sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

“Hoje tem espetáculo!”


É Carnaval. De hoje até quarta-feira de cinzas as ruas do Brasil serão os lugares da alegria, da folia, da brincadeira, esquindô, esquindô-lelê...

Quando eu era criança, este período me atraía de forma estranha: eu tinha medo de uma figura misteriosa, mascarada, que invadia minha casa com sua feiúra, correndo atrás de mim que, apavorada, me escondia embaixo da cama, com o coração nas mãos e muito, muito medo dele! Trata-se de uma figura coberta dos pés à cabeça, com uma máscara em geral muito feia e que se chama Papangu. Até que um dia descobri que o papangu era meu tio...

Essa figura folclórica do carnaval nordestino, especialmente pernambucano, parece ter surgido em Pernambuco no século XIX. Mas as origens mais antigas desta figura provavelmente remonta às personagens da Commedia dell'Arte. Que foi um movimento de cultura popular na Itália do século XV, que reunia trupes de artistas que saiam pelas ruas e praças fazendo suas apresentações, um misto de teatro e circo, fazendo rir e chorar os públicos que iam juntando em suas passagens pelas cidades italianas. Satirizavam e ironizavam a vida e os costumes das classes dominantes de então. As peças apresentadas eram improvisadas, mas tinham personagens mais ou menos fixos, que cumpriam certos papeis, como o Pierrot, o Arlequim e a Colombina e seguiam mais ou menos o mesmo roteiro.

Nos tempos do império romano, já existiam figuras fantasiadas, uma espécie de esboço do que seria depois a Commedia dell’Arte, com pequenas farsas (peças, no sentido atual), muitas vezes obscenas seguidas de uma peça trágica. Entravam em cena quatro personagens mascarados: Maccus, o comilão, Bucco, um bêbado imbecil, Pappus, o velho gagá e Dossennus, o corcunda malicioso. O espetáculo era ensaiado, mas sempre havia espaço para alguma improvisação.

Com o tempo e a queda do império romano, esses grupos de artistas populares, que tinham já personagens fixos e carregavam suas lonas, foram se extinguindo aos poucos, com seus espetáculos popularescos obscenos e debochados. Os anfiteatros antigos que eram usados por essas trupes foram se transformando em quarteis com soldados que defendiam o império que se desmoronava.

Mas os espetáculos cômicos populares foram sobrevivendo através de acrobatas, charlatães contadores de causos, malabaristas e vendedores ambulantes. Se apresentavam nas ruas, em frente às igrejas ou aos castelos.

Uma parte desses atores ambulantes fazia representações de histórias bíblicas em frente às igrejas, com o apoio dos padres, com o objetivo de educar o público ignorante e analfabeto. As cenas bíblicas, mesmo que repetidas, eram interpretadas a cada vez com alguma modificação. Mas junto a esses atores também haviam os que preferiam encenar histórias da vida cotidiana.

Ao final do século XV, no norte da Itália, surgiram esses grupos de atores que se baseavam na improvisação e apresentavam personagens vestidos com roupas bem coloridas.

A Commedia dell’Arte (literamente “comédia de artistas profissionais”) fazia apresentações ao ar livre com grupos de atores itinerantes. O enredo era básico, muitas vezes uma história familiar, mas os atores improvisavam o diálogo. Os atores adaptavam esses diálogos ao tipo de público que os assistiam, às vezes juntando comentários maliciosos sobre poderosos locais ou frases de humor picante, muitas vezes censurados. O tema mais comum era o amor: um casal que se amava e não podia ficar junto por algum motivo. Os Innamorati (o casal de atores que fazia os papeis principais) em alguns enredos pediam a ajuda de personagens menos importantes, os servos, chamados em italiano de zanni (a palavra “bobo” deriva daí), que, mais astutos, davam um jeito de juntar os amantes. Talvez Shakespeare se inspirou nesse enredo para criar sua peça "Romeu e Julieta", a história de amor trágica sem final feliz? Pode ser.


O ator francês Charles Deburau
em cena como Pierrot,
fotografado por Nadar em 1855
Nesta história dos Innamorati, todos os personagens usavam máscaras, exceto Pedrolino e Colombina. Pedrolino hoje é conhecido por Pierrot, por causa da influência francesa. As máscaras dos outros personagens, por sua vez, eram influência das comédias romanas antigas. Os zannis (servos) eram os personagens mais subversivos, mais astutos e que aprontavam muitas travessuras. O mais conhecido deles é, ainda hoje, o Arlequim (em italiano Arlecchino).
Arlecchino era caracterizado como um homem pobre, original de Bérgamo, que usava retalhos de roupas em forma de losangos em sua roupa, sinal de sua pobreza. Sua máscara era cheia de verrugas e às vezes tinha a forma de uma cara de macaco, de gato ou de porco. Era um acrobata brilhante, mas também era guloso, mal-educado, analfabeto e ingênuo. Mas tinha uma amada: a Colombina, ou Arlecchina, uma serva inteligente e sensual. O pintor francês Jean Antoine Watteau o retratou como um amante melancólico e apaixonado. Outro pintor, o italiano Giovanni Domenico Tiepolo o pintou em uma apresentação em praça pública.

"Mezzetin", personagem pintado por
Jean Antoine Watteau, óleo sobre tela, 1720
Além destes dois, os mais conhecidos até hoje e tema de diversas canções de nosso carnaval brasileiro, havia também o Pedrolino, nosso Pierrot, como já falamos. Ele tinha uma natureza doce e ingênua, sempre disposto a assumir a culpa dos outros. Sua roupa é branca e seu rosto está tingido com pó branco, às vezes com uma lágrima pintada caindo de um dos olhos. 

Alguns franceses, mais tarde, entre eles o poeta Baudelaire, consideraram o Pierrot como símbolo do artista criativo e solitário.

