quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Um olhar sobre os Impressionistas

Claude Monet: "Le bassin aux nymphéas, harmonie verte",1899
Era o dia de ver os Impressionistas.

O tempo está seco e quente demais para o inverno. O mês de agosto ainda não trouxe nenhuma frente de ar polar, como deveria acontecer. Nem mesmo frente fria tem aparecido por aqui. Mas o dia amanheceu claro, um sol que começa a deslocar seus raios de luz em direção à parede à direita da minha sala, como acontece todo ano quando estamos a um mês do fim do inverno. A primavera chega em setembro, mas já se podem ouvir sabiás cantando antecipadamente.

Autorretrato, Leon Bonat, 1855
A cidade amanheceu congestionada. Como sempre. A moça do rádio informa, monótona, que há mais carros na rua do que normalmente, “para o dia e para o horário”. Pontos de ônibus recebem pessoas às dezenas, desde às quatro horas da madrugada. Pessoas que vão trabalhar, que vão ao médico, que vão de um lado a outro, horas e horas de tempo gastos dentro dos ônibus, dos metrôs apinhados ou dos trens abarrotados. Mas mais abarrotadas estão as ruas: de carros com uma pessoa dentro.

Uma ou outra bicicleta se arrisca entre ônibus e automóveis guiados por motoristas tensos. Há uma bicicleta branca aqui perto, uma moça morreu. Um ônibus passou por cima. Dela e da bicicleta. Que está lá em sua branqueza, parecendo um fantasma, mostrando o quanto esta cidade é dura com os mais fracos.

Motoqueiros loucos, que nem cachorros, doidos para entregar suas encomendas, passam ziguezagueando entre os carros. Xingando e sendo xingados. O meu ônibus sobe a rua Teodoro Sampaio, devagar, cansado. O cobrador chama todas as mulheres de “minha linda”, “gata”, “amor”. E os homens de “amigão”, “queridão”... Ele procura sua cota de felicidade nesse mundão cão. As pessoas gostam: as mulheres sorriem, os homens se sentem parceiros. Nem tudo é selva em meio a tantas torres! Ou como dizia meu poeta Drummond “uma flor nasceu na rua!”

Retrato de Fernand Ralphen,
Auguste Renoir
Ônibus, depois metrô. Pessoas ainda indo pro trabalho. Toda hora há turnos de trabalho sendo iniciados nesta metrópole. O meu começa às 13h. Mas ainda é cedo e eu vou para o centro. No meio dessa confusão de pernas e braços que correm em todas as direções, me lembro de novo de Drummond: “Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.”

Chego no Centro Cultural Banco do Brasil. Há alguns oásis em meio a tanto deserto e de vez em quando uma brisa fresca sopra e nos permite respirar. Mesmo com a garganta seca.

Uma hora na fila. Leio “Zona Leste”, de Jeosafá Gonçalves. Converso um pouco com meu amigo. Ouço a conversa da senhora ao lado, tagarela, voz que arde nos nossos ouvidos. Meu amigo pára de ler seu “The Prince” de Maquiavel, pois a lenga-lenga da senhora tira a concentração. Conversamos mais um pouco. O mundo passa na calçada: pessoas no fluxo e no contrafluxo, indo trabalhar. Ou mesmo vagabundos que não tem pra onde ir. Todos passam ali. Olhamos calados. Nós somos todos eles.

Público na fila hoje, no CCBB
Dez horas, a porta grande se abre. Abre um mundo, um outro mundo. Os Impressionistas de Paris, do Museu d’Orsay que visitei algumas vezes, estão aqui à nossa frente, com suas cores claras, suas luzes quase nos incandescendo. O prazer estético vai aumentando. Paramos diante de Boldini e seu “Conde Robert de Montesquiou”, muito bem trabalhado, elegante. A pintura e a figura. Giovanni Boldini era grande retratista, tanto quanto John Singer Sargent. E Fantin Latour com sua “Família Dubourg”, pintada em 1878. Eu e meu amigo paramos em frente a esse quadro melancólico. “Parece uma família em luto”, disse ele. Concordei. As expressões nos rostos são pesadas. A pintura, perfeita. Ele era realista, como Gustave Courbet, que ele conheceu. E como Boldini e Sargent. E Carolus-Duran, um dos mestres de Sargent. Soube que Fantin Latour se casou com Victoria Dubourg, da família pintada por ele.

