segunda-feira, 8 de julho de 2024

Tempo de tecer comunidade

O mar de morros e montanhas de Cunha

20/09/2021

Minha primeira participação nas reuniões domingueiras do grupo Eco-comunidade Bem-Viver se deu no começo de setembro. Como se tornou comum nesta pandemia, reunião virtual, onde vemos nossos rostos e ouvimos nossas vozes, basicamente. E porque não vemos corpos ao vivo, tête-à-tête, nos escapam algumas sutilezas de gestos, de olhares, de pequenos movimentos musculares de rostos reagindo, movimentos de mãos. Como apenas o microfone de quem fala está ligado, não ouvimos espirros, tosses, pigarros, murmúrios. Mesmo assim é um passo no movimento em busca da tribo.

As primeiras imagens da sala virtual me mostraram, logo de cara, uma característica bela deste grupo: a grande maioria formada por mulheres, fortes, destemidas. E os homens que se agregaram possuem todo um profundo respeito por esta maioria feminina. Com um detalhe a enfatizar também: todas e todos dispostos a uma vida coletiva com respeito à diversidade de gênero, de raça, de credo, de costumes. As primeiras conversas nas quais me incluí falavam da importância de priorizar antes de tudo, o grupo, o coletivo. De recuperar a dimensão da ideia de comunidade. Uma disponibilidade geral de construção de afetos, de cuidado, de generosidade e solidariedade uns com os outros. Não há como não fazer uma ligação com tempos longínquos onde o matriarcado prevaleceu em algumas sociedades.

Olhando para esse projeto coletivo, também miro os exemplos das populações indígenas e quilombolas que nos mostram formas diferentes de estar no mundo em sociedade. Até mesmo os projetos de cooperativas e formas coletivas de produzir incentivadas pelo MST são alento e exemplo nestes dias. São fonte de inspiração, porque carregamos dentro de nós esta memória de vida comunitária como forma de existir, em colaboração, em co-habitação, quando observávamos os ritmos da Natureza como ritmos dos nossos próprios corpos, quando nossas atividades em comum abriam espaço temporal para o fruir da vida. Esta memória cultural é preciso resgatar nos dias de hoje: o ritmo do existir coletivo incluído nos ritmos da natureza, do tempo, das sazonalidades naturais. Aquela forma de existir que poupava os esforços de todos: bastavam poucas horas de trabalho para nos suprir e podíamos cantar, dançar, sonhar, criar, ter prazer, gozar a vida.

Semanalmente, e quase diariamente, este grupo vai se fortalecendo, se aproximando e criando laços cada vez mais íntimos. Isto é necessário, um passo prioritário antes da execução inicial de compra de uma terra. É preciso ir se alinhando, se conhecendo, construindo os combinados que vão apertando os laços da confiança, nesse processo conjunto de abrir o coração. Porque somos humanos, cada um com sua singularidade, seus mundos vividos, com seus potenciais e com seus limites. A riqueza maior disso tudo é juntar tanta gente diferente, mas sem medo de se ser quem se é, porque todos se dispõem ao convívio. Quase um casamento.

Há muita ousadia nesta convergência de vidas, porque a proposta é muito diferente do modo de vida mais comum hoje, no mundo dominado por valores capitalistas da competição e da produção em escala gigante. Pessoas sendo moídas nessa máquina desumana que impõe formas de viver individualizadas e egóicas. Eu vivo num prédio de dez andares de dois blocos com 40 apartamentos cada. Não conheço meus vizinhos e o contato social se reduz a cumprimentos formais no elevador. Cada um vive em sua própria cápsula, relegado ao medo e desconfiança do outro, pertencendo a um coletivo gigante (esta cidade de 12 milhões de habitantes), um bando de gente insegura que cada vez se tranca mais e constrói muros cada vez mais altos. E toma remédios cada vez mais fortes para suportar a carga diária desse sistema moedor de gente.

