quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Aos mineiros do Chile


O Poeta PABLO NERUDA, em um discurso em 1947 (!), no Senado do Chile, denunciava as condições de vida dos mineiros de seus país e perguntava indignado: "Como é possível, Senhor Presidente, tolerar que nossos compatriotas estejam entregues a esta exploração ignominiosa?" E dedicou a esses mineiros o poema abaixo, que consta de seu livro CANTO GERAL. 

É bom lembrar das condições reais em que vivem os mineiros do Chile neste momento em que a midia mundial quer transformar a vida dos 33 mineiros resgatados, em um espetáculo. Porque a vida deles irá continuar, logo passe essa fase em que eles são notícia...


El Maestro Huerta 


De: PABLO NERUDA


De la mina “La Despreciada”, Antofagasta)*

Cuando vaya usted al Norte, señor,
vaya a la mina “La Despreciada”,
y pregunte por el maestro Huerta.

Desde lejos no verá nada,
sino los grises arenales.
Luego, verá las estructuras,
el andarivel, los desmontes.
Las fatigas, los sufrimientos
no se ven, están bajo tierra
moviéndose, rompiendo seres,
o bien descansan, extendidos,
transformándose, silenciosos.

Era “picano” el maestro Huerta.
Medía 1.95 m.
Los picanos son los que rompen
el terreno hacia el desnivel,
cuando la veta se rebaja.

500 metros abajo,
con el agua hasta la cintura,
el picano pica que pica.

No sale del infierno sino
cada cuarenta y ocho horas,
hasta que las perforadoras
en la roca, en la oscuridad,
en el barro, dejan la pulpa
por donde camina la mina.

El maestro Huerta, gran picano,
parecía que llenaba el pique
con sus espaldas. Entraba
cantando como un capitán.
Salía agrietado, amarillo,
corcovado, reseco, y sus ojos
miraban como los de un muerto.

Después se arrastró por la mina.
Ya no pudo bajar al pique.
El antimonio le comió las tripas.
Enflaqueció, que daba miedo,
pero no podía andar.

Las piernas las tenía picadas
como por puntas, y como era
tan alto, parecía
como un fantasma hambriento
pidiendo sin pedir, usted sabe.
No tenía treinta años cumplidos.

Pregunto dónde está enterrado.
Nadie se lo podrá decir,
porque la arena y el viento derriban
y entierran las cruces, más tarde.

Es arriba, en “La Despreciada”,
donde trabajó el maestro Huerta.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Estamos bien en el refugio, los 33

Da escuridão, a vida emergiu

Minha homenagem aos 33 operários chilenos que ficaram 69 dias presos dentro de uma mina de cobre, a 700 metros de profundidade, aguardando o resgate, que se iniciou na madrugada de hoje, 13 de outubro.

Torcendo para que seu sacrifício não tenha sido em vão, e que os capitalistas cuidem um pouco mais do salário, da segurança e da saúde dos operários mineiros em todo o mundo, assim como de suas famílias.

Em tempo: (O Globo, 19/10/2010) "O Sucesso do resgate dos mineiros que estavam presos a 700 metros do solo no Chile acabou suplantando uma importante discussão. Afinal, só em 2009 o país registrou mais de 191 mil (!) acidentes de trabalho em todo o país, com 443 mortes. (!) E no primeiro trimestre deste ano foram 155 mil mortos. (!) Em entrevista à rede de notícias IPS, sindicalistas do setor de mineração ressalataram que os mineiros não são heróis, mas vítimas de uma situação desigual em relação às empresas para a qual trabalhavam. Para sindicalistas chilenos, "a lamentável irresponsabilidade empresarial abriu uma grande oportunidade para que os trabalhadores denunciem e mostrem tudo o que se esconde."

Nuestras mujeres - lápis carvão sobre papel cartão

Mejores condiciones de trabajo! - carvão e pastel sobre papel cartão

 Aquí estoy a salvo - carvão e pastel sobre papel cartão

Dile que estaré de vuelta! - carvão sobre papel cartão

Volveremos! - carvão sobre papel cartão

Estoy vivo - carvão sobre papel cartão

Ayúdenos - carvão sobre papel cartão

Os operários desenhados a carvão
surgem do preto mineral com seus olhos de minério,
com suas carnes de minério,
com suas esperanças superminerais.
No oco da mina aguardam como fetos o momento da expulsão um a um.
Sob esse aspecto, gêmeos univitelinos do mesmo útero e do mesmo carvão,
chegarão à superfície chilena desejados e amados
e cegos da escuridão placentária.
Lavaremos seus corpos com a água salgada de nossas lágrimas e de nossa espera.
Ao saírem do chão, estou feérico, é a nós que desenterram,
e à metáfora de uma nova classe operária
brotada para um novo tempo a partir da cova funda
onde homens-sementes-minerais foram plantadas.

(Um comentário que virou poesia - de Jeosafá Fernandes)

sábado, 2 de outubro de 2010

Os revólveres, os urubus, a Bienal e as polêmicas do momento

Reproduzo abaixo artigo do poeta AFONSO ROMANO DE SANT'ANNA sobre a Bienal de São Paulo.

Artista, acima de qualquer suspeita?


Gil Vicente contra Gil Vicente
(do blog do Afonso Romano)
A 29ª Bienal de São Paulo está propiciando uma discussão que não pode ficar na superfície dos fatos. Com efeito, a Bienal anterior, que denominei de "a bienal do vazio" não se interessou em discutir a fundo o problema que levantou, e tudo terminou como uma questão policial. 

Agora surgiu a polêmica em torno dos desenhos do artista pernambucano Gil Vicente, nos quais ele aparece atirando em Fernando Henrique Cardoso, cortando a garganta de Lula e matando outros lideres mundiais como Nethanyahu, Armadinejad, Rainha Elizabeth e o Papa atual.

Formaram-se logo dois grupos opostos. A OAB, exercitando seu discurso jurídico, prometeu processar o artista e/ou a Bienal por incitação ao crime e à violência, e do outro lado os curadores afirmando que isto é censura. E alçaram a palavra "censura" como um talismã que os protegesse.

A questão me parece mal colocada. E quando se coloca mal uma discussão, deriva-se para outros mal entendidos. Consideremos primeiro que esse episódio remete para algo conhecido no mundo antigo como "morte em efígie". Não se podendo destruir o réu, destruía-se sua imagem, arrasando sua memória.

Mas não é a primeira vez que dentro da modernidade ocorre um crime semelhante. Em 1965 três pintores mataram Marcel Duchamp. Gilles Aillaud, Antonio Recalcati e Eduardo Arroyo pintaram oito quadros realistas nos quais surpreendiam Duchamp subindo uma escada, esmurravam-no, torturavam-no e jogavam-no escada abaixo nu.

Duchamp, que propunha a morte da arte, não gostou de se ver morto ali. E analisando esse quadro/episódio no livro "O Enigma Vazio" (Ed.Rocco) eu dizia que não é matando, mesmo em efígie, o ícone da arte de nosso tempo que o entenderemos. O desafio é ir a fundo na sua vida&obra (que foi o que tentei fazer). Além do mais, a violência dos três pintores insere-se no quadro violento dos anos 60/70 quando o pensamento totalitário à esquerda e à direita achava que pela força resolveriam problemas sociais e políticos.

Portanto, preservando-se o direito do artista se expressar, mas alertando para as consequências disto, não se pode deixar de ver na obra daquele artista pernambucano um paradoxal exercício da violência. A meu ver, deveríamos ter aprendido com a Revolução Francesa, com a russa, a chinesa e cubana, que cortar a cabeça dos lideres é inócuo. Por outro lado, ressurge aí a síndrome voluntarista, perversa e autoritária do "justiceiro" - figura que a sociologia estuda pertinentemente.

Acima de qualquer suspeita?

Isto posto é crucial trazer à discussão uma pergunta: É o artista um cidadão acima de qualquer suspeita? Esta é uma clara alusão ao filme de Elio Petri ("Indagine su un Cittadino al di Sopra di Ogni Sospetto"- 1971). Naquela película, um policial comete um assassinato, e por pertencer aos altos escalões do sistema julga-se tão incólume que até participa das investigações. Transpondo para o caso da Bienal e da arte atual, pergunta-se: estaria o artista acima de todas as leis sociais?

Para começar a entender essa pergunta, lembre-se que a ditadura recente nos deixou uma marca deletéria: depois de tanta repressão, caímos na ânsia de repressão nenhuma. Mergulhamos no oposto. Por isto, o mote: "é proibido proibir", que tem o seu charme juvenil, é um paradoxo, pois proibir a proibição é exercitar a proibição e a censura, só que do outro lado.

Por sua vez, a ideologia da pós-modernidade alardeia que tudo é legítimo, que não há fronteiras, nem valores, que as coisas se esgotam em si mesmas sem qualquer outro compromisso que não seja hedonista e narcísico. Portanto, um vetor nacional e outro internacional se complementam em forjar uma ideologia de época, que deve ser analisada cautelosamente.

Isto nos leva a um outro aspecto já que esta 29ª Bienal tem como tema "Arte e política". Ora, falar da política convencional é fácil. Acusar políticos, verberar contra os militares, é uma banalidade. Eles são os "outros". No entanto, há um enfrentamento político, igualmente urgente, dentro das artes. É necessário questionar o sistema em que as artes se baseiam. Isto consiste em rever o poder dos curadores, o sistema das galerias, as premiações, a crítica universitária e jornalística, a publicidade, a bolsa de valores, enfim, o "deus ex machina" que hoje, mais do que nunca, controla as artes - o mercado.

E para esclarecer a esquizofrenia do sistema artístico e de nossa sociedade, leiamos esse poema do antipsiquiatra R.D. Laing:

“Ele estão jogando o jogo deles
eles estão jogando de não jogar o jogo
se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão
quebrarei as regras desse jogo
e receberei a sua punição.
O que devo pois é jogar o jogo deles
o jogo de não ver o jogo que eles jogam.”

Na última Bienal isto ficou claro: os grafiteiros que denunciaram o "jogo" do qual não podiam participar foram parar na polícia. Na atual Bienal já ocorrem reclamações semelhantes, comprovando que a arte oficial de nosso tempo não consegue resolver seu paradoxo fundamental: diz que não há fronteiras, que tudo é licito, desde, é claro, que sejam suas as fronteiras e desde que sejam "eles" a decidirem o sistema que tutelam.

Todo mundo é artista?
Grande parte da arte contemporânea se baseia em silogismos que nunca foram analisados detidamente. Se analisados, revelam-se como falácia. Falácias que levam a becos sem saída.


Retomemos a questão implícita no conceito de que o artista pode tudo, que ele é um cidadão acima de qualquer suspeita. Existe um silogismo básico na prática da arte oficialista (o governo deu R$ 46 mihões para a Bienal), silogismo originário de Duchamp, segundo o qual a arte morreu e todo mundo é artista.

Ora, vejamos o silogismo aí contido: todo mundo é artista / o artista está acima de qualquer suspeita / logo, todo mundo esta acima de qualquer suspeita. Como se sabe, essa verdade é mentirosa. Se todo mundo estivesse acima da lei, não existira lei, nem sociedade.

Esse silogismo é ainda falacioso, enganador, porque sabemos que nem todo mundo é artista e que uns são "mais" artistas que outros. Pior: dentro do sistema das artes que, hipócrita e espertamente decretou que tudo é arte e todos são artistas, grupos bem organizados e presos sobretudo às leis do mercado e do marketing controlam as leis éticas e estéticas que, paradoxalmente, dizem não existir.

Portanto, uma discussão radical sobre política e arte passa pelo exame interno do sistema das artes hoje e tem que enfrentar certos paradoxos, dilemas e sofismas. É uma operação tão arriscada e séria, que pode levar a um suicídio histórico, a um colapso do sistema. Ou, então, o que seria admirável, ao renascimento da própria arte de uma forma para nós ainda inimaginável.

Afonso Romano de Sant'Anna

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A Bienal de Artes que se diz política

Foi inaugurada em São Paulo, no último dia 25 de setembro, a 29ª Bienal Internacional de Artes, no pavilhão do Ibirapuera. A mostra estará aberta ao público até o dia 12 de dezembro de 2010, com obras de 159 artistas de várias partes do mundo, sendo 52 brasileiros.


Neste domingo chuvoso e frio de 26 de setembro, fui visitar a 29ª Bienal de Artes de São Paulo. Como ainda estava cedo, uma meia dúzia de pessoas entrou no prédio, após uma revista rigorosa de seguranças postados na entrada. A moça que portava um scanner ameaçador, pediu: “pode abrir sua bolsa?” Eu perguntei: “por que? Para ver se eu não estou trazendo um spray comigo?” Enquanto examinava minha bolsa, respondeu: “Ordens da direção”. Entrei no prédio e fui refletindo, em estado de choque: Bienal da violência? Na noite anterior um rapaz tinha invadido uma instalação e deixado lá uma frase de protesto: “Liberte os urubu!” (sic)

Mas o tema escolhido para este ano é “Arte e Política”. Segundo os curadores Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, a ideia de fazer dessa Bienal de 2010 uma exposição que tenha essa conotação política, deve-se ao fato de ser importante “resgatar o entendimento tradicional na relação que sempre existiu entre Arte e Política.”

Arte e política?
Mas é necessário esclarecer que o entendimento que os curadores desta Bienal têm da relação arte-política está longe de ser tradicional. Diz Agnaldo Farias: “Nossa ideia é criar um conceito-arquipélago, sem bordas nítidas. Queremos escapar de uma noção literal do binômio “arte e política”, associada a uma tradição realista, e recuperar uma outra compreensão, de uma arte mais experimental, que ataca no âmbito da linguagem, levando a novas formas de sociabilidade e de compreensão do objeto artístico.” Então... como diz a música “Bienal” do Zeca Baleiro, “minha mãe não entendeu o subtexto/ da arte desmaterializada no presente contexto/ reciclando o lixo lá do cesto/ chego a um resultado estético bacana...” E fazemos um esforço honesto de compreensão dessa verborragia que mais parece ter sido construída com o intuito de atrair de novo as atenções para uma entidade que se esvazia ano a ano.

O “objeto artístico”, no caso desta Bienal, é basicamente centrado na fotografia. Andando-se pelo pavilhão entremeado de pequenos ambientes fechados, e do que os curadores chamam de “terreiros”, o público se depara com uma quantidade enorme de fotografias, isoladas, agrupadas, formando conjuntos grandes ou pequenos. Há também espalhados em espaços apropriados, os vídeos, que apresentam temas os mais variados, desde pequenos documentários e assuntos non-sense a um vídeo do cineasta francês Jean-Luc Godard. E instalações diversas espalhadas pelo prédio, de artistas nacionais e estrangeiros.

A representação internacional de artistas segue, basicamente, o mesmo perfil. Traz do norte-americano Joseph Kosuth, criador e teórico importante da arte conceitual, à fotógrafa Nan Goldim, também dos EUA, que influenciou toda a fotografia praticada a partir dos anos 1980 (inclusive a de moda), ao chinês Ai Weiwei.

No caso deste chinês, sua obra – um conjunto de cabeças de animais estranhos espetadas em suportes que lembram troncos estilizados – foi colocada estrategicamente no hall de entrada do prédio. No site da Fundação Bienal, ele é apresentado como um chinês nascido na China socialista, mas que se exilou “voluntariamente por um período em Nova York, o que alargou seu repertório conceitual, visual e histórico”, segundo a organização da Bienal que acrescenta que seu “Circle of Animals” lá exposto tem um “forte valor simbólico e material que apropriam e ressignificam objetos”. Pois é.

Além dos espaços destinados à apresentação das obras, a Bienal também conta com seis espaços, que estão sendo chamados de terreiros, usando os 30 mil metros quadrados de área disponíveis no Pavilhão do Ibirapuera. A ideia dos “Terreiros”, para os organizadores, é dar o tom de celebração da política, “uma vez que o terreiro, na cultura brasileira, é um espaço entre o sagrado e o profano, um espaço da troca, da festa, mas também da resistência”, disse Agnaldo Farias, o curador. Tentando examinar os tais “Terreiros”, cheguei à conclusão que mais uma vez o discurso se coloca na frente da arte: terreiros conceituais. Mãe Menininha do terreiro do Gantois jamais poderia reconhecer na megalomania conceitual desses gestores de arte atual, o bom e velho terreiro dos brasileiros.

Mas estão presentes também artistas da arte contemporânea nacional, como Cildo Meirelles, Hélio Oiticica, Artur Barrio, Antônio Dias e o performático Flávio de Carvalho. A presença das xilogravuras de Oswaldo Goeldi chega a ser uma dissonância em meio à monotonia do que se apresenta nesta mostra. O artista cearense Efrain Almeida também está presente, com uma instalação composta de cinco autorretratos esculpidos em madeira, postos em pedestais desproporcionais ao tamanho deles. Mesmo se mantendo dentro da tradição cultural nordestina, sua linguagem artística (como gostam de falar os arautos da arte contemporânea) se atualizou ao ponto de ele já ter participado de várias bienais internacionais. No corpo das figuras, com machetaria, fez tatuagens de carcarás, urubus, cactos e símbolos do cangaço. Mas ele diz uma frase que reflete bem como é a vida do artista da região nordeste, especialmente: “Nascendo onde nasci, em contexto de poucas possibilidades, fazer arte é atitude política”. Concordo.

Atitude política que tentou passar o Ministro Juca Ferreira no dia da inauguração da 29ª Bienal. O Ministro, cujo Ministério da Cultura foi um dos grandes patrocinadores da mostra deste ano de 2010 (o governo federal repassou À Fundação Bienal aproximadamente R$ 46 milhões), elogiou o esforço dos diretores da Bienal em recuperar administrativamente essa instituição, que foi deixada bastante endividada após o fracasso da 28ª Bienal, que ficou conhecida como a Bienal do Vazio. O Ministro, referindo-se ao tema “Arte e Política”, disse: “ouso dizer, que é impossível separar arte e política. Apesar de tantas interpretações possíveis para definir esta relação. (...) A Política entendida aqui como a arte da convivência coletiva com nossos impasses e virtudes, mas também a busca coletiva de soluções para os problemas de todos nós. A Política como campo privilegiado das negociações sociais e do exercício de poder compartilhado, como uma arte de exercício do conhecimento e revelação de possíveis mundos.”

Mas esses “possíveis mundos” – ou a probabilidade de todos os mundos e ideias artísticas possíveis – não estão presentes nesta Bienal. Com exceção de uma rara tela de pintura, das gravuras de Goeldi e dos desenhos de Gil Vicente, não se encontram presentes outras linguagens das artes plásticas, especialmente a figurativa, considerada pelo sistema de arte atual, como coisa do passado.

A Bienal e seus escândalos

Gil Vicente e FHC
Como não poderia deixar de ser, esta versão da mostra que ocorre a cada dois anos em São Paulo, está tendo seus momentos de polêmicas que tomam as páginas dos jornais e os programas televisivos.

A série de desenhos intitulada “Inimigos", do pernambucano Gil Vicente, causou polêmica antes mesmo de ser exposta. Nela, o artista retrata a si mesmo matando personagens famosos como Fernando Henrique Cardoso e Lula. Uma semana antes da abertura da Bienal, a OAB-SP divulgou uma nota em que se coloca contra a exposição da série, "por fazer apologia ao crime".

Em entrevista a estudantes uma semana depois, Gil Vicente disse que escolheu os personagens, de acordo com sua repulsa pessoal. Ele desenhou-se a si mesmo portando na mão um revólver apontado para figuras públicas, colocando Lula em pé de igualdade com FHC e George W. Bush. No caso de Lula, Gil Vicente aparece de pé atrás do Presidente, que se encontra amarrado a uma cadeira, indefeso, com uma faca contra seu pescoço. Vicente disse que os desenhou por compreender “muito intensamente a impossibilidade de mudança no mundo, e que, qualquer tentativa seria abafada.” Com toda a certeza, os torturadores do regime militar e os inimigos atuais do Presidente do Brasil teriam adorado ver Luís Inácio sendo torturado, mesmo que em efígie, e ameaçado de morte. Como isso pode contribuir para uma reflexão entre arte e política, a não ser incitando sentimentos de ódio e violência?

Violência também presente sutilmente numa outra obra, a instalação “Bandeira Branca” de Nuno Ramos. Movimentos em defesa dos animais e defensores dos direitos dos animais se puseram a postos para boicotar a bienal que aprisiona, em nome da “arte”, três urubus vivos. Mas o ato mais contundente contra essa instalação foi cometido pelo jovem pichador Rafael Augustaitiz, ou Rafael Pixobom, como é conhecido. Ele rasgou um lado da tela protetora da instalação e escreveu com spray: “Solte os urubu!” Foi preso. Entrevistado sobre o assunto, Nuno Ramos disse que não ia prestar queixa contra o rapaz, mas que achou um absurdo pois “a Bienal é um momento em que o público abre a cabeça” (sic!).

Obra de Roberto Jacoby
Outra obra que deu assunto para jornalistas de plantão foi a proibição, por parte do Tribunal Regional Eleitoral, da exposição da obra “A alma nunca pensa sem imagens”, do artista argentino Roberto Jacoby, declaradamente fã de Lula e do PT. A iniciativa de consultar o TRE partiu dos próprios curadores da Bienal, segundo Jacoby. Ele apresentava duas fotos gigantes, uma do José Serra num zoom carrancudo e outra da Dilma Roussef exultante com um chapéu de couro colorido com as cores da bandeira de Pernambuco. Além disso, o argentino trouxe uma equipe de auxiliares argentinos, todos vestidos com camisetas vermelhas com a inscrição “Brigada Argentina por Dilma”, estampada em amarelo. Pronto! A Bienal política não pode induzir pessoas a pensar em eleições presidenciais... Mas a mesma Bienal defende um quadro onde o autor quer matar o Presidente Lula...

Já no final da minha visita, resolvi entrevistar quatro pessoas, que me pediram para serem mantidas em segredo, porque são todas funcionárias terceirizadas da Fundação Bienal. Minha escolha por entrevistar trabalhadores da Bienal, e não o público presente, foi intencional. Elas não estão lá porque ouviram dizer que a Bienal está causando frisson pelas polêmicas do momento, mas porque lá trabalham. São eles: um bombeiro, uma segurança e duas monitoras.

Para os quatro, fiz a mesma pergunta: para você, isto que está exposto aqui é arte? A primeira reação de todos foi um sorriso de dúvida. Em seguida, palavras oscilantes tentando se posicionar. O bombeiro a princípio resistiu em responder, mas quando eu lhe dei minha opinião, ele disse: “olha, eles dizem que é arte. Mas eu não entendo isso. Não sei se é arte. Algumas coisas acho que são.” Enquanto a moça que fazia a segurança de um dos setores me disse: “Ah tem umas coisas bonitas, mas tem umas coisas feias... E esses urubus aí, eu não acho que é arte. Mas é que eu não entendo muito...”

Me dirigi às moças que fazem a monitoria e orientam o público sobre as obras. Minha pergunta as assustou um pouco, mas logo uma delas me respondeu: “Você sabe, né? Hoje em dia há um entrelaçamento muito grande entre as linguagens artísticas, que conversam entre si.” Questionei onde estava esse entrelaçamento, uma vez que o que eu via ali era tudo arte conceitual? É que hoje em dia, a arte visual está mais independente do desenho e da pintura. Ah, tá... respondi. Mas e você, me dê sua opinião pessoal, você realmente gosta disso que está aqui? Ela: “ah, eu não sei, assim, sabe, meu professor disse que a gente precisa abrir mão dos conceitos antigos para assimilar esse novo momento na arte”. E esse novo momento na arte não deixa mais ninguém ser desenhista e pintor? Ela me olhou, sorrindo, sem saber o que responder. Agradeci, saí.

Saí pensando o quanto seria bom se aquele prédio tão bonito, assinado por Oscar Niemeyer, fosse de fato pluralista e aberto a todas as linguagens das artes visuais. Um espaço, que é público, deveria ser mais democrático, mais aberto a artistas brasileiros e estrangeiros de todos os estilos. Quem sabe um dia poderíamos fazer uma grande Exposição de Artes realmente representativa de toda a arte que é feita neste país, em milhares de ateliês e por milhares de artistas solitários que lutam com muito esforço para sobreviver nesse mundo aí.

“Liberte os urubu!” da Bienal do espetáculo


A 29ª Bienal de Artes de São Paulo foi inaugurada no último dia 25/09, com mais de 800 trabalhos de 148 participantes. Dias antes de sua abertura, já freqüentava as páginas dos jornais e os noticiários televisivos, transformando-se no que gosta de ser: um espetáculo.

Antes de qualquer coisa, vamos narrar três fatos ocorridos nestes últimos quinze dias, cujo centro é a Bienal:

1 - a OAB-SP oficiou um parecer junto ao Ministério Público solicitando que as obras do artista Gil Vicente fossem retiradas da exposição por incitação ao crime. São desenhos realizados entre 2005 e 2010, onde o autor aparece com um revólver ameaçando figuras políticas nacionais e internacionais, incluindo o papa. Curadores e autor protestaram.

2 - o argentino Roberto Jacoby teve suas duas obras retiradas da mostra, por solicitação do Tribunal Regional Eleitoral, por serem consideradas propaganda eleitoral. Ocorre que o argentino colocou duas fotos gigantescas de um carrancudo Serra e uma empolgante Dilma vestida com trajes coloridos. Autor protestou, curadores apoiaram o TRE.

3 - No dia da inauguração, um garoto com um spray, ao final do dia, sorrateiramente rasgou a tela protetora de uma instalação de Nuno Ramos, que mantém três urubus vivos dentro de um viveiro no vão central do prédio. O rapaz invadiu aquele espaço e escreveu simplesmente: “Liberte os urubu!” (sic) Logo em seguida uma confusão se armou e algumas pessoas, entre elas o pichador, foram parar na delegacia. A Bienal encerrou a visita do dia antes da hora, e a curadoria da Fundação Bienal emitiu uma “nota de repúdio” contra o ato de Rafael Pixobom, nome do rapaz.

O que significa tudo isso? Vamos recordar um pouco da história da Bienal.

Em 1951, o Museu de Arte Moderna de São Paulo lança a I Bienal Internacional de Arte da América Latina com 1.800 obras de 20 países. A ideia, presente nas artes desde o começo do século em Paris e em Moscou, era modernizar as artes plásticas, ideia esta que se multiplicou em todos os ismos dos movimentos modernistas mundo a fora. Nas primeiras bienais de arte de São Paulo, artistas de renome internacional foram apresentados ao público brasileiro: Pablo Picasso (trazendo em 1953 a sua obra “Guernica”), René Magritte, George Groz, Paul Klee, Mondrian, Jackson Pollock, os expressionistas alemães, e mesmo artistas como Van Gogh. Dos artistas nacionais destacaram-se Portinari, Alfredo Volpi, Di Cavalcanti, Lívio Abramo, Tarsila do Amaral, etc. Impossível citar todos os grandes artistas que expuseram suas obras nas Bienais do passado.

Pulando rapidamente para o momento presente. Ontem fui visitar a 29a Bienal de São Paulo no pavilhão do Ibirapuera. Os curadores tinham anunciado a participação de artistas de vários outros países e que o tema deste ano seria “Arte e Política”. Fui, com minha câmera fotográfica, para ver o que vinha por aí. Fazia muito tempo – uns 10 anos – que eu tinha desistido de ir às bienais. Pela mesmice das obras, pela repetição cansativa, e pela ausência de obras representativas das belas artes, nacionais e internacionais. A bienal se transformou em mais um apêndice do sistema monopolista das artes atuais, onde predomina quase absoluta a chamada arte conceitual.

Foi o que vi por lá ontem. Instalações que repetem padrões que vêm desde as primeiras instalações de cem anos atrás, ou seja, já não há mais novidades, apenas “releituras” nauseantes (arte contemporânea?); vídeos extremamente chatos (imagine colocar uma câmera num ponto estratégico da avenida Paulista e deixá-la lá por horas filmando o trânsito chato de São Paulo – e isso é apresentado como arte!); fotografias, fotografias espalhadas por todos os vãos do prédio, confundindo o público, que pode se perguntar: isto é uma Bienal de fotografia? E eu acrescento: será que já não se sente uma espécie de saudade da pintura figurativa e por isso a chamada arte contemporânea está repleta de fotografias? (fotografias figurativas, diga-se de passagem!)

Mas não é só e apenas isso. Falta o elemento principal presente no sistema de arte hoje, que inclui a Bienal de São Paulo: há o ESPETÁCULO! Sim, senhores, numa sociedade pós-moderna como a nossa que espetaculariza tudo, nada mais coerente do que a espetacularização atingir as artes visuais.

"Liberte os urubu!" - a "arte" de Rafael Pixobom
É aqui que chegamos para tentar explicar o que aconteceu com os três fatos acima citados. Gil Vicente somente conseguiu expor seus agora famosos desenhos não porque eles tivessem qualidade técnica (que os têm – mas isso não é mais importante para a curadoria de arte atual), mas exatamente porque eles iriam “causar” polêmica, quando propõem a morte do papa, do Lula e do Ahmadinejad. O argentino, que não se sabe se sabe desenhar ou pintar, expertamente copiou e colou fotos de Serra e Dilma da internet, ampliou-as para os quatro metros de altura e aí está: conseguiu se sobressair, pois o TRE e os curadores disseram um NÃO, não às fotografias, mas à tentativa dele de apoiar Dilma. E o terceiro acontecimento, o do garoto com o spray na mão atacando a obra de Nuno Ramos, nada mais é do que uma reação de violência natural à violência da instalação que apresenta peças enormemente marrons, escuras e feias, em cujo topo das quais ele resolveu colocar três pobres urubus vivos. Por que? Será que não seria melhor, já que quer falar da violência na cidade, pintar um quadro que também contivesse três urubus pintados?

Para concluir, digo que realmente Afonso Romano de Sant’Anna, poeta e crítico de arte, tem razão: a instituição Bienal já era! Ela está dando seus últimos suspiros na Bienal de Berlim (que visitei em julho deste ano, completamente sem público, porque os alemães estavam mesmo é formando fila para ver obras de qualidade nos museus), e resiste ainda na Bienal de Veneza. Aqui em São Paulo, já deu sinais de exaustão, de morte ainda não anunciada, porque os técnicos que administram a Fundação Bienal querem de fato tornar a instituição uma grande fonte de renda! Fonte de inspiração, de beleza, de reflexão, de contemplação, de enlevamento da alma humana, sentimentos produzidos pela Arte verdadeira, já não são valores que interessam ao sistema da arte atual. Os valores são outros: os das Bolsas de Valores.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Ferreira Gullar falando de arte

ENTREVISTA COM FERREIRA GULLAR

Ferreira Gullar
Ferreira Gullar, um dos mais importantes críticos de arte da atualidade, além de poeta, concedeu esta entrevista abaixo em 2007 ao Jornal de Brasília, que transcrevo, pela sua atualidade e importantes observações sobre o mundo das artes plásticas hoje. Uma pena que, à medida em que envelhece, este poeta vai ficando cada vez mais retrógrado em sua visão de mundo...