Homem com cinto de couro,
Gustave Courbet
Renoir, Toulouse-Lautrec, Degas, Monet e Manet estão ali ao redor de nós, com suas cores brilhantes, suas sombras coloridas, suas pinceladas que não buscam descrever nada, apenas mostrar o suficiente. As paisagens pintadas por eles, pelo interior da França ou à beira do rio Sena, parece que nos transportam para aqueles lugares de um tempo que já passou. Uma certa saudade nos toca de leve, como se conhecêssemos cada lugar daqueles, como se tivéssemos assistido pessoalmente o momento em que Monet pintou aquela paisagem com casas brancas de neve. Ou o momento em que Stanislas Lépine pintou aquela moça subindo uma rua de Montmartre com uma cesta de verduras nas mãos enquanto duas outras mulheres parecem negociar um litro de leite.

Paramos em frente ao “Homem com cinto de couro”, de Gustave Courbet. Observamos mais uma vez em detalhes todo o quadro, emoldurado lindamente. Era um dos autorretratos de Courbet, que fez tantos. Ele era realista, como Caravaggio. Ele certa vez alugou uma vaca e levou para dentro de seu ateliê em Paris. Queria pintar a vaca, com ela ali posando para ele. Do mesmo jeito que Caravaggio também alugou um carneiro dos bandos que atravessavam Roma à noite, levou para seu ateliê e pintou-o sendo alimentado por João Batista. Este quadro, para quem quiser ver de perto, está na exposição do Masp.

"Autorretrato com fundo rosa",
Paul Cézanne
Mas voltemos aos impressionistas. De vez em quando um retrato pintado por Renoir cruzava nosso caminho. Um menino sobre um fundo vermelho nos chamou a atenção. Seus olhos eram suaves, inteligentes. Como os olhos do “Autorretrato com fundo rosa” de Paul Cézanne. Esse olhar, profundo e indecifrável, sensibilizou o poeta Rainer Maria Rilke, que dele dissera:

“É um homem com o perfil direito voltado em 1/4 para nós, e que olha. Seus cabelos escuros, espessos, estão ocultos atrás das orelhas de modo que o contorno do seu crânio está à vista. E a grandeza, a incorruptibilidade desse olhar imparcial é confirmada de modo quase tocante pelo fato de que ele se representou a ele mesmo, sem nenhuma interpretação ou julgamento de sua expressão, com objetividade humilde, com a fidelidade e a curiosidade de um cão que se vê no espelho e diz: ‘Aqui tens um outro cão’.”

Sempre que vejo autorretratos pintados por esses artistas, fico pensando que eu posso estar olhando para um espelho: “Je est un autre”, como disse o outro poeta, Rimbaud, não é? Aquele velho desdentado que vimos passando lá em frente ao CCBB alheio àquela fila não é uma parte de mim mesma, dos muitos que habitam em mim? O olhar de Cézanne é o olhar do meu amigo de "alma inquieta" ao meu lado...

A Lavadeira, Paul Guigou
Dentro do CCBB as indicações nos levam às salas. Tudo está sob controle, as filas, as quantidades de pessoas que entram em cada sala, a temperatura, a umidade... Estava em 54%, disse um dos funcionários. Era uma exigência dos administradores do Museu d'Orsay: que se cuidasse muito bem dessas preciosidades aqui em nosso Brasil.

De cima para baixo, mais impressionistas; os conhecidos e aqueles dos quais nunca ouvi falar, como Paul Guigou e sua “Lavadeira”. Os impressionistas estavam voltados para a luz. Era a luz que importava. De jeito diferente do de Rembrandt, Vermeer, Caravaggio, Tiziano... As sombras impressionistas são coloridas. Nada de preto em quase nenhum lugar. A não ser nas roupas das moças dos cabarés de Paris, lindas em sua feminilidade livre, expostas aos olhos e aos braços dos freqüentadores do cabaré Chat Noir, ou do Moulin Rouge, ou do Moulin de La Galette... Ao alcance da palheta de Toulouse Lautrec.

“Conde Robert de Montesquiou”,
Giovanni Boldini
No piso do subsolo, os últimos quadros. Naturezas-mortas, uma de Courbet e outra de Fantin Latour, lindas demais de se ver! Nos perguntamos, eu e meu amigo: como pode ser que um homem preso tenha pintado aquelas flores tão claras, tão belas, num ambiente tão sombrio? Gustave Courbet pintou várias naturezas-mortas enquanto estava preso por seu envolvimento com a Comuna de Paris... Na sala derradeira, um Van Gogh que representa um bando de pessoas numa casa de dança em Arles, onde ele viveu. Paul Gauguin, Sisley, Pissarro... Quadros pontilhistas, quadros mais próximos aos próximos modernistas.

Acabou. Saímos de novo para as ruas, o sol já no zênite, fazia com que tudo parecesse uma imensa tela impressionista, impregnada de luz. Almoçamos no “Bancários”, restaurante à moda de antigamente quando o centro de São Paulo era lindo e leve. Mesas na calçada, bem forradas com toalhas brancas, lembrando os cafés de Paris... Brasileiramente, pedimos uma feijoada. A conversa era boa, a alma estava lavada. Os pulmões respiravam, os olhos “em festa”.

Eu estava feliz! Nós ficamos muito felizes ao passar por esses impressionistas! E desejamos que essa felicidade pudesse tomar conta da alma de todos os brasileiros que possam ver esta exposição...

A Arte faz isso com a gente: toca o coração...

Camponesas bretãs, Paul Gauguin

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Valentin de Boulogne, o "Inamorato"

Sagrada Família com São João Batista, Valentin de Boulogne - exposto no Masp
Na sequência dos caravaggescos que participam da Exposição do Masp "Caravaggio e seus seguidores", apresentamos Valentin de Boulogne.

Valentin de Boulogne foi um pintor francês nascido em Coulommiers em 1591 e falecido em Roma em 1632.

Retrato de Raffaello Menicucci,
cerca de 1625, óleo sobre tela, 80 x 65 cm,
Indianapolis Museum of Art, Indianapolis, EUA
Seu nome verdadeiro era Jean Valentin e ele passou para a história da arte como um dos pintores franceses representativos da corrente dos “caravaggistas”. Era filho de um pintor de vitrais. Pouco se sabe sobre sua vida e quase nada sobre sua primeira formação, mas ele teria se iniciado em pintura no atelier do pai, antes de partir para Paris, por onde passou antes de ir morar em Roma.

Valentin conhecia e admirava o pintor francês, também caravaggesco, Simon Vouet. Não se sabe em que ano ele chegou em Roma, mas é possível que tenha aportado naquela cidade antes de Simon Vouet, que lá chegou em 1614. Não se encontra seu nome nos documentos a não ser depois de 1620. É possível, diz o texto da Enciclopédia Larousse, que ele tivesse freqüentado o ateliê de Bartolomeo Manfredi (também caravaggesco), assim como os ateliês de pintores nórdicos que moravam na Itália. A partir de 1624 ele teria freqüentado a Academia dos Bentvögels, onde teria recebido o apelido de o “Inamorato”.

Da sua carreira de pintor só foram documentados os últimos cinco anos de sua vida. Ele mantinha relação estreita com o meio artístico, especialmente os franceses que viviam na Itália, mas também conhecia os amantes da arte daquela época, notadamente os membros da família Barberini, na pessoa do cardeal Francesco, seu principal mecenas.

Judith, 1626-28, óleo sobre tela, 97x74 cm,
Museu dos Agostinhos, Toulouse, França
Da relação de suas obras, consta, entre várias outras:

de 1627: “David” e “Degolação de São João Batista” (perdido) ;
de 1628, “Alegoria de Roma (Roma, Villa Lante) ;
de 1630, um “Sansão” (Museu de Cleveland).

O “Martírio dos Santos Processo e Martiniano” de 1629, pintado para a Basílica de São Pedro, no Vaticano, que é comparado ao “Martírio de São Erasmo”, de Nicolas Poussin, testemunha que Valentin possuía certa fama na Roma artística de seu tempo.

Giovanne Baglione, biógrafo de alguns pintores como Caravaggio, falou sobre as circunstâncias da morte do pintor Valentin de Boulogne: ele teria mergulhado numa fonte de água gelada, após uma noite de bebedeira. As despesas com seu sepultamento foram assumidas por Cassiano dal Pozzo, um de seus mecenas. As cenas nas tabernas e as reuniões musicais das quais participava, que surgem em algumas de suas telas, mostram-no como um artista de vida livre, independente e boêmio. 