Então celebrar esse encontro se fez necessário! Dia desses, reunidos na casa de uma das mulheres onde o almoço foi preparado por todos, enquanto as conversas se desenvolviam – e o afeto também – realmente festejamos e brindamos ao nosso encontro, ao nosso casamento. Somos um grupo agora, e o “eu” se transformou em “nós”, mesmo que a “euzinha” aqui seja uma pequena parte desse grupo de “nós”, e isso me fortalece, me alegra, me dá esperança… Acho que nisso também falo por “nós”…

Estamos no momento de tecer essa comunidade, esse sonho coletivo. Pretendemos viver com valores que podemos chamar de pós-capitalistas: pra começo de conversa, abolimos a necessidade da propriedade privada. O grupo irá adquirir um lote de terra onde caibam todos e a todos os projetos coletivos, mas ninguém será “dono” da parte que lhe tocará, sua cota de mil metros quadrados, onde poderá construir sua morada, seu jardim, seu quintal. A propriedade como um todo será coletiva, da Associação Eco-comunidade Bem-Viver. Procuraremos aproveitar o que a terra nos oferece para construção de nossas casas, pretendemos ter nossa própria horta, nosso pomar, nossos pequenos animais parceiros de um modo de vida em que haja troca, reciclagem, cuidado do meio-ambiente. Pretendemos plantar árvores, fazer brotar nascentes de água, usar a energia limpa que vem do sol e dos ventos, na medida do possível.

Será fácil? Nem um pouco! Os desafios são gigantes, são de toda ordem: desde a escolha e a compra de uma terra adequada aos projetos, todas as construções que serão necessárias, a adaptação a valores existenciais diversos do “comum”, e até os pequenos perrengues diários que, sim, surgirão. Mas somos grupo, somos “juntos, somos fortes, somos flecha e somos arco, todos nós no mesmo barco não há nada pra temer”!

Os primeiros passos foram dados!

O começo da mudança

27/11/2021

Era dia 30 de junho de 2020 e eu estava na janela do nono andar do meu apartamento, ouvindo a TV informar que 1.280 pessoas já tinham sido mortas pela Covid-19 em nosso país. Estávamos entrando no quinto mês da pandemia no Brasil e dois cientistas – que acompanhei atentamente nos meses da primeira onda – garantiam que mais mortes viriam pela frente, muitas. Oitocentas mil, um milhão, talvez mais, talvez pouco menos. Olhei pra dentro de casa, era seguro meu pedaço de mundo, minhas quatro paredes. Olhar para fora era ver o perigo lá fora, rondando: um desgraçado ser microscópico que de tão pequeno podia entrar goela abaixo, nariz a dentro e ir invadindo pulmões e sistemas vitais. Travei a respiração, fechei a janela, sentei no sofá, voltei a respirar. Desliguei a televisão e fui pintar meu medo, numa tela que já havia sido iniciada.

Tarde já da noite e o sono não vinha. Liguei a TV de novo, cliquei no aplicativo do Youtube, e avistei uma senda: comecei a dar passos naquela direção que ia me levando virtualmente para mais perto dos passarinhos, das árvores, dos bichos, do galo cantando às cinco da manhã, galo solar anunciando o astro-rei. Em meio àquilo fui vendo gente junta reunida e fui me vendo no meio dessa gente que ainda não precisava, como agora, usar máscaras para se proteger umas das outras. Tempos passados, gente reunida. As velhas tribos em volta da fogueira voltavam a animar minha alma… Anima da mente…

Desliguei a TV, abracei meu travesseiro e me permiti uns minutos a mais de voo do pensamento. Rezei a música do Gil, antes de adormecer: “Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei! Transformai as velhas formas do viver. Ensinai-me, ó pai, o que eu ainda não sei… Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei…”

O dia seguinte amanheceu e o primeiro pensamento eclodiu: – Pra mim chega, vou procurar minha tribo e meu mato!

Mas esse encontro não se faz de uma hora para outra. É preciso pensar, repensar, sentir, procurar. É preciso sonhar muitas vezes, contemplar várias luas, e se perder e se achar, e desistir e ressignificar. É necessário elucubrar, devanear, e até deixar, de vez em quando, que o espírito da cachaça amarela eleve, junto com seus eflúvios, nossos sonhares, como uma fumaça que, subindo em arcos espiralados para o céu, toque o céu, e o céu devolva ao nosso cérebro-coração essas inspirações que surgem somente dessas emanações… “E que essa vida entre assim como se fosse o sol desvirginando a madrugada…”

Os choques de realidade no Brasil destes tempos são terríveis. Trágicos. Olhar para fora nos faz refletir: o que é pior, um micro-organismo impalpável que suspendeu a respiração de todos os humanos? Ou o fantasma bem palpável do fascismo mostrando as babas sangrentas de suas gengivas pustulentas, aliado da morte, irmão da mentira, que estraga toda espécie de vida? Falo isso e ouço a gargalhada cínica que somente Bolsonaro é capaz de dar, como atestou seu próprio rebento há poucos dias. “Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são…”, suspira Macunaíma de Mário de Andrade. Os males do Brasil são assim mesmo, no plural porque múltiplos.