No começo do século XVIII, sob a influência dos movimentos políticos e sociais na França, os zanni (personagens servos) dos novos comediantes vão assumir uma postura mais altiva, até arrogante, mais autoconfiante, menos subalterna do que na velha Commedia dell’Arte na Itália. Dois deles, em especial Brighela e Arlequim, que antes se reconheciam como pobres e dependentes de seus patrões, agora são mais otimistas em relação a seu futuro e têm esperança de que sua situação um dia vai melhorar. Eles são ainda mais astutos.

No século XIX, a Commedia dell’Arte desaparece de cena. Alguns escritores ainda farão referência a ela, como o poeta Paul Verlaine e Théophile Gautier, que conta a história de uma trupe de comediantes que atravessam a França fazendo suas apresentações.
Representação de Joseph Grimaldi,
o célebre clown do circo inglês do
século XI

O circo, como o conhecemos hoje, surgiu no final do século XVIII na Inglaterra. O Clown inglês - palhaço - tem muita semelhança com os personagens da Commedia dell’Arte: era - e ainda é em nossos circos - um personagem fixo, com roupas excêntricas e maquiagem carregada, que cria situações cômicas e arranca gargalhadas do público.

E lembramos uma música que permeia a infância de muitos de nós, moradores das cidades do interior brasileiro (em Caruaru era assim), quando uma pequena trupe de atores percorria as ruas chamando o povo para o Circo, entre eles o palhaço, cantando:

“- O raio, o sol suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua
- Hoje tem espetáculo?
Tem, sim, senhor!”


Hoje, em nosso carnaval, quando vestimos nossas fantasias, muitas delas de Arlequim, Colombina e Pierrot, rememoramos esta antiga tradição. Para a nossa alegria, e a alheia, quase nada é necessário nestes carnavais: uma máscara, uma fantasia, uma canção simples, alguns passos de dança e a alegria toma conta, num contágio quase universal.

Grande lição do carnaval brasileiro, resgatando a Commedia dell’Arte: vamos rir de tudo, vamos rir de nós mesmos, dar grandes gargalhadas! O futuro é para se rir!

Pintura representando o Arlequim, de Giovanni Domenico Tiepolo, 1755

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Arte e negócios

Nesta primeira semana de fevereiro, a revista Carta Capital dedicou capa e diversos artigos a analisar a situação da cultura e da arte no Brasil e no mundo de hoje. O editorial, escrito por Mino Carta, expõe algumas chagas na cultura dos tempos atuais.

Especialmente o artigo que reproduzo abaixo (que foi digitado por mim a partir da revista), resume muito bem a situação, especialmente das artes plásticas. A autora denuncia, entre outras coisas, a instrumentalização da arte e de artistas pelo neoliberalismo nas últimas décadas. 

Muita gente tem entrado nessa onda: algumas ingenuamente, outras por falta de senso crítico, outras por adesão mesmo. É a velha história faustiana de entregar a alma ao diabo (no caso, o capitalismo).

Recomendo uma leitura atenta.




Um excelente negócio
Nas últimas décadas, a arte tem perdido o jogo como bem público
Revista Carta Capital

Daniela Castro*

A arte joga com o inegociável da vida social. Ela desestabiliza o estabelecido, fricciona, negocia, destrói, revela, ilustra, dialoga com a matriz ideológica que sustenta certa hegemonia de valores. A instituição cultural que abriga tais práticas veicula essa produção de saberes não hegemônicos, expõe aquilo que há nas entrelinhas desses discursos, e assim nos instiga a imaginar outra sociedade, um lugar melhor. Ou seja, a arte é fundamentalmente de cunho social e político.

Não se trata aqui de reduzir o papel da arte, mesmo que assim o pareça na tentativa de defini-la em um parágrafo. Trata-se de dizer que nos últimos anos ela tem perdido o jogo como um “bem público” da vida social para se tornar um “ótimo negócio” dos interesses privados.

Quem dá mais?

Há aqueles que se regozijam com a explosão do mercado de arte e o lugar que ocupa nele a arte brasileira. Novas galerias surgem em São Paulo a cada semana, o mundo conta com mais de 300 bienais, e as inúmeras feiras celebram o interesse crescente pela arte, a julgar pela alta visitação e o alto volume de vendas. No Brasil, centros culturais privados geridos com dinheiro público obtido por incentivos fiscais exibem seus nomes fantasia nas fachadas de prédios imponentes em endereços nobres com orgulho filantrópico.

Precisamos retroceder alguns séculos para entender como tudo isso começou. Desde o primeiro momento em que artistas começaram a viver de sua produção, alguma forma de mercado de arte negociava transações entre indivíduos que detinham poder e outros que detinham talento artístico. O primeiro crítico do mercado da arte, Gerald Reitlinger, atestou em seu clássico “The Economy of Taste” (1961) que o mundo não poderia oferecer enormes quantias de dinheiro à arte até que o mundo obtivesse enormes quantias de dinheiro. Isto é, após a industrialização e financeirização do capitalismo.

Uma caveira de 100 milhões de
dólares, "obra" de Damien Hirst
Quando pinturas históricas e cubistas figuraram juntas nas primeiras IPOs do século XX (do inglês, initial public offering; evento que marca a primeira venda de ações de uma empresa no mercado), atingiram um valor astronômico, pois, subitamente, as pessoas passaram a ver as pinturas não somente como representação de valores históricos, mas de valores futuros. As obras de arte passaram a ser avaliadas não mais como unidades especulativas de medida de valor. Neste século, a caveira de diamantes de Damien Hirst, com custo de produção de 23,6 milhões de dólares, foi arrematada por 100 milhões, o maior valor atribuído a uma obra de artista vivo.

Foi a partir dos anos 1980 que, em resposta à crise de estagflação mundial, o capitalismo dirigido pelas finanças disseminou a sua lógica inexorável do mercado caracterizado pela ausência de regulamentação e voltado para a maximização do valor aos acionistas por todos os cantos do planeta. E a velha novidade é que os executivos do capitalismo financeiro que patrocinam as artes e ocupam assentos em conselhos administrativos de museus são os mesmos acionistas voltados para a maximização do valor a qualquer custo por todos os cantos do planeta.

O caráter filantrópico associado ao patrocínio empresarial à cultura como “bem público” mascara outro tipo de maximização do valor: o do capital simbólico. Tal como os antigos empreendedores, as elites corporativas lutam para consolidar sua posição e seu status dominantes por meio de uma intrincada rede de relações econômicas e sociais. Engajar as companhias no comando das artes e atividades culturais é parte dessa estratégia.



Vik Muniz e seu prato de macarrão simulando
a obra "Medusa" de Caravaggio

Em outras palavras, qualquer tipo de patrocínio corporativo à arte e cultura, seja por meio de doações, seja principalmente por incentivos fiscais, gera lucro. Portanto, não há mera coincidência entre a bilionária ascensão do mercado de arte contemporânea e a desregulamentação do capital financeiro. Pautado por uma economia desterritorializada de especulação do capital, o neoliberalismo encontrou na obra de arte, como mercadoria de especulação sobre valores futuros, sua alma gêmea. Aquilo que se convencionou chamar de “Economia Criativa”, a partir dos anos 2000, foi a bem-sucedida união em comunhão de bens da economia neoliberal com a arte. Uma expressão que designa deliberadamente a privatização da cultura.

Os riscos que esse cenário nos traz já são sentidos. Em primeiro lugar, estamos diante de uma situação em que o antigo modelo de comércio varejista das galerias tem sido substituído por amalgamações globais de larga escala, como a Hauser & Wirth & Zwirner e a Gagosian. A formação de conglomerados no mercado e instituições artísticas (Guggenheim) aponta para a ideia de que a arte está cada vez mais enredada nas tentativas de reassegurar o poder monopolista, berço do capitalismo da propriedade privada, cuja geração de riqueza depende de alegações de singularidade e autenticidade distintivas e irreplicáveis.

Essa afirmação nos coloca um problema grave, pois o discurso gerado pela produção de conhecimento acadêmico e intelectual no campo da arte corre o risco de ser instrumentalizado como commodities do consumo de trabalhos artísticos diante da ascensão da competição e globalização no negócio da arte. Em segundo lugar, a própria criação artística - tradicionalmente vinculada à interiorização, ao tempo lento e à autonomia de pensamento - se vê obrigada a adaptar-se ao ritmo da demanda do mercado.

Mefistófeles está disponível para quem quiser
vender sua alma...
Isso força um esvaziamento crítico de sua produção, a aprisiona a clichês do vocabulário de experiências pessoais comercialmente conformistas e resulta em um enfraquecimento nas relações formais e de conteúdo. O brasileiro Vik Muniz tornou-se mundialmente famoso por suas releituras icônicas da história da arte feitas com macarrão e chocolate. E as expressões da pobreza e do abandono do Estado das classes baixas urbanas, uma vez retratadas pela dupla Os Gêmeos, agora figuram em lenços da nova coleção da Louis Vuitton.

Soma-se a tudo isso a politicagem grotesca que ainda estrutura os mecanismos administrativos da cultura no Brasil. Salvo duas ou três instituições, a nomeação por interesse político-partidários de diretores de instituições peca na avaliação profissional desses indivíduos, que ora usam uma instituição pública em benefício próprio, ora armam-na com interesses privados. O Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, por exemplo, exibiu em 2012 os trabalhos de grafiteiros sob o título Keep Walking Brazil, patrocinados pela Johnnie Walker. A tela com o “maior valor artístico” figuraria na capa do próximo CD de remix de sucessos da Madonna...

Se a produção da arte, como jogo com o inegociável da vida social e desestabilizador de discursos hegemônicos, passa a ser instrumentalizada para a manutenção do poder e status da elite capitalista privada, então estamos diante de um “direcionamento privatizado” das dimensões de fruição e de possibilidade de um real posicionamento crítico perante o mundo.

(* Daniela Castro é formada em História da Arte e Estudo da Cultura Visual pela Universidade de Toronto, Canadá. Atua como escritora e curadora independente.)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O sketchbook de Goya

Mendigo recostado, Goya
No livro que estou lendo, “Goya”, de Robert Hughes, a certa altura o autor fala do Caderno Italiano de desenhos que o artista espanhol carregou consigo e fez diversos registros em sua viagem pela Itália. Em sua época, nenhum artista que não fosse italiano ou que não tivesse tido uma formação naquele país era reconhecido na Espanha. Por isso, Goya foi para a Itália, seguindo os passos de gerações de artistas estrangeiros que iam se formar na “escola do mundo”, como era considerada a Itália “desde a época de Albrecht Dürer, no final do século XV”, observa Hughes.

Alegoria da Prudência
Esse “Cuaderno italiano” foi adquirido pelo Museu do Prado, de Madrid (Espanha) em 1993. Assim que veio a público, diz o Portal do Museu na internet, seu impacto foi grande não só entre os especialistas mas também entre o público geral. O Caderno de desenho de Goya tinha uma encadernação simples, assinada por ele várias vezes, tanto dentro quanto fora e tem um tamanho confortável para a pessoa carregar consigo. O papel, conforme informa o Museu, é de boa qualidade e apresenta uma espécie de marca d’água do famoso papel Fabriano, uma manufatura de papel italiana que vem desde o século XIV.

Nesse caderno, Goya fez os desenhos mais antigos que se conhece dele, inclusive desenhos preparatórios para pinturas que foram feitas na Itália ou imediatamente após sua temporada por lá. Além dos desenhos, como todo caderno de registro de artista que hoje são conhecidos como sketchbooks, Goya também fez anotações à mão como a lista de cidades por onde teria passado e até dados biográficos. Entre essas anotações o rascunho de uma carta a Mengs (pintor alemão), amigo do artista polonês Taddeo Kuntz com quem Goya compartilhou uma moradia em Roma. Nessa carta, Goya expressava sua vontade de voltar a Roma na companhia de Mengs. Também há a anotação do nascimento do seu primeiro filho, Antonio Juan Ramón y Carlos, no dia 29 de agosto de 1774. Ele teria anotado também: “me case el beinti cinco de Julio del año de 1773, y era Domingo / oy 15, de decienbre”.

Esse tipo de caderno era chamado, em italiano, de taccuini, e era ao mesmo tempo caderno de desenhos, de memórias ou de anotações várias. Eles foram muito utilizados pelos artistas desde que o papel se expandiu, a partir do século XV. Em suas páginas, pintores e escultores tomavam notas e faziam esboços para suas obras.

O sketchbook de Goya consta de 172 páginas, onde faltam algumas e outras estão incompletas ou rasgadas. Algumas folhas estão manchadas de óleo, pelo seu uso no ateliê onde se usava óleo de linhaça ou de nozes, na mistura dos pigmentos na pintura. Para os desenhos, ele usou lápis preto, e sanguínea (uma espécie de giz avermelhado e que existe numa só dureza, diferentemente do grafite). As tintas são de bistre, de tom castanho luminoso, fabricado com restos de fuligem e de madeira queimada das lareiras, mas também pó de carvão.

O “Cuaderno italiano” de Goya também contém cópias de pinturas e esculturas que ele teria feito em Roma, como, por exemplo o desenho da primeira página, cópia de “Alegoria da Prudência” de Corrado Giaquinto, assim como o desenho do “Hercules Farnesio” e o “Torso de Belvedere” de Pierre Legros, o Jovem, que são afrescos da basílica de São João de Latrão.

As figuras desenhadas na primeira página apresentam imagens e composições que seguiam o estilo neoclássico dos artistas romanos do século XVIII. Também estão lá os rascunhos que Goya fez para a pintura “Aníbal que vê a Itália pela primeira vez a partir dos Alpes”, com a qual ele concorreu na primavera de 1771 em um concurso da Academia de Parma, para o qual ele não teve êxito, segundo nos diz Robert Hughes.

Nas primeiras páginas do caderno também tem anotações curiosas, inclusive em italiano, como: materiais de pintura que ele adquiriu, número dos papas até 1771, notas sobre máscaras de carnaval ou de personagens da Commedia dell’Arte, o que mostra que ele teria assistido em 1771 ao carnaval em Roma, assim como pode ter visto apresentações de humoristas italianos.

Na sua lista de cidades pelas quais teria passado, estão também as cidades de Toulon e Marseille, na França, por onde ele deve ter passado em seu regresso à Espanha. Ele anotou que algumas dessas cidades ele viu “por fora”, como Turim e Milão. Mas parou em Gênova, Bolonha, Parma, Pádua e Veneza. Florença não está em sua lista, assim como Nápoles. Ao fim da lista, Goya completou com a frase:  “y otras muchas q. no me acuerdo”.

Lista das cidades
Nesse mesmo caderno, Goya registrou, já na Espanha, as primeiras encomendas que recebeu  como a “Virgem del Pilar”, “Morte de São Francisco Xavier”, para o Museu de Zaragoza, assim como os importantes afrescos que fez para o mosteiro cartusiano conhecido como Aula Dei, de Zaragoza, em 1774. Robert Hughes diz que esses monges pertencem a uma ordem “silenciosa e enclausurada, e o mosteiro nega a admissão a mulheres, sob quaisquer circunstâncias. Visitantes masculinos são recebidos, mas em termos estritamente limitados - um pequeno grupo, uma vez por mês, durante cerca de uma hora”. E essas pessoas continuam a ir até o mosteiro, ainda hoje, para ver de perto esses afrescos de Goya, os primeiros de sua carreira.

As últimas páginas, que datam de 1790, mostram alguns esboços de figuras claramente feitos por uma criança, assinados por “Xavi”, que pode muito bem serem atribuídas a seu filho Javier Goya, nascido en 1784.
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O Museu do Prado destaca que esse “Cuaderno italiano” de Goya se enquadra dentro do apreciado gênero dos “cadernos de artista”, dos quais há muitos exemplares, desde o século XV, que permitem algum conhecimento sobre seus autores, como pensavam, como desenhavam, como viviam.

Esse caderno resume o que deve ter sido a vida de Goya. Nessas páginas estão refletidas sua personalidade simples, seu senso de humor e até seu perfeccionismo. Falou de seu casamento, de seus filhos, das cidades que conheceu. Fez anotações sobre arte, assim como sobre suas contas; uma receita para a fabricação de verniz; registros de pinturas que lhe chamaram a atenção. Em seus desenhos, vê-se como lhe interessava muito o estudo da anatomia do corpo humano, os drapeados dos tecidos, os gestos e os rostos. Mas também desenhou um gato em cima de um muro, uma cabeça de burro entrando por uma janela, figuras enigmáticas cobertas com mantos da cabeça aos pés e uma cabeça humana meio mosntruosa que parece vomitar algo.


Algumas destas páginas do sketchbook de Goya aparecem neste post, mas mais podem ser vistas diretamente no portal Goya en el Prado, do Museu do Prado.

Anotação sobre nomes de aglutinantes e pigmentos
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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

As opiniões sobre arte de Robert Hughes


Capa do livro

Comprei o livro “Goya” de Robert Hughes, lançado aqui no Brasil pela Companhia das Letras em 2007. Comprei-o no final de 2012 e estou lendo-o, para compreender um pouco mais profundamente a obra desse grande artista espanhol. Mas por enquanto, vou falar do autor do livro, Robert Hughes, um crítico com uma visão de arte que me interessa muito e a quem respeito.

Robert Hughes é um crítico de arte australiano, que nasceu em 28 de julho de 1938 e faleceu no ano passado, em Nova Yorque, EUA, onde residia desde a década de 1970.

Hughes sofreu um acidente de carro em 1999, onde quase perdeu a vida. Por causa do acidente, passou por mais de 20 cirurgias. Ainda por cima, em 2001, seu único filho cometeu suicídio aos 34 anos de idade. Após o sofrimento desses anos, lançou em 2003 este livro sobre o pintor espanhol Francisco Goya (1746-1828), um de seus preferidos.

Há uns anos atrás Robert Hughes concedeu uma entrevista a uma certa revista brasileira cujo nome é impronunciável, porque esta certa revista prima pelo descontrole emocional já faz alguns anos, e seu jornalismo é muito tendencioso na direção da direita. Mas o que interessa é falar de Hughes e o que ele falou naquele momento.

E disse que Francisco Goya, o grande pintor espanhol, fez uma obra que “extrapola seu tempo” e explicou porque resolveu escrever um livro sobre ele:

- “Por meio de sua trajetória e de suas ideias, pode-se entender melhor a história da Espanha e da Europa. Mas não só. Mais que qualquer outro pintor, Goya nos permite obter um conhecimento profundo da natureza dos sentimentos e da ideia de justiça, assim como de seus reversos, a injustiça e a crueldade. Nós vivemos num mundo de ironias ex­tremas e de paixões e agressões tão de­satinadas quanto às de que trata Goya. A loucura de que ele nos fala é uni­versal e atemporal. Apesar de repre­sentar tanto para a arte, ainda faltava um livro que o alçasse à sua devida dimensão. Julguei que era uma tarefa importante fazê-lo.”

O crítico de arte Robert Hughes
No livro, Hughes fala do acidente de carro que sofreu e das alucinações e pesadelos daqueles “dias difíceis”. Mas disse que somente com todo o sofrimento físico que passou após o desastre passou a ser capaz de conhecer “a experiência da dor”. No livro, Hughes conta um desses pesadelos, e nele era o próprio Goya quem vinha ajudar a esmagar a sua perna. E na entrevista ele disse que acredita que “um escritor que não conhecesse o medo, a dor e o desespero não teria uma visão completa do universo de Goya. Não es­tou dizendo, é óbvio, que seja necessá­rio quase perder a vida num acidente para entender um artista. Mas isso cer­tamente facilitou a apreciação da maté­ria-prima de sua obra, o sofrimento.”

No livro, Hughes mostra que Goya “foi também um dos poucos narradores visuais da dor física, do ultraje, do insulto ao corpo.”

Abaixo, alguns trechos do que ele disse na entrevista, que considero muito importante destacar e publicar aqui neste Blog:

Sobre a inundação que ocorreu em 1966 em Florença, cidade italiana, quando muitas obras de arte foram destruídas:
“Em Florença, vivi a expe­riência de encontrar destroços de peças renascentistas em meio à lama, uma tra­gédia que me fez compreender de uma vez por todas que aquilo que foi criado no período de ouro da arte é insubstituí­vel. Não apenas porque não se pode­riam refazer tais obras. Vivemos numa era muito pobre em matéria de artes vi­suais. Hoje se podem encontrar bons escultores e pintores, mas a ideia de que a arte atual possa um dia se igualar às enormes realizações do passado é um disparate. Nenhuma pessoa séria, por mais que se empolgue com a arte con­temporânea, poderia acreditar que ela um dia será comparada àquilo que foi feito entre os séculos XVI e XIX.”

Sobre como as pessoas podem se relacionar com a obra dos mestres do passado:
“Olhando para o que eles pro­duziram. Aprendendo a entender e a amar sua arte. Os mestres da pintura se relacionam a nós da mesma forma que as grandes obras literárias e as composi­ções musicais do passado. Como o ho­mem atual pode se relacionar com Cer­vantes? Por meio da leitura de sua obra. Dom Quixote continuará sendo uma his­tória contemporânea em qualquer tem­po e lugar. É preciso ter em mente que a arte é feita antes de tudo para deliciar os olhos e o espírito. É por meio desse ape­lo intuitivo que ela nos arrebata e con­duz, no fim das contas, a um conheci­mento mais profundo de nossa natureza.”

Autorretrato, de Rembrandt
Sobre o papel das artes plásticas na formação cultural de uma pessoa:
“Não recomendo que se olhe para os grandes artistas com o intuito de atingir um nível cultural superior, pois, como já disse, o objetivo maior da arte é dar prazer. Mas posso falar de seu ca­ráter enriquecedor pela minha própria experiência. Muito antes de eu me tornar um crítico, a arte desempenhou um papel fundamental em minha vida, na medida em que me fez entender certas questões existenciais mais claramente do que qualquer livro ou aula teórica o fariam. Seria um exagero dizer que se pode educar alguém por meio da arte. Mas ela é capaz de fazer de nós pessoas melhores e mostrar que existem muitos mundos além do nosso umbigo.”

Sobre o pensamento contemporâneo de que o presente precisa se livrar do passado:
“A noção de que há uma oposição entre o presente e o passado é estúpida. Trata-se de uma deturpação vulgar do ideário modernista de pri­meira hora. Ele consistia em questionar o tradicionalismo, mas não a herança dos antigos mestres. Os futuristas ita­lianos, é verdade, chegaram a propor a destruição das obras de arte criadas no passado - como se fosse possível apa­gar sua influência apenas com sua ex­tinção por meios físicos. Mas o fato é que toda arte digna de nota feita no sé­culo XX se baseou no passado. Os mo­dernistas que realmente importam, co­mo Matisse e Picasso, nunca se pauta­ram por sua rejeição. Muito pelo con­trário: as fontes de que extraíram sua inspiração foram os artistas da Renas­cença e do século XVIII.”

Impressões sobre o artista pop norteamericano Andy Warhol:
“Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até pro­duziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dú­vida de que é a reputação mais ridicu­lamente superestimada do século XX.”

Sobre Marcel Duchamp:
“Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primei­ro artista em minha lista dos mais im­portantes de sua época. Sua elevação à condição de figura "seminal" nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de ideias notáveis. Pessoal­mente, prefiro um pintor como o fran­cês Pierre Bonnard. Muita gente consi­dera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um tra­balho de Duchamp. Além disso, a in­fluência de Duchamp sobre a arte con­temporânea foi liberadora, mas tam­bém catastrófica. Porque ser o pai dessa boba­gem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para com­preender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras to­las em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos in­fantis. Ou precisa ler uma bula para en­tender o que o artista quis dizer.”

Sobre os preços astronômicos de leilões de obras de arte:
“Francamente, não consigo imaginar uma boa razão. Os preços se tornaram tão obscenos e sem sentido que, a meu ver, só podem ser resultado de al­gum tipo de doença social. As pessoas que se sujeitam a pagar tanto por um qua­dro são movidas por motivações ridículas, como ostentar seu prestígio e poder. Não compactuo com essa insanidade.”
“A supervalorização atende aos interesses de certos marchands e cole­cionadores, mas é danosa para a arte. Passa-se a valorizar um artista ou ten­dência em função de seu cacife no mercado, e não da importância de suas realizações. Além disso, sua transformação em bem de consumo de luxo muitas ve­zes dificulta que um dia o grande públi­co possa contemplá-las em museus.”
“Daqui a vinte anos, veremos quanto se pagará pelas obras de um sujeito como Hirst - que, aliás, não me interessam nem um pouco. Hirst e outros de sua geração fazem do escândalo uma arma de marketing. Mas um renascentista co­mo Piero della Francesca conseguiu ser radical num nível que ele nunca passou nem perto de alcançar.”

Sobre as Bienais de Arte:
“Não ligo a mínima para bie­nais, trienais, quadrienais ou coisas que o valham. Elas hoje têm relevância ape­nas para os negociantes de arte. Por bai­xo da fachada novidadeira, a maioria desses eventos se transformou em feiras vulgares. Nunca estive na Bienal de São Paulo. Mas a de Veneza eu conheço bem. Alguns anos atrás, fui convidado a colaborar com seus organizadores e me vi em tal pesadelo que renunciei a meu posto. Já que é tudo comércio, melhor deixar para quem entende disso.”

Sobre a arte de países sem muita tradição nessa área:
“Não direi que será sempre assim. Mas eles enfrentam um problema e tanto: não têm controle sobre o mercado. Parece-me inusitado que a Austrália amargue uma presença pró­xima do zero na arte mundial enquan­to qualquer porcaria que se produz na Califórnia logo alcança visibilidade. A atmosfera do circuito internacional de arte é corrupta, já que se vive de criar modismos e falsos novos gênios para faturar. Essa é uma das razões pelas quais eu me aposentei como crítico. Prefiro me concentrar em alguns artistas cujo trabalho realmente importa a ver minhas resenhas sendo usadas para in­flar as cotações alheias. O presente, em arte, é sempre um terreno pantanoso e sujeito aos golpes de marketing. Tome­-se como exemplo o carnaval que se faz no momento a respeito da arte chinesa. A maior parte do que se convencionou rotular de pós-modernismo chinês é ape­nas uma empulhação bem promovida pelos marchands e casas de leilões. As vítimas deles são os colecionadores no­vos-ricos que pululam pelo mundo afora e compram tudo o que vêem pela frente. Eles podem ter dinheiro, mas não pas­sam de idiotas e vítimas da moda.”

É isto. Mais um na nossa lista dos que se opõem ao “pensamento único” da arte contemporânea e consideram o que se faz atualmente em nome da Arte um grande jogo que envolve mercado, marchands, galeristas e, infelizmente, artistas. Poucos ganham bilhões de dólares ou de euros nesse jogo, mas a “arte” que eles dizem negociar durará a moda da próxima estação. Daqui a 500 anos as pessoas continuarão admirando “Dom Quixote” de Cervantes e a “Escola de Atenas”, de Rafael Samzio ou qualquer um dos autorretratos de Rembrandt. Mas duvido muito que resista ao tempo qualquer um dos tubarões da coleção dos formois de Damien Hirst e outros. 

Robert Hughes lamentava nosso tempo em que a Arte virou brinquedo nas mãos do Mercado. Para ele, a história da Arte Moderna é uma história trágica e lamentava ter vivido somente após os grandes momentos criativos do Modernismo, em seus primórdios no começo do século XX. O Mercado que transformou a Arte em mercadoria é o mesmo que ajuda a multiplicar e a proliferar os artistas-celebridades.

Esta pintura do artista realista Gusta Courbet, O Desesperado, seria um bom espelho
da nossa estupefação diante de certas "obras de arte" contemporâneas.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Mulher de azul lendo uma carta

Hoje de manhã resolvi ir ao Masp ver a obra-prima de Johannes Vermeer, “Mulher de azul lendo uma carta”, pintada entre 1663-1665. A pintura, que é do acervo do Rijksmuseum de Amsterdã, está sendo exibida aqui em São Paulo até 10 de fevereiro.

"Mulher de azul lendo uma carta", de Jan Vermeer, 1663-65
Quase não tinha ninguém no museu, o que foi bom. Sentei-me em frente a ela, a pintura, e lá fiquei decifrando os segredos por trás do rosto da mulher de azul que lê uma carta misteriosa. De alguém que está longe? Pode ser... Sempre se espera notícias daqueles que estão distantes de nós, longe ou perto. As mãos dela, delicadas, seguram firmes no papel sobre o qual seu olhar se lança, como através de uma janela para enxergar coisas distantes. O brilho no rosto dela podem vir da janela, podem vir da carta. Sua barriga parece guardar uma gravidez. Seu rosto e seus cabelos são do mesmo tom do mapa a seu lado, que representa as expansões espaciais da vida...

Detalhe da pintura
Vermeer tem muitos quadros em que uma mulher está perto de uma janela, e a janela aparece. Mas neste aqui, só sabemos da janela pela luz que entra no aposento, e ilumina a testa dela, os dedos dela, o vestido azul lápis-lazuli dela. Os olhos estão atentos à carta, mas quando olhamos para a boca e para os olhos simultaneamente, os olhos são tristes. Me olho no espelho? Vermeer pintou esta tela com uma paleta muito reduzida, quase restrita ao azul do lápis-lazuli, mais terra-de-sena-queimada, sena-natural, e o que mais? A sombra do vestido azul da moça que parece grávida é uma sombra fria, intensa. Sobre a mesa há livros e um manto escuro que aumenta a sombra da parte inferior do quadro. Um mapa na parede parece dizer que o autor daquela carta anda por muito longe... E o azul que se espalha por vários lugares do quadro, no encosto e acento das cadeiras, na base que segura e estica o mapa, na sombra da saia da moça, na sombra do manto escuro e explode na blusa dela. Lápis -lazuli é uma pedra de cor azul que vinha da Índia e custava caríssimo no tempo de Vermeer.  Mas ele preferia o azul dessa gema cara ao azul do azurita, muito mais barato. Ele mesmo esmagava o pigmento, misturava com óleo de linhaça, preparava suas tintas.

Mas eu estava ali, sentada em frente dessa moça de azul de lápis-lazuli, lembrando do “No caminho de Swann”, de Marcel Proust que ando lendo... Proust adorava Vermeer. Ficou tão impressionado com o quadro “Vista de Delft”, numa exposição que teve em Paris, que a considerou a mais bela pintura que ele jamais vira. Faz uma descrição dela em um dos livros da série “Em busca do tempo perdido”. Mas eu ainda não cheguei lá.

Detalhe da pintura
Ainda estou no Caminho de Swann. Enquanto meus olhos percorrem o quadro de Vermeer, minha mente passeia pelas páginas já lidas, olhando para dentro como a moça que olha para o que está escrito na carta. Levei o livro para ler em minha viagem a São Luis, à casa da minha mãe. Coisa estranha. Ler Marcel Proust na casa da nossa mãe traz um gosto diferente, uma mistura de mundos, pois enquanto eu lia as descrições da casa do personagem, das relações familiares, da mãe, do pai, e das escaramuças entre a tia Léonie e Françoise, a empregada, no meu próprio pano de fundo os sons da minha própria família, conversas ocasionais, pequenas rusgas, e minha mãe pra lá e pra cá cuidando do almoço na cozinha, enquanto orientava a sua própria empregada. Eu parava a leitura, ouvia. Era a ilustração do que eu lia. Voltava à leitura, e reencontrava o personagem principal “àquela hora em que eu descia à cozinha para saber o que se preparava...”. Mundos que se entrecruzam...

Vermeer era realista. Marcel Proust incomoda com tanto realismo! Chega a beirar o insuportável! Por isso são tão poucas as pessoas que encaram a leitura de “Em busca do tempo perdido”. Ele era um fascinado pela realidade cotidiana, simples, corriqueira, aquela que nem nos chama a atenção, de tão rotineira. Mas Vermeer via. Mas Proust via. Um exemplo:

“Parava para olhar em cima da mesa, onde a criada de cozinha acabava de as debulhar, as ervilhas alinhadas e contadas como bolitas verdes em um jogo; mas todo meu encantamento era para os aspargos, empapados de azul ultramar e rosa, e cujo talo, delicadamente estriado de azul e malva, se degrada insensivelmente até a base – ainda suja do solo onde estivera – com irisações que não são da terra. Parecia-me que aqueles matizes celestiais traíam as deliciosas criaturas que se haviam divertido em metamorfosear-se em legumes e que, através do disfarce de sua carne comestível e firme, deixavam transparecer naquelas cores frescas de aurora, naqueles esboços de arco-iris...”

Proust parece ter efetuado um mergulho em busca do tempo perdido, se agarrando a pedaços de real que o tempo ia deixando escapar... Desde o começo ele fala em cores, em tintas, em pinturas, em luzes, em artistas. Alguns trechos parecem ter sido escritos como quando se contempla um quadro do outro realista, o Jan Vermeer... Como eu aqui, frente a essa moça azul, meus olhos vasculhando os momentos do quadro, encontrando a projeção da sombra da cadeira na parede e tendo a sensação de que ao mesmo tempo que o real me fisga, o real me escapa. Se eu fosse o Proust agora...

Mas eu também estava sob uma sombra naquela praia da Baronesa, em Alcântara. Olhava o mar, o céu, as ondas, os navios, os barcos, as gentes poucas daquela praia. Peguei meu lápis e capturei aquilo ali. Tem momentos que devem ser capturados, porque eles não voltam nunca mais! Ah, as coisas sem retorno da vida...

Volto ao museu e me levanto e vou embora, porque o mergulho dentro do quadro já foi longe demais e a vida me chama para trabalhar. Na rua, a luz externa me ofusca mas lança uma luminosidade ao meu coração e vejo que foi bom ter encontrado Vermeer nesta manhã nublada e cinza. E vi que será bom quando à noite em casa abrir meu livro e ver o mundo através dos olhos de Marcel Proust... Arte é vida.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Una Madonna per mia madre

Parte do processo de trabalho em meu ateliê
Pintei esta imagem, em pastel, a partir da pintura original "Madonna delle Arpie", feita em 1517, pelo pintor maneirista italiano Andrea del Sarto. O processo durou mais ou menos 20 dias de trabalho e foi um presente para a minha mãe, Dalva Leite, que mora em São Luís do Maranhão, aonde estive por dez dias neste final-começo de ano. Ver o rosto feliz da minha mãe ao receber o presente foi uma alegria imensa para mim! De tão feliz, ela ia pedir para algum padre abençoar o quadro, que será, para ela, uma imagem sagrada. Para mim também é sagrada: desde menina queria convencer meus pais de que eu poderia ser artista. Neste natal de 2012, décadas depois, minha mãe disse: você é uma artista! Momento muito simbólico para mim...

Sobre a pintura, resolvi não fazer uma cópia fiel, mas dar um estilo mais pictórico, deixando partes sem muita finalização, como a mão que segura o livro. A pintura original é maior, inclui outras figuras, como se pode ver abaixo. Giorgio Vasari, artista e historiador italiano, diz que Del Sarto teve a intenção de fazer com que esta imagem parecesse uma escultura, pois colocou a Madonna sobre um pedestal.

Andrea del Sarto foi um pintor italiano do período do alto Renascimento, nascido perto de Florença em 26 de novembro de 1486.

A pintura original "Madonna delle Arpie",
de Andrea del Sarto, 1517
Ele era filho de um alfaiate (em italiano se diz “sarto”) e com sete anos de idade começou a ser aprendiz de um ourives. Em seguida, tornou-se aprendiz do pintor e escultor em madeira Gian Barille. Como ele progredia muito rapidamente na pintura, foi encaminhado para o ateliê de Piero di Cosimo e, em seguida, para o de Rafaellino del Garbo.

Com um amigo, Andrea abriu seu próprio ateliê na Piazza del Grano. Nessa época ele fez uma série de pinturas monocromáticas, em grisália. Tempos depois, os amigos seguem caminhos separados e Andrea del Sarto se destaca individualmente.

Em 12 de dezembro de 1508 ele foi admitido na corporação dos pintores, a “l’Arte dei Médici e degli Speziali”, e são deste ano as suas primeiras obras. Fez diversas pinturas murais, afrescos e pinturas monocromáticas.

Casou-se em 1518 com Lucrezia del Fede. No mesmo ano viaja para a França a serviço do rei francês François I, com seu aluno Andrea Squarzzella. Ele já havia feito para o rei francês a “Madonna col Bambino”, além de outras obras. Sua esposa o chama de volta para a Itália, mas o rei lhe exige que sua ausência seja breve. Mas Andrea, já em Florença, resolve construir uma casa na cidade. O rei reage impedindo que Andrea volte a fazer parte de sua corte, sem outras maiores punições.

Em 1520 seu trabalho se concentra em Florença, fazendo diversas pinturas e afrescos.

Andrea del Sarto morreu de peste em Florença em 1531. Seu corpo está enterrado no chão da capela dos pintores da Santíssima Annunziata com mais outros 14 pintores.

Detalhe em pastel da "Madonna delle Arpie", Mazé Leite, 2012

domingo, 6 de janeiro de 2013

Rápidos rabiscos

No centro histórico de São Luís, hoje conhecido como Projeto Reviver
Fui para São Luís do Maranhão neste fim de 2012, como faço a cada um, dois anos para visitar minha mãe e irmãos que moram por lá. Passei o reveillon em Alcântara, cidade ainda mais antiga, primeira capital do Maranhão.

São Luís se moderniza com uma velocidade incrível. A cada vez que vou lá, encontro muita coisa nova e diferente. Mas tem coisas que ainda não mudaram, principalmente a miséria do povo, abandonado pelos mesmos que mandam naquele Estado há uns 50 anos, cujo sobrenome o Brasil inteiro conhece: Sarney. Povo pobre, família Sarney riquíssima.

Enquanto olhava de novo as mesmas velhas construções cada vez mais deterioradas por causa do abandono por parte dos sucessivos maus governos municipal e estadual, resolvi que ia fazer uns sketchs sem muito apuro, pegando só o sentido do que vi. Nem quis ser muito literal. Olhava, rabiscava a lápis, pegava o que queria e finalizava com nanquin. Fugi das novidades. Fiquei mais no que representa a cultura maranhense, grandemente influenciada pela cultura de origem indígena e africana, mescladas. Velhas embarcações, construções de palha, artesanato rudimentar, redes, praias, casas de taipa, coqueiros, canoas, redes de pesca, chapéus de palha, imagens religiosas católicas e do candomblé... Uma atmosfera meio barroca ainda ronda o Maranhão...

O calor de lá, junto com o sol quente, dá uma preguiça danada...
Vista da baía de São Marcos, do paredão ao lado do Palácio dos Leões
Na avenida Litorânea, essa mesa tosca empurrava o coqueiro
Uma espécie de tenda coberta de palha, na praia da Baronesa em Alcântara
Velho lustre feito de metal, quase simétrico, quase bonito,
mas mantém uma rudeza que diz muito sobre aquela terra.
Ele estava sobre uma mesa do restaurante da Pousada Bela Vista
Teto de palha que cobre um local de descanso com redes estendidas,
na Pousada Bela Vista em Alcântara, MA 
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Um barquinho que voltava de Alcântara