É importante lembrar que Ferreira Gullar e Hélio Oiticica, artista plástico brasileiro, participaram juntos da criação do Neoconcretismo, no final dos anos 50. Em 1959, Gullar escreveu o Manifesto Neoconcreto, que influenciou decisivamente o desenvolvimento da obra de Oiticica. Em seguida, Gullar formulou sua Teoria do Não-objeto, a partir da observação do processo criativo de Lygia Clark. Depois, ele fez autocrítica dessas posições anteriores.

Jornal de Brasília - No que consiste e o que induziu a esta situação de mistificação no território das artes?

Ferreira Gullar - A questão é que as tendências mais radicais da arte contemporânea levaram a uma destruição das linguagens artísticas. Por falta de coragem, não se faz a crítica deste processo, no momento em que as propostas radicais da vanguarda chegaram a um ponto de exaustão, chegaram a um ponto onde não tem mais nada a ver com a arte.

J.B. - Como isto se torna possível?

Gullar - Por um lado existe uma crítica omissa, conivente e conveniente, por outro lado existem instituições que, de alguma maneira, dependem desta situação para sobreviver. Você tem o exemplo de uma exposição de renome internacional como a Bienal de Kassel, que teve como curador um sujeito que declarou que não sabia mais o que era a arte. Ele selecionou os nomes dos artistas. Claro que não é possível definir cientificamente o que é arte. Mas se uma pessoa não sabe o que é arte não tem condições de organizar uma Bienal.
J.B. - Qual o alcance da crítica que dirige a Marcel Duchamp? Até que ponto nega Duchamp? Ele não ampliou o repertório, os materiais e os limites da arte?

Gullar - É preciso colocar as coisas em seu devido lugar. Eu não nego a importância de Marcel Duchamp. Mas ele é apenas um dos que ampliaram o campo da arte para as novas formas como objeto. O caminho de ruptura com as formas tradicionais já havia sido aberto pelos dadaístas. E o próprio caminho que Duchamp
segue é uma conseqüência de papier collé cubista. A utilização da estopa, areia e prego nos quadros cubistas já prenuncia o abandono da tela e a incorporação do objeto como matéria da arte. Duchamp não nasceu do nada. A diferença está entre o que Duchamp fez no tempo dele e no que se quer fazer hoje.

J.B. - Em que sentido?

Urinol, de Duchamp
Gullar -  Quando Duchamp enviou um urinol a um salão estava realizando um gesto de alto inconformismo e denunciando uma série de imposições que envolviam a arte naquele momento. O urinol não é obra de arte. Quando ele fez isto o seu gesto era rebeldia, mas hoje seria puro conformismo. As instituições já assimilaram este gesto. Esta atitude de denúncia e de arte sem linguagem já se exauriu. Em Duchamp esta atitude era significativa de uma postura ética. Mas por outro lado contribui para a destruição da obra de arte. Duchamp sacrificou a sua obra em razão desta atitude ética. A obra de Duchamp é datada.

J.B. - Em entrevista, você afirmou que Lygia Clark e Hélio Oiticica eram excessivamente cerebrais. Mas a busca dos dois não era precisamente do sensorial?

Gullar -  O Hélio era um cara de um indiscutível talento e que levou ao ponto extremo as experiências do neo-concretismo do qual eu era o teórico. E digo mesmo que houve uma influência recíproca dos artistas plásticos sobre a minha poesia e da minha poesia sobre os artistas plásticos. O meu Poema Enterrado influenciou os trabalhos de Hélio. Então eu não estou falando de fora. Nós pegamos a linguagem concreta e altamente intelectualizada e colocamos uma nova substância nela. A Lygia tem uma trajetória de uma enorme coerência, desde o momento em que os quadros delas incorporaram a moldura como espaço de expressão até a série Bichos, inovadora e verdadeira.
Mas, ao invés de aprofundar o desenvolvimento desta linguagem, ela resolveu seguir adiante, destruindo a própria linguagem. Quando coloca sacos de papel na parede ou fios de nylon na boca, reduz a experiência estética a algo meramente sensorial. Acaba com a dimensão reflexiva e espiritual da obra de arte. E consequentemente o homem se torna um bicho.
E agora respondo a sua pergunta: o excesso de intelectualismo levou ao puro sensorial.

J.B. - Mas você faria esta mesma avaliação do trabalho de Hélio Oiticica?

Gullar - O último trabalho que vi do Hélio era uma instalação no Hotel Meridien. Era um espaço com água e pedrinhas. Você tinha de retirar o sapato para sentir a água e as pedra. Olha só aonde leva este cerebralismo: a idéia de recriar a natureza dentro de um hotel. Francamente, se é para sentir a natureza acho melhor ir para Mauá.
E, ao invés de colocar as implicações deste tipo de atitude, a crítica fica louvando. Quem criticar isto é careta ou reacionário. Outro dia eu tive uma discussão com uma amiga minha e ela citou Andy Warhol que dizia que uma atitude podia ser uma obra de arte. Mas quem é Andy Warhol? É o papa? É deus? Ele era um artista interessante que se rendeu ao comercialismo. Como teórico para mim era um babaca.

J.B. - Não haveria, por exemplo, sintonia entre os parangolés de Hélio Oiticica e os mantos de Arthur Bispo do Rosário?

Obra de Bispo do Rosário
Gullar -  Não tem nada a ver. Os parangolés surgiram a partir do momento em que Hélio Oiticica passou a freqüentar a escola de samba da Mangueira. É algo muito pobre se você comparar com a roupa de uma porta-bandeira, colorida, barroca, popular. É uma arte que remonta ao século 17. Aí o Hélio botava a roupa em um passista e pedia para o cara rodar e falava que isto ele estabelecia uma relação da forma com o espaço e a luz. É pura teoria. Qualquer objeto rodando mantém uma relação com o espaço e a luz.

J.B. - Mas a incorporação que o Bispo faz dos objetos não evoca a procedimentos da arte moderna?

Gullar -  O Bispo é exatamente o contrário da arte moderna. Em seu delírio, ele quer salvar os objetos do mundo. Ele começou a desfiar o próprio uniforme de interno para bordar um manto sagrado. A sua busca é busca do sagrado. Não tem nada a ver com a sofisticação vazia da arte moderna. Só um louco se entrega totalmente a esta missão de salvar os objetos do mundo. É uma loucura que imprime esta força interior aos objetos do Bispo.
A arte moderna é de decadência, de cerebralismo, de sofisticação exaurida. O que a arte precisa é de paixão e não de cerebralismo. No contexto pretensioso desta arte moderna todos se acham gênios.
O Leonardo da Vinci, quando pediram a ele uma escultura, realizou um estudo reunindo todos os escultores que admirava no passado. Hoje o sujeito enrola três tijolos com arame, manda para a Bienal e diz que é arte. Na Bienal de Veneza, eles aceitaram um açougueiro que tinha cortado uns pedaços de tubarão. Agora não é mais necessário aprendizagem artística. Nas bienais nós temos açougueiros, marceneiros, eletricistas, cineastas. Li que Almodóvar expôs na Bienal de Veneza. Eu queria perguntar a ele se para ser cineasta não é preciso aprender a linguagem do cinema.

J.B. - E, agora, que perspectivas vê para a arte diante do mundo?

Gullar -  Acho que o que a arte tem de fazer é parar de falar sobre ela mesma e começar a falar do mundo. Nós temos 40 mil anos de arte falando do mundo e dos problemas do  homem no mundo. A arte deve voltar a falar da vida.

Arte pré-histórica

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A gente não quer só comida

Nestes dias finais de campanha eleitoral, em que a realidade da eleição da primeira presidenta do Brasil – Dilma Roussef – se torna a cada dia mais presente, a gente aproveita este momento para lançar algumas sementes que podem tornar nosso futuro mais colorido. A gente quer falar aos candidatos progressistas.

Pintura de Hans Holbein (1497-1543)
A gente? A gente é artista, a gente é essa gente que faz arte, que é também agente de transformação: trans-Forma-Ação. A gente pega o mundo, a gente age: a gente pinta, a gente canta, a gente dança, a gente ensaia, a gente treina, a gente declama, a gente escreve, porque “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e Arte”*!

A gente está espalhado pelo Brasil a fora, Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão; Pernambuco, Goiás, Rio, Bahia. A gente mora nos confins do Tocantins, habita as beiras dos pantanais. A gente se espalha pelos pampas, pelas praias, entre as serras, até dentro do mato. A gente é moreno, a gente é misturado, a gente borda e pinta. A gente é torrado de sol, banhado de mar, ou pálido de garoa. A gente habita morros e condomínios, a gente se mistura nas areias cariocas ou nas paulistas avenidas. A gente é nordestino, sulista, nortista, a gente é brasileiro. A gente é artista. A gente faz cultura. A gente quer falar!

- A gente quer o direito de pintar, de desenhar, de esculpir e DE EXPOR em TODAS as galerias e museus do Brasil, com todas as nossas cores, nossos quadros, nossas tintas, nossos estilos!

- A gente quer exposições de arte em TODO o Brasil, festivais, concursos, competições de arte. A gente quer mais museus, a gente quer mais galerias, mais pinacotecas. A gente quer democratizar o direito de fruição das artes para TODOS. A gente não quer continuar sendo expurgado do mercado pelo mercado. A gente quer que o Estado brasileiro incentive TODAS as formas de manifestação artística, todas as estéticas. A gente grita: “fora o pensamento único onde predomina o conceitual e a abstração. Arte é mais!”

- A gente quer financiamento do Estado para que surjam mais ateliês de arte, mais galerias, mais espaços artísticos, mais exposições.

- A gente quer democratizar as mostras de arte vindas do exterior para todos os Estados brasileiros, para que todo o Brasil possa ver as grandes obras dos grandes mestres de fora.

- A gente tem música na alma, a gente quer compor, a gente quer tocar, a gente quer cantar toda a música possível para TODA a multidão de brasileiros, se tivermos milhares de espaços pelo Brasil a fora. A gente quer cantar em grupo, em banda, ou sozinho.

- A gente quer trocar, a gente quer mostrar, a gente quer intercambiar nossas diferentes formas e expressões artísticas, em múltiplos encontros, seminários, conferências, congressos, convescotes, autos, seja o que for que junte gente. E junte a gente.

- A gente quer meios de reprodução para a arte que permita a todos o acesso à arte. A gente quer que todos os brasileiros tenham direito ao direito fundamental de todos de ter acesso a toda forma de arte, de poder se enriquecer espiritualmente com a arte.

- A gente quer suplantar a forma de cultura de massa, imposta pela tv, que homogenisa tudo. A homogeneidade é um crime contra a diversidade cultural da humanidade e do povo brasileiro. A gente não é só um, a gente é multidão, a gente é arco-íris.

- A gente não quer só ouvir no rádio música estrangeira, a gente quer usar todos os espaços para todos os artistas brasileiros, de norte a sul, sem predominâncias regionais. A gente é gente em todo o Brasil.

- A gente quer banda larga para todos, para todos os artistas populares, para todos os pontos de cultura, para todas as tribos cidadãs.

- A gente quer mais aulas de História da Arte, a gente quer mais aula de Arte, a gente quer mais arte nas escolas públicas e privadas. A gente quer escolas de qualidade, a gente quer professores bem pagos, bem formados, empenhados.

- A gente quer mais bibliotecas, amplo acesso aos livros, livros a preços populares, livrarias populares para todo lado, feiras de livro, concursos literários, incentivo à prosa, incentivo à poesia.

- A gente quer teatros, salas de encenação, incentivo aos existentes e à criação de novos grupos de teatro, com formação de atores e diretores. A gente quer balé, a gente quer dançar, a gente quer sambar, a gente quer rir. A gente, que é palhaço, a gente quer circo, a gente quer praça, a gente quer trapézio, a gente quer lona, a gente quer público, e gente pra rir ainda mais.

- A gente quer fazer e ler poesia, quer mostrar nossos versos, nossas rimas, nossos livros. A gente quer publicar nossos livros de prosa e poesia.

- A gente quer fotografar, filmar, fazer roteiro, a gente quer fazer cinema. A gente quer mais espaço para o cinema brasileiro, um cinema criativo, não simples imitação de padrões impostos. A gente quer que funcione o sistema de distribuição dos nossos filmes.

- A gente quer preservar nossa memória cultural: nosso folclore, nossas festas, nossos reizados, nossos blocos, nosso samba, nosso bumba-boi, nossas violas, nossas rezas, nossos cantos, nossas danças, nossos cordéis, nossos terreiros, nossas toadas, nossas emboladas, nossos sanfoneiros, nossos repentes, nossos raps, nossos artesãos, nossos bonecos, nossas caretas, nossas máscaras, nossos carnavais, nossas feijoadas, nossa cachaça, nossos trajes, nossas bombachas, nossas galinhadas, nossos forrós, nossos são joãos, nossos jogos de futebol, nossas gravuras, nossa pinturas, nossas folias, nossas alegorias, nossas alegrias!

Para fazer um país rico, próspero, há que se voltar com todos os olhos para a vida cultural brasileira e permitir a este povo criativo que surja com suas cores, com seu canto, com sua raça, com sua graça. Pois o ser humano sempre quererá ser maior do que é, sempre se voltará contra as próprias limitações, sempre terá o anseio de tudo querer e tudo poder.

Avançamos muito, enquanto Brasil no governo do presidente Lula, mas podemos ir ainda mais longe. Podemos suplantar todas as incertezas quanto ao dia de amanhã que rondou sempre a gente brasileira, criando um novo país em que todo o povo também tenha tempo, disposição e desejo de se por em contato mais íntimo com a Arte, em todas as suas formas de manifestação.

Pois o ser humano “sempre necessitará da arte para se familiarizar com a sua própria vida e com aquela parte do real que a sua imaginação lhe diz ainda não ter sido devassada.” (Ernst Fischer)

A gente quer a vida como a vida quer*!

* trechos da música Comida, composição de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

As Bienais de Arte

No dia 25 de setembro próximo, será aberta ao público a 29ª Bienal de Artes de São Paulo. Um pouco antes, em uma série de três dias consecutivos, haverão sessões abertas à imprensa e a convidados especiais, bem de acordo com o glamour que faz o gosto de certa elite. Não importa muito as obras lá expostas, importa bastante  circular pelas rodinhas que se farão, ser visto, ver as tais celebridades.


Estive no final de julho, começo de agosto, em Berlim, Alemanha. Um dos lugares de visita programados era a Bienal de Artes de Berlim. Fui em quatro dos seis prédios que abrigam a Bienal de lá, concentrados basicamente no bairro Kreuzberg. A Bienal alemã neste ano resolveu homenagear o pintor realista alemão do século XIX Adolf Menzel, cujas obras ocupavam grande parte do espaço da Old National Galery.


Mas também fui ver o que se expunha nos outros cinco lugares que formam a Bienal. No primeiro, um prédio velho, deteriorado, mal cuidado, abrigava uma parte bem grande dos expositores. Estranhei ao chegar ao local. Não tem fila??? Incrivelmente vazio, durante toda a minha visita aos quatro andares encontrei com não mais do que dez pessoas! Completamente diferente dos museus que expõem pinturas e esculturas dos mestres, lotados de gente, com filas permanentes nas entradas, os prédios da Bienal estavam vazios, entregues às moscas. Literalmente. Jovens provavelmente ligados ao mundo da arte contemporânea alemã, faziam as vezes dos seguranças, tomavam conta das salas. Sentados, lendo algum livro para passar o tempo, pareciam se surpreender quando avistavam alguém chegando para ver o que estava exposto.


E o que estava exposto mostrava o que o poeta Afonso Romano de Sant'Anna já falara antes sobre as bienais de arte: uma instituição que está falindo. Muitas fotografias, ao invés de pinturas, o que me fez pensar que alguém deve estar sentindo falta de arte figurativa, já que há tanta fotografia - figurativa! - para se ver! Além de fotografias, vídeos, em salas mal instaladas, mostravam pequenos documentários: entrevistas de europeus com pobres negros africanos, como se sua pobreza fosse algo tão exótico que era necessário saber como se vive se sendo tão pobre; cenas de sexo explícito; duas velhinhas brigando; alguma manifestação em algum canto da Europa, como um momento de espetáculo. 

Era isso a Bienal de Berlim. Ah, sim, esqueci... Havia instalações, claro! As famosas e ultra-repetitivas instalações conceituais que nada mais apresentam de novidade, e nem de longe arranham a criatividade inicial de um artista como o russo Vladimir Tatlin, do começo do século XX. Instalações repetitivas, como disse, e um tanto quanto melancólicas. Mas talvez a melancolia fosse minha... realmente Arte, como eu compreendo, não havia naquela Bienal de Artes de Berlim. Que, diga-se enfaticamente, não se interessa (parece) pelo estado glamouroso que tanto excita a elite que vai à Bienal de São Paulo. Em Berlim, pelo menos, a Bienal não tem glamour. Nenhum!


Aqui? Veremos! Muito provavelmente não será muito diferente do que vi pela cidade alemã. A diferença da Bienal de São Paulo é mesmo que ela se torna um encontro de beldades artísticas ou não, repleta de holofotes sobre os curadores, que não se cansam de se apresentar à mídia. Uma Bienal Política? Veremos!

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Kathe Kollwitz, uma artista em Berlim


Kathe Kollwitz, desenhista e gravadora alemã, é uma das mulheres mais importantes da historia alemã do final do século XIX até meados do século XX. A envergadura do seu trabalho faz com que ela seja conhecida e respeitada também fora do seu país, não somente por sua qualidade técnica, com traços de realismo e expressionismo, mas também como artista com preocupação humanitária, retratando os operários desempregados, a fome, a guerra e a pobreza, males do capitalismo.

Conhecendo um pouco de sua história. Kathe nasceu na pequena cidade de Konigsberg, na época pertencente à antiga Prússia, entre Stutgart e Leipzig, em 8 de julho de 1867. Antes dos 20 anos de idade, ela foi estudar desenho em Berlim e Munique. Casa-se, logo em seguida, com o médico Karl Kollwitz, com quem vai morar em Berlim, no bairro Prenzlauer. Em 1892 e 96 nascem, respectivamente, seus dois filhos, Jean e Pierre, o segundo morto no começo da I Guerra Mundial.
Em plena atividade como artista, ela expõe pela primeira vez em 1898 na "Grande Exposição Berlinense de Arte Contemporânea". Em seguida, começa a dar aulas de desenho na Escola de Arte Feminina de Berlim. De 1902 a 1908, Kathe Kollwitz trabalha em uma série de gravuras em água-forte, com o tema "A guerra dos camponeses". Em 1904, ela e seu marido vão morar em Paris por três anos, onde ela aprende as bases das artes plásticas na Academia Julian, além de frequentar o atelier do escultor Auguste Rodin. Após a temporada em Paris, o casal passa o próximo ano em Florença, na Itália, fazendo com que ela também tomasse contato com a arte italiana.
Em 1914, seu filho Pierre é morto na guerra que começava. A morte do filho refletiu-se em seu trabalho, tornando-o ainda mais dramático, fazendo com que a artista expusesse ainda mais suas próprias feridas e as de todos os que sofrem com a guerra, em seus desenhos. A morte, a perda maior, é um dos temas recorrentes em seu trabalho. Ela viveu o trágico período entre o começo do século XX e a II Guerra mundial, onde a morte rondava a todos, especialmente os alemães. Em 1919, Kathe Kollwitz foi nomeada professora da Academia de Belas Artes de Berlim, mas não chegou a dar aulas. Por ser mulher, simplesmente, uma vez que o governo daquela época não aceitava mulheres ocupando cargos públicos.
De 1920 a 1925 ela produz a serie de gravuras com os temas "Guerra" e "Proletariado", além de produzir numerosos cartazes de propaganda da luta dos trabalhadores e do povo pela paz. Em 1927, viaja a Moscou, onde recebe uma atenção especial do governo soviético e dos artistas plásticos russos.
De volta a Berlim, em 1928, ela dirige um atelier de artes gráficas na Academia de Belas Artes. Em 1933, é obrigada a deixar a Academia, por suas posições políticas ao lado dos operários alemães. Em 1936, sai uma interdição oficial, por parte do governo do partido nazista, para ela expor. Durante o período da segunda guerra mundial, entre 1943-44, ela se refugia, já viúva, no povoado de Moritzburg, próximo a Dresden e morre no dia 22 de abril de 1945, com 77 anos de idade.
Estive, semana passada, no Museu Kathe Kollwitz, aqui em Berlim. Funciona numa antiga casa de quatro andares, todos repletos de seu trabalho: desenhos, gravuras, esculturas. Foi uma das experiências de visitas a museus mais marcantes da minha vida. Conheço o trabalho de Kathe Kollwitz desde 1979 quando, ilustradora do movimento estudantil no Maranhão, me deparei com uma gravura dessa artista, da qual jamais esqueci, porque refiz o desenho dela em estêncil para o jornalzinho do DCE-UFMA, impresso em miméografo. Agora o original estava ali, na minha frente!
É uma experiência de contemplação profunda, observar seus traços, seu desenho, seus temas, sua sensibilidade ao ser humano que sofre. Ela era a artista dos mais pobres, dos famintos, dos renegados socialmente. No período do século XX que vai até a II guerra mundial, a Alemanha, onde vivia Kathe Kollwitz, era um país sombrio, o que se refletiu profundamente em seu trabalho. Na década de 1920, apos a I Guerra, os alemães estavam desempregados, famintos, doentes, e com medo. O filme do diretor Ingman Bergman, "O Ovo da Serpente", dá um quadro bem real do que era viver em Berlim naquela época. Vale a pena assisti-lo para compreender melhor como aqueles tempos angustiantes.
Mas uma característica especial salta aos olhos ao observar o trabalho de Kathe Kollwitz: grande parte de suas gravuras usa a imagem da mulher, especialmente da mãe. A mãe, como detentora potencial da vida, aquela que supre e nutre, a que cura e protege. Em várias de suas gravuras há uma mãe, ou grupos de mães unidas, protegendo os corpos de seus filhos com seus próprios corpos. E toda sua energia. Parecia que a artista queria mostrar, através da imagem simbólica da mãe, que a sociedade deveria ser a mãe que agrega, ao invés de dividir; que envolve, ao invés de desprezar; que protege, ao invés de abandonar. Essa sociedade, basta uma olhada rápida para qualquer rua hoje, não é dentro do sistema capitalista.
Talvez por ter perdido seu próprio filho na guerra, haja tantas mães em seus desenhos, defendendo seus filhos da morte. E talvez por ser uma mulher vivendo em uma época dura, ela tantas vezes sentiu necessidade de se auto-retratar, como se tentasse encontrar nos traços do seu rosto algum delineamento coerente. Ou pode ser que tentasse se rever como mulher, diante do próprio espelho, com rosto atualizado, vendo o processo do envelhecimento deixar marcas em sua face.
Mas... por trás dessa aparente tristeza presente em sua obra que escancara as zonas sombrias da vida, existe uma força nos traços, uma força pulsante e latente, a força da vida, da mulher que não se rende, da mãe que não se acomoda, da artista inquieta. Seu trabalho mostra, acima de tudo, a energia da vida, a fortaleza, a determinação e a consciência que inspiram aqueles que se engajam na luta por um mundo mais humano. Tudo isso mostrado dentro de um trabalho que apresenta gravuras, esculturas e desenhos que falam por si só, de tão imensa e tecnicamente belos!

Impressões culturais de Berlim

Alexanderplatz, Berlim
Berlim, capital da Alemanha, é uma das cidades mais importantes do velho continente europeu. Sua cultura e os altos e baixos de sua história deixaram marcas profundas, não só no povo alemão mas em todo o mundo.

É a segunda vez que venho a esta cidade, localizada ao norte da Alemanha, muito perto da fronteira com a Polônia. Da primeira vez em que vim aqui, era inverno, a cidade estava coberta de neve, as pessoas trancadas dentro de casa. Desta vez, em pleno e quente verão, as pessoas estão nas ruas, nos cafés, nos bares, andando de bicicleta para cima e para baixo. Impressiona perceber, nesta cidade, como é possível viver numa metrópole sem carros. Não há congestionamentos por aqui, quase não há carros nas ruas, se comparo com uma cidade como São Paulo. Berlim é completamente plana e bem sinalizada para o trânsito de pedestres, automóveis e bicicletas. Aqui todos andam de bicicleta, desde senhoras e senhores de idade, até executivos de terno, moças e rapazes, pessoas de todas as idades.

Andando pelas ruas, deparo com a História a cada esquina. Até 1989 a cidade estava dividida pelo famoso Muro de Berlim, que separava a Berlim socialista, da capitalista. Esse muro acabou virando um ícone daqueles que pregaram o fim do socialismo. Mas o socialismo aqui ainda é muito presente, não somente pelos prédios da parte leste da cidade, mas também por murais, esculturas, monumentos e museus. Há algo na alma desta cidade que não execra a experiência socialista, por mais execrável que pareça ter sido por aqui (não esqueçamos que a mídia é a porta-voz principal daqueles que têm muito interesse em condenar as experiências socialistas pelo mundo). Um dos monumentos importantes do jardim vizinho ao Reischtag – o histórico edifício que abrigou governos alemães, inclusive o de Hitler – é o Monumento ao Soldado Soviético, construído em semicírculo, no centro do qual ergue-se uma coluna que sustenta a escultura de um soldado do exército vermelho. Abaixo dele, um brasão bem grande, com a foice e o martelo modelados em ouro. Notei que alguém havia passado por ali e deixado duas coroas de flores naturais, ainda frescas. Duas faixas envolviam as coroas, escritas em língua russa. Esse monumento é uma homenagem aos dois milhões de soldados soviéticos mortos na II Guerra Mundial.

Ao lado do Reischtag, o famoso Portão de Bradenburgo, construído em 1788. O Bradenbourg Tor foi símbolo da paz e depois do nacionalismo alemão. Com a edificação do Muro, ficou do lado oriental, assim como a famosa praça Alexanderplatz e sua torre de TV, que já foi símbolo da Berlim oriental.
Esta cidade possui mais de 150 museus! Além de dezenas de galerias e ateliers de arte. Na famosa Gemaldegalerie estão expostas obras de Caravaggio, Velasquez, Rembrandt, Rubens, Ticiano, Georges de La Tour, Zurbarán e inúmeros outros pintores italianos, flamengos, espanhois e alemães. Na Alte Nationalgalerie, obras de Gustave Courbet, Degas, Manet, Monet, Rodin, além de salas dedicadas aos realistas alemães, que são muitos, entre os quais Adolph Menzel e Max Lieberman. Sem esquecer também o Museu de Kathe Kollwitz, autora de inúmeras gravuras, assim como de esculturas. Kathe Kollwitz era comunista e dedicou seus desenhos ao esforço pessoal e coletivo de denunciar as barbáries cometidas pelo capitalismo. O povo alemão tem orgulho dela, como pode ser comprovado pela preocupação em guardar por aqui a sua memória.

Também temos a praça Rosa Luxemburgo, assim como a avenida Karl Marx e o Museu Bertolt Brecht. Rosa Luxemburgo foi um dos membros mais importantes do Partido Comunista Alemão na década de 1920, assim como Bertolt Brecht foi um escritor comunista que se dedicou a criar peças de teatro, que ainda hoje influenciam diretores e escolas de teatro pelo mundo.

Por aqui também estão acontecendo, neste momento, eventos culturais muito importantes. Na área da música, está em andamento o Festival Internacional de Música de Berlim, cujos locais de apresentação se espalham entre teatros e igrejas. Todas as noites, às 20h, a catedral metropolitana de Berlim apresenta uma parte dessa programação musical, sob o luxo exagerado de sua nave central, que abriga os caixões mortuários de um antigo rei, Frederico I, e de Sofia Charlotte, a rainha. Essa catedral protestante, chamada por aqui de Berliner Dom, foi reconstruída em 1905, em estilo neobarroco e fica localizada ao lado de diversos museus de arte.

Também está acontecendo a Bienal de Artes de Berlim que, por sua importância, tem sido referência para artistas de várias partes do mundo. Além de apresentar obras de arte contemporânea, a Berlin Bienale está homenageando o importante pintor realista alemão do século XIX, Adolf Menzel.

Paralelamente, duas outras exposições estão atraindo muita gente para os museus. Uma retrospectiva da obra da pintora mexicana Frida Khalo, que foi membro do Partido Comunista Mexicano e casada com o famoso pintor Diego Rivera. Os cartazes anunciando a exposição dela estão por toda a cidade, em pontos de ônibus e dentro das estações do metrô. A outra mostra de peso também é uma exposição de esculturas de origem Greco-romanas, que já passou por museu de Nova Iorque. Claro que não são todas originais, mas o detalhe é que essas cópias das esculturas milenares do povo greco-latino foram colorizadas a partir de estudos de arqueólogos e historiadores da arte que afirmam, baseados em provas, que as esculturas de antigamente, mesmo as de mármore, eram coloridas, e não brancas, como as conhecemos.

Andando pelas ruas, de metrô, de trem e de bonde, vemos como esta cidade atrai imigrantes de outras partes do mundo. Por aqui vemos muitos árabes, muçulmanas de burca, africanos, turcos, latino-americanos, japoneses, etc. Uma cidade do mundo, como é São Paulo, centro de atração de imigrantes. E por aqui também há pobres e mendigos. Eles entram no metrô, ou no trem, pedindo esmolas ou vendendo bugigangas, em alemão. Não encontrei com nenhum mendigo ou vendedor que falasse outra língua. Também entram músicos com os mais variados instrumentos, que tocam uma música entre uma estação e outra em troca de uma moeda, de quem quiser dar. Nas ruas também encontramos moradores de rua, loiros, famintos e sujos. A escória da sociedade capitalista, dormindo embaixo dos letreiros da lojas chiques da avenida Kurfunstendam. Também há por aqui os punks, e os esquisitões super tatuados, com cara de bad boy. E pichações pela cidade, como em qualquer metrópole.

Entre os prédios modernos de Postdamer Platz e os antigos edifícios do Mitte, a vida segue em frente por aqui. Neste bairro, o Mitte, centenas de artistas plásticos de várias partes da Europa, criam uma concentração de ateliers de arte. Os artistas vêm para cá atraídos pelos baixos preços dos imóveis da velha Alemanha Oriental, criando aqui, quem sabe, um novo berço para uma nova arte. Com espaço para todos, para todos os estilos, técnicas e tendências.