Que preguiça do capitalismo! Essa praga em metástase, como reflete Ailton Krenak, que corrói o mundo inteiro, que destrói as vidas e o planeta. Que batiza com muito dinheiro o um-por-cento, e o resto de todos os outros que entrem na roda-viva da luta pelo ganho da existência. Cada um por si! Mas uma imensa parte desse “cada um” nem migalhas do bolo pode aproveitar… (“Ninguém come dinheiro”, diz o sábio Krenak) Capitalismo que gerou – entre tantas tragédias – a sanha competitiva entre as pessoas, acentuando o egoísmo, exacerbando o individualismo, criando aberrações chamadas de “meritocracia” e de “empreendedorismo”, jogando frágeis sujeitos nas corridas-malucas sobre bikes e motos, arriscando as vidas para dar conta de “uberizar” e “festifudizar” nossas vidas… Palavrões!

29 de agosto de 2021, o sonho se desenrola. Entro em uma rede social e uma das bolhas às quais pertenço pisca uma pequena luz. Eu estava em Tatuí, visitando pessoas queridas, quando resolvi olhar para o pequeno lume que me piscou/pescou: um anúncio chamava “pessoas esquerdistas, defensoras da natureza, dos animais e da vida coletiva” a se juntar numa eco-comunidade. Havia uma reunião naquele dia, virtual, às 19 horas. E eu fora de casa, com internet fraca… Paciência, um segundo contato era possível… Pronto! Passei todas as próximas horas, os próximos dias, habitando os redemoinhos dos meus pensamentos, enquanto ia visualizando a vida coletiva, a fuga da minha soledade, da vida cada vez mais trancada pela criaturinha terrível que agora já matou 600 mil brasileiros e cinco milhões de seres humanos mundo afora…

De vez em quando, neste último ano, descia para a rua, mais ou menos temerosa, mas protegida pela minha máscara. Ia ao supermercado, à farmácia, à padaria. Cruzava às vezes com pessoas que conheço de vista, nesta minha rua, há mais de quinze anos. Muitas delas, nestes quinze anos, compraram bengala, andador, contratou acompanhante. Via meu futuro passando ali a meu lado e o rechaçava! Eu é que não! É você “se olhar no espelho e se sentir um grandessíssimo idiota”! Mas “eu é que não me sento no trono do apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes esperando a morte chegar”! Eu não! Quero encontrar e viver junto com minha tribo, junto da terra, cuidando da terra, plantando água, árvores e nossos alimentos. Quero ajudar a criar uma nova cultura, permanente, permacultura. É minha forma de reafirmar que quero ser parte (como sempre busquei ser) daqueles que pensam “para além da linha-d’água” (mais uma vez gratidão, Krenak!).

No dia seguinte encaminhei minha adesão ao projeto coletivo “Ecomunidade Bem Viver”.

De volta

 
Aqui ao lado desta árvore, meu mundo deu voltas...

Após um longo período ausente daqui, um espaço que tomou vida própria, se mantém a si mesmo, de alguma forma inspirando pessoas por aí afora, estou de volta. Time que está ganhando, técnico não troca jogador... nem gosto de futebol, mas foi a metáfora que me ocorreu. 


Volto a escrever aqui, desta vez de forma mais ampla, com temas que continuarão falando de arte, mas também de vida, de caminhos novos, de mudanças de rumo, de abertura de novos caminhos. Disto tudo aí, e um pouco mais. Talvez.

Começo republicando - agora neste espaço - algumas crônicas que escrevi entre novembro de 2021 e abril de 2023. Precisei fazer uma parada novamente, porque a tarefa que eu tinha pela frente era gigante e me tomaria toda a atenção: construir uma casa numa região montanhosa da cidade de Cunha. Mas paro por aqui, pois o resto será explicado pelas crônicas.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

TEMPO CINZA 11

Hoje é só mais um dia de frio na alma, mas deixo o poeta falar:

"Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
(...)"

Fernando Pessoa

Obra: À JANELA, Alexandr Romanychev, 1968


terça-feira, 26 de maio de 2020

TEMPO CINZA 10

Obra: VELHO NU AO SOL, Mariano Fortuny, 1863
São Paulo, a maior cidade da América do Sul, tem 25 mil pessoas morando na rua.

São crianças, são adolescentes, são mulheres, são homens. E uma grande quantidade de idosos.

Para eles, além de casa, falta tudo. E falta proteção contra o vírus que ameaça agora principalmente os mais pobres e os excluídos da vida.