancólico. “Parece uma família em
luto”, disse ele. Concordei. As expressões nos rostos são pesadas. A pintura,
perfeita. Ele era realista, como Gustave Courbet, que ele conheceu. E como
Boldini e Sargent. E Carolus-Duran, um dos mestres de Sargent. Soube que Fantin
Latour se casou com Victoria Dubourg, da família pintada por ele.
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Homem com cinto de couro, Gustave Courbet |
Renoir, Toulouse-Lautrec, Degas, Monet e Manet estão ali ao
redor de nós, com suas cores brilhantes, suas sombras coloridas, suas
pinceladas que não buscam descrever nada, apenas mostrar o suficiente. As
paisagens pintadas por eles, pelo interior da França ou à beira do rio Sena, parece
que nos transportam para aqueles lugares de um tempo que já passou. Uma certa
saudade nos toca de leve, como se conhecêssemos cada lugar daqueles, como se
tivéssemos assistido pessoalmente o momento em que Monet pintou aquela
paisagem com casas brancas de neve. Ou o momento em que Stanislas
Lépine pintou aquela moça subindo uma rua de Montmartre com
uma cesta de verduras nas mãos enquanto duas outras mulheres parecem negociar
um litro de leite.
Paramos em frente ao “Homem com cinto de couro”, de
Gustave Courbet. Observamos mais uma vez em detalhes todo o quadro, emoldurado
lindamente. Era um dos autorretratos de Courbet, que fez tantos. Ele era
realista, como Caravaggio. Ele certa vez alugou uma vaca e levou para dentro de
seu ateliê
em Paris.
Queria pintar a vaca, com ela ali posando para ele. Do mesmo
jeito que Caravaggio também alugou um carneiro dos bandos que atravessavam Roma
à noite, levou para seu ateliê e pintou-o sendo alimentado por João Batista.
Este quadro, para quem quiser ver de perto, está na
exposição do Masp.
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"Autorretrato com fundo rosa", Paul Cézanne |
Mas voltemos aos impressionistas. De vez em quando um
retrato pintado por Renoir cruzava nosso caminho. Um menino sobre um fundo
vermelho nos chamou a atenção. Seus olhos eram suaves, inteligentes. Como os
olhos do “Autorretrato com fundo rosa” de Paul Cézanne. Esse olhar, profundo e
indecifrável, sensibilizou o poeta Rainer Maria Rilke, que dele dissera:
“É um homem com o perfil direito voltado em 1/4 para nós, e
que olha. Seus cabelos escuros, espessos, estão ocultos atrás das orelhas de
modo que o contorno do seu crânio está à vista. E a grandeza, a
incorruptibilidade desse olhar imparcial é confirmada de modo quase tocante
pelo fato de que ele se representou a ele mesmo, sem nenhuma interpretação ou
julgamento de sua expressão, com objetividade humilde, com a fidelidade e a
curiosidade de um cão que se vê no espelho e diz: ‘Aqui tens um outro cão’.”
Sempre que vejo autorretratos pintados por esses artistas,
fico pensando que eu posso estar olhando para um espelho: “Je est un autre”,
como disse o outro poeta, Rimbaud, não é? Aquele velho desdentado que vimos
passando lá em frente ao CCBB alheio àquela fila não é uma parte de mim mesma,
dos muitos que habitam em mim? O olhar de Cézanne é o olhar do meu amigo de "alma inquieta" ao meu lado...
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A Lavadeira, Paul Guigou |
Dentro do CCBB as indicações nos levam às salas. Tudo está
sob controle, as filas, as quantidades de pessoas que entram em cada sala, a
temperatura, a umidade... Estava em 54%, disse um dos funcionários. Era uma exigência dos administradores do Museu d'Orsay: que se cuidasse muito bem dessas preciosidades aqui em nosso Brasil.
De cima
para baixo, mais impressionistas; os conhecidos e aqueles dos quais nunca ouvi
falar, como Paul Guigou e sua “Lavadeira”. Os impressionistas estavam voltados
para a luz. Era a luz que importava. De jeito diferente do de
Rembrandt,
Vermeer,
Caravaggio, Tiziano... As sombras impressionistas são coloridas. Nada
de preto em quase nenhum lugar. A não ser nas roupas das moças dos cabarés de
Paris, lindas em sua feminilidade livre, expostas aos olhos e aos braços dos
freqüentadores do cabaré Chat Noir, ou do Moulin Rouge, ou do Moulin de
La Galette... Ao alcance da
palheta de Toulouse Lautrec.
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“Conde Robert de Montesquiou”, Giovanni Boldini |
No piso do subsolo, os últimos quadros. Naturezas-mortas, uma de Courbet e outra de Fantin Latour, lindas demais de se ver! Nos perguntamos, eu e meu amigo: como pode ser que um homem preso tenha pintado aquelas flores tão claras, tão belas, num ambiente tão sombrio? Gustave Courbet pintou várias naturezas-mortas enquanto estava preso por seu envolvimento com a Comuna de Paris... Na sala derradeira, um Van Gogh que representa um bando de pessoas numa casa de dança em Arles, onde ele viveu. Paul Gauguin, Sisley, Pissarro... Quadros pontilhistas, quadros mais próximos aos próximos modernistas.
Acabou. Saímos de novo para as ruas, o sol já no zênite,
fazia com que tudo parecesse uma imensa tela impressionista, impregnada de luz. Almoçamos no
“Bancários”, restaurante à moda de antigamente quando o centro de São Paulo era
lindo e leve. Mesas na calçada, bem forradas com toalhas brancas, lembrando os
cafés de Paris... Brasileiramente, pedimos uma feijoada. A conversa era boa, a
alma estava lavada. Os pulmões respiravam, os olhos “em festa”.
Eu estava feliz! Nós ficamos muito felizes ao passar por
esses impressionistas! E desejamos que essa felicidade pudesse tomar conta da alma de todos os brasileiros que possam ver esta exposição...
A Arte faz isso com a gente: toca o coração...
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Camponesas bretãs, Paul Gauguin |