O trapaceiro, 1620, óleo sobre tela, 95x137 cm,
Gemäldegalerie, Dresden, Alemanha
No Museu do Louvre, por exemplo, estão dois desses quadros: “Reunião em um cabaré” e “A Cartomante de boa aventura”.

Mas Valentin teria pintado ousadas alegorias, dentro da veia realista de Caravaggio, assim como temas mitológicos, retratos (como o do Cardeal Francesco Barberini, seu protetor) e muitas pinturas religiosas “de um lirismo surdo e violento”, diz a enciclopédia Larousse. Todas essas pinturas indicam a influência de Caravaggio, a quem se manteve fiel, assumindo uma forma de arte muito pessoal, sensível às nuances sutis da luz, mas – diz o texto da enciclopédia – de uma “melancolia febril e delicada” que mostra como a pintura do século XVII possuía uma espécie de poesia muito característica daquele tempo.

Músicos e bebedores, 1625, óleo sobre tela, 95 x 133 cm, Museu do Louvre, Paris, França
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POSTS SOBRE CARAVAGGIO E OS CARAVAGGESCOS:

- José de Ribera, caravaggesco

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Hendrick van Somer, caravaggesco da escola de Ribera

São Jerônimo
São Jerônimo, de Hendrick van Somer
Dando continuidade aos posts sobre os pintores influenciados por Caravaggio e que estão na mostra “Caravaggio e seus Seguidores” do Masp, nos detemos um pouco sobre um deles, Hendrick van Somer.

Quase nada se sabe sobre esse excelente pintor da escola caravaggesca. Ele nasceu em Amsterdam, Holanda, em 1615, viveu alguns anos na Itália onde ficou conhecido como Enrico Fiammingo, e morreu em sua terra natal em 1685.

Querubim com a lira, Aert Mijtens
De acordo com alguns historiadores, seu pai também teria sido pintor (conhecido como Barend Van Zomeren) e teria vindo da escola do pintor flamengo Franz Hals. Hendrick também era neto de outro pintor, Aert Mijtens, que exemplificamos com uma de suas pinturas inseridas aqui neste post (ao lado). Por ela, que está em alta resolução, dá para ver que o estilo do avô de Hendrick também era pictórico. Na verdade, Hendrick descendia de uma família de pintores que haviam vivido desde os Países Baixos até a Itália, especialmente Nápoles e Roma.

Hendrick foi aluno de José de Ribera, também presente na exposição do MASP. Depois da temporada de aprendizado em Nápoles, com Ribera, Van Somer foi para Bologna e estudou no atelier do pintor Guido Reni, um dos continuadores do classicismo implantado em Bologna pelos irmãos Carracci. Hendrick também pintou à moda desse mestre, como pode ser observado em suas pinturas feitas para a igreja de San Barbaziano, na mesma cidade.

Sua obra “São Jerônimo”, que se encontra na exposição, é uma grande pintura, dentro do estilo do mestre Caravaggio. Mas algo nela me chamou muito a atenção, e por isso fiquei bastante tempo observando a tela de perto. Não sabia ainda que ele tinha passado pela escola de Ribera, que como caravaggesco é um dos melhores. Com essa informação, voltei a ver melhor o “São Jerônimo” de Van Somer, inclusive lembrando que ele vinha de uma família de várias gerações de bons pintores dos países mais ao norte da Europa, tradicionalmente realistas e pictóricos. 

Nesta pintura
de Van Somer dá para notar
a influência de José de Ribera
A pintura fala por si mesma: o fluxo da luz atravessa o quadro, desvendando o personagem principal que lê e tem nas mãos uma longa folha de papel horizontal, escrita à mão. As sombras são quentes, como ensinou o mestre Caravaggio, seguido por Ribera. O corpo envelhecido do santo, coberto por um manto vermelho, recebe o foco principal da luz que também se reflete na cabeça arredondada, assemelhada à cabeça do “São Jerônimo escrevendo” de Caravaggio.

Hendrick van Somer fez mais de um São Jerônimo. Caravaggio também. José de Ribera também. Era um tema importante para a época, porque esse santo foi o intelectual responsável pela tradução da Bíblia do grego e do hebraico antigos para a língua latina, sendo também o patrono dos bibliotecários e tradutores.

Outra versão de "São Jerônimo" de Hendrick van Somer, segunda metade do séc. XVII,
óleo sobre tela, 98 x 79 cm, coleção privada
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