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terça-feira, 11 de setembro de 2012

Neoliberalismo, anti-cultura e arte contemporânea: Uma lógica de predação


Cena na Bolsa de Valores de Nova York: o deus-Mercado em ação
O artista francês François Derivery (nascido em 1937), que atualmente faz parte do conselho editorial da revista “Ecritique” de Paris, publicou no site do grupo DDR, do qual faz parte junto com dois outros artistas (Michel Dupré e Raymond Perrot), um artigo sobre a relação entre o Neoliberalismo e a chamada Arte Contemporânea. Por considerar um assunto muito atual e esclarecedor a respeito do estado das artes plásticas no mundo de hoje, resolvi traduzir trechos e publicá-los aqui, como um resumo deste artigo cujo título é o mesmo deste post.

Livro de Francis Stoner Saunders
que conta as ações da CIA para
criar uma "arte moderna" que fosse
controlada
Derivery afirma que depois de 1945, o desenvolvimento do neoliberalismo, nascido da internacionalização do capitalismo norte-americano impulsionado pela guerra, submete, voluntária ou involuntariamente, um número crescente das atividades humanas às leis do mercado, afetando profundamente as relações sociais e os valores que as regem. Sabemos que o auge do neoliberalismo se deu ao final da década de 1970 com a ascensão de Ronald Reagan à presidência dos EUA e com o governo da primeira ministra Margareth Thatcher, na Inglaterra. Mas Derivery aponta a situação mundial pós-segunda guerra como as raízes do neoliberalismo.

Na medida em que os laços sociais vão sendo definidos pelo mercado - mercado financeiro - os valores que ele perpetua estão bem distantes dos valores históricos, que passam a ser considerados obsoletos, além de tornarem-se mesmo um obstáculo para o “livre” desenvolvimento em direção a uma sociedade de mercado.

A partir daí, diz Derivery, uma nova "modernidade" começa a esvaziar o conteúdo cultural baseado no sentido do Coletivo, intervindo em todas as áreas da atividade humana, da democracia política ao direito, da cultura à educação. E, obviamente, da Arte. O desafio, naquele momento era reformatar tudo nos termos do mercado, tornar todos os meios em instrumentos do neoliberalismo e transformar o cidadão em produtor-consumidor, passivo e submisso.

A “cultura de massa” não é mais somente àquilo que a esquerda chama de “mercantilização” da cultura, mas ela é considerada como uma atividade econômica e industrial como qualquer outra. Isso designa uma produção original fundada sobre um projeto ideológico novo. A cultura de massa é constituída, em suas formas e em seus conteúdos, na ruptura e não mais na continuidade no sentido de patrimônio cultural herdado ao longo da história.

Essa nova “cultura da sociedade de mercado”, como diz o autor – ou essa “cultura de massas” – carrega um duplo papel: enquanto abranda e “adoça” as massas com entretenimento, usa isso como álibi para a dominação econômica e política. O “sucesso” dessa empreitada é colocado na conta do neoliberalismo. Mas, paradoxalmente, os estragos da globalização capitalista deixam marcas pelo mundo, e esse sistema precisa criar necessidades de compensação simbólica que são constantemente renovadas. A indústria cultural ganha em todo o processo, na medida em que aumenta a pressão do sistema sobre os indivíduos.

Na sequência, continua o artigo de François Derivery, surge a noção de pós-modernidade, que reflete essa ruptura econômica, cultural e ideológica que constituiu o advento do neoliberalismo e de um novo modelo de sociedade. O neoliberalismo se impôs mais rapidamente na esfera econômica do que na esfera cultural. Demorou algumas décadas para que fosse traduzido, em termos culturais, a opção neoliberal, e mesmo assim atingindo desigualmente os diversos setores da sociedade.

A arte dita “contemporânea” – continua Derivery - se situa na vanguarda dessa evolução neoliberal, num campo propício às radicalizações tanto em razão do caráter hermético dessa nova arte, quanto pela demanda econômica distinta à qual ela deve responder.

Uma arte de mercado

Frisson de clientes na casa de leilões Sotheby's londrina
que leiloava um dos animais embebidos em formol de Damien Hirst
Na mesma direção que a autora do livro “Quem pagou a conta?”, Frances Stonor Saunders, Derivery diz em seu texto que no fim da segunda guerra mundial a CIA introduziu na Europa, com o plano Marshall, uma arte norte-americana armada de uma “feroz vontade de conquista”. E ele observa: “A hegemonia econômica não é possível sem dominação cultural”. Os Estados Unidos já vinham fazendo uma verdadeira faxina em sua própria casa, colocando um fim às experiências de arte “engajada”. A nova política cultural norte-americana pretendia impor uma arte “neutra”, porém cúmplice e autora de seu projeto imperialista. E acrescenta Derivery: “A arte contemporânea de mercado se desenvolveu a partir desse primeiro modelo de arte trans-nacional. O mercado de arte se estrutura a nível mundial enquanto se coloca como referência estética.”

Mais à frente ele aponta que a dupla função dessa “arte sem fronteiras” era ter um papel econômico como possibilidade de investimentos e um outro papel, o ideológico, porque “ela foi um instrumento importante e fundamental para divulgar os valores do neoliberalismo”.

A poderosa Sotheby's
O fato de associar-se arte contemporânea e cultura de massas pode parecer paradoxal, observa o artista francês, se levarmos em conta o elitismo e a arrogância presentes nessa arte. Mas o elitismo de hoje não é o de ontem, que estava ligado mais ao saber ou a habilidades pessoais: o elitismo de hoje é um elitismo de posição social, um elitismo de conta no banco. É o elitismo do “reality show”, de suas celebridades e de certa mídia dita “popular”, que nada tem de popular, apesar de visar o povo. É um produto de mercado, acrescenta.
           
Para a sobrevivência do neoliberalismo ele precisa estar no controle sobre o sentido simbólico de tudo, e a censura aos dissidentes é necessária. Censurar a história em nome da “modernidade”, permite esvaziar as estratégias potencialmente desestabilizantes. Essa nova ideologia procura introduzir a ideia de que a arte contemporânea é sinal de “modernidade”, inclusive pelo fato de não ter um passado (assim como não tem conteúdo). Em nome dessa nova ideologia, práticas artísticas significantes e relevantes da humanidade são denunciadas, ainda hoje, como “ideológicas” – e eles acrescentariam: “desonestas”, “não artísticas” e “sem ética”. Mas qualquer crítica que se faça à “doxa” (do grego, senso comum)  oficial é apresentada, no mínimo, como manifestação de ódio à arte.

François Derivery diz com todas as letras em seu texto: “O neoliberalismo é a origem e a razão de ser da arte contemporânea”!

Objeto de "arte":  de Piero Manzoni,
que "cagou" em 90 dessas e vendeu
a peso de ouro
E segue explicando a sua tese, enquanto faz um levantamento sobre o funcionamento do sistema envolvido em torno da chamada arte contemporânea: até pode se admitir a crítica ao conceito ou ao modelo teórico, mas isso “não inclui questionar as obras daqueles que, segundo o pragmatismo do mercado, produzem "arte contemporânea’".

Mas, contrariamente à opinião dominante – diz ele – o pensamento crítico e o trabalho em outro sentido não são atividades ideológicas. Só que pensamento crítico e fazer arte de outro jeito tomam um sentido político se questionam o sistema oficial, a forma imposta e alienante “da relação com o Real e com o Outro”.

Derivery diz que o endeusamento da forma, do objeto, no mundo contemporâneo nasce do medo à busca do sentido, do significado das coisas. E esse medo tem conduzido os artistas ao abandono da prática artística enquanto forma de produzir arte. Prática artística significa trabalhar em conjunto conteúdo e forma, ao longo do tempo. É um processo - precisamente o processo da arte. Dentro disso, ela não pode produzir “objetos”, mas “obras”, afirma o artista, que acrescenta que a pós-modernidade artística rejeita a obra porque ela se refere a uma prática e porque carrega uma história. Porque a pós-modernidade valoriza e sacraliza o objeto “acabado”, sem processo, nascido na “fulgurância de um “gesto criador’”. É o advento do “Conceito” no sentido publicitário do termo e do produto artístico formatado dentro das normas dessa anti-cultura.

"obra" de Tracey Emin: uma cama desarrumada
A arte moderna da primeira metade do século XX privilegiou a prática, diz Derivery. Nós sabemos que a história da arte é a história do exercício humano em busca da perfeição artística. Todos os grandes mestres se debruçaram sobre seu trabalho, e não se tornaram mestres da noite para o dia. Mas, voltando ao artigo, ele continua dizendo que os artistas do começo do século XX, na esteira da contestação contra a arte oficial que já vinha desde o  século XIX, escolheram abrir-se à sociedade como um todo e correr os riscos de novos significados. “Sua vontade de sair do gueto de uma arte convencional, seu assim chamado “engajamento”, é a explicação para sua excepcional criatividade”, atesta Derivery. Mas aquela abordagem e prática de arte eram irreconciliáveis com o projeto de uma arte de mercado, ideologicamente conformada a ela.

Assim o neoliberalismo artístico esvaziou a arte moderna de seu princípio criador, de seu próprio projeto, lhe reduzindo à pretendida “aventura das formas”.

Qualquer coisa é arte quando alguém assim
o determina, dizem eles
Dentro da ideia de um fim da história, todos os objetos se equivalem. Portanto, apesar da ruptura ideológica do pós-guerra, a pós-modernidade artística, cujo projeto se estrutura a partir dos anos 1960, vai se nutrir da arte moderna e de suas invenções formais. A nova “arte” não tem e nem pode ter uma identidade artística própria. Não há invenção de forma e experimentação, não se inventa nada sem referência na realidade. Mas a arte contemporânea diz recusar o real.

Derivery continua, afirmando que “a arte é sempre alimentada pela realidade”. Mas ela legitima essa abordagem quando se abre ao Outro, porque a “arte intermedeia a realidade”. Através da vontade de observação e de percepção do artista, ele produz uma representação que o Outro é chamado a ampliar. Mas a predação começa quando a compreensão do real se reduz a uma simples “apropriação”. A arte contemporânea está aí com seus milhões de exemplos de apropriação indébita. Basta ir até a Bienal do Ibirapuera...

Não é um brinquedo de criança.
Isso é "arte" de Jeff Koons
Mas, continua o artigo de François Derivery: o resultado desse gesto de apropriação é um objeto, fragmento de realidade, que, transportado a lugar apropriado fornecido pelo mercado ou instituição, se transforma num “objeto artístico”. Certamente isso que é “artístico” é menos o objeto do que o “gesto”, a operação de apropriação. Mas essa intermediação da realidade pela arte acontece naquilo que nós chamamos de “prática”, coisa que é recusada pela arte contemporânea. “A apropriação é, na verdade, o grau zero da intermediação e o “gesto” de apropriação é o grau zero da prática”, conclui o artista.

O ready made

O objeto da arte contemporânea é então o produto e ao mesmo tempo a testemunha material de um gesto fundador imaterial, onde o valor artístico, na ausência de projeto significante, é fixado pelo mercado. Esse gesto “criador”, na arte contemporânea, é atribuído ao “gesto inaugural” de Marcel Duchamp. Mas o propósito dele - ao contrário dos produtores contemporâneos - foi o de denunciar a legitimação exagerada das instituições em decidir o que podia ser exposto como arte.

Ready made de Duchamp
Falar em “gesto” em relação aos primeiros ready made é justo porque Duchamp não procurava fabricar “objetos artísticos”. Mas seu gesto, ao contrário do gesto do produtor contemporâneo, foi um gesto crítico, portanto plenamente artístico, explica Derivery. Na minha opinião, Duchamp acabou entrando na onda e se enquadrou no sistema que inicialmente criticou. Mas concordo quando Derivery afirma que a “imagem de “Duchamp” hoje é produto da arte contemporânea, não o inverso”. Porque não poderia ser de outro jeito num sistema cujo impulso permanente é o da apropriação, inclusive de símbolos ligados à esquerda, como a imagem do Che Guevara, só para ficar num único exemplo.

O sentido inicial do gesto de Duchamp foi esvaziado, mas restou o objeto, o penico, com valor adicionado. Sua função passou a ser a de modelo de um modo de produção de objetos que têm a particularidade de ser ao mesmo tempo objetos de arte e objetos de mercado.

Arte é vida, efeito do real

Mao Tse Tung, líder chinês "apropriado"
pelo artista pop Andy Warhol
O mercado de arte contemporânea não oferece, portanto, uma intermediação do real, ele se apropria, da mesma forma que o capitalismo. Enquanto promove a morte do simbólico justifica a predação que justifica a morte do simbólico. Portanto não é a realidade a referência para a arte, mas a arte, a ilusão (disfarçada) que faz a realidade. A Realidade é a última das preocupações da arte contemporânea.

A ideologia do ready made permite que se aproprie do real sob a forma de “arte”, esvaziando totalmente o momento intermediador e afastando o risco da significância. Isso sem falar, lembra Derivery, que o artista foi expatriado de sua responsabilidade no processo social e absorvido por uma ideologia que é também estética. A intervenção do artista atual consiste em encenar um papel, que é ainda mais benéfico e proveitoso para essa arte-espetáculo. Mesmo que a encenação crie um ato de violência, o que aumenta o espetáculo.

A "celebridade" Damien Hirst com uma de suas "obras"
e uma multidão dos buscadores de ícones neoliberais
contemporâneos
Deve se dizer, acrescenta Derivery, que a pesquisa sobre os efeitos do real não tem nada a ver com o "realismo", que é um pensamento sobre a realidade. Mas a recusa ao real é uma forma de confessar que a "realidade" reproduzida num objeto não passa de uma convenção. E ele diz que o Hiperrealismo, que está em certo sentido na moda em alguns lugares, especialmente nos EUA, é a expressão artística privilegiada do atual consenso ideológico, porque a "constatação" do real se encontra instalada na lógica consensual de recusar (de pensar) a realidade. Suas poses “subversivas”, independentemente do seu impacto dramático ou violento, endossam a ordem vigente. Para se abster de toda interpretação do real, o pintor hiperrealista prefere não reproduzir o que ele mesmo vê da “realidade” mas a “versão já interpretada de uma fotografia”.

O problema da arte - e não existe outro, segundo ele afirma - é o da sua relação com o real. Mas na arte contemporânea essa relação não existe, é simulada e ao mesmo tempo recusada e negada.

O ideal é o do Mercado Financeiro
François Derivery, mais à frente, coloca que não estando engajada em uma vontade de transformação da realidade, a produção formalista não pode se renovar a não ser pela replicação sem fim. Ao mesmo tempo continua a cumprir seu papel exsudatório enquanto satisfaz a demanda do mercado por produtos de valor monetário cada vez maior.

A lógica capitalista é implacável, afirma Derivery. Ela prega a expropriação cultural e política na arte para conformá-la ao ideal do mercado. E mais à frente, ele lembra que a história tentou construir valores coletivos, de sociedade. A arte moderna foi uma tentativa de abrir a arte para o sentido do coletivo, contra a lógica que exigia neutralidade e submissão ao poder político. Mas o individualismo da arte contemporânea nega também esse aspecto e não se pode dizer que ela deriva da arte moderna. A arte contemporânea, para o artista francês, deriva do neoliberalismo.

No final do texto, ele propõe uma “resposta a essa “arte” que tem se atribuído exclusividade sobre a contemporaneidade”, dizendo que essa resposta não se encontra na reativação de um subjetivismo nostálgico obsoleto e nem numa nova problemática formalista. As questões que se colocam como prioridade não são questões de estética, mas questões cidadãs, do ser humano enquanto ser social. Vamos ter que desconstruir – acrescenta Derivery - as noções de arte e de artista e reexaminar sua pertinência a partir das realidades sociais e coletivas.

Vamos ter que reabilitar o pensamento crítico, retornar à prática e à busca do sentido da arte.

Cena do filme de animação "American Pop" do diretor Ralph Bakshi, de 1981.
A mensagem é nós fazemos parte da História, não estamos sós. Somos coletividade. 

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Mandamentos e mistérios gozosos

Por que ninguém teve (ainda) a ideia de expor gavetas com restos mortais em pó de um Crematório?
(Foto do Crematório do cemitério Père Lachaise de Paris, outubro de 2011)
A revista Bravo do mês de outubro, publicou uma reportagem de capa cujo tema é a exposição que acontece na Fundação Bienal de São Paulo, "Em Nome dos Artistas – Arte Contemporânea Norte-Americana na Coleção Astrup Fearnley". Essa mostra reune 219 peças da coleção do Museu de Arte Moderna de Oslo, capital da Noruega. E traz "obras" de Damien Hirst, Jeff Koons e Cindy Sherman, entre outros.


A revista organizou sua apresentação, elencando 7 mandamentos "daquilo que se convencionou chamar de “arte contemporânea”". Continua o texto: "É interessante notar que uma exposição reunindo Van Gogh, Renoir e Degas em todo o seu esplendor e glória não seria possível. Simplesmente porque tais artistas não experimentaram, em vida, esplendor e glória comparáveis aos de Damien Hirst e Jeff Koons, para ficar nos dois mais ricos da constelação (...). Ricos no sentido monetário mesmo. Hirst é, sem sombra de dúvida, o ser humano que mais ganhou dinheiro com criação artística na história ocidental." (!)


"A arte contemporânea não é uma linguagem acessível às massas. Ela se escora em uma série de teorias e procedimentos tão complexos quanto o teatro experimental, o cinema alternativo e a música contemporânea. Só que, diferentemente do teatro experimental, do cinema alternativo ou da música contemporânea – que sobrevivem em ambientes restritos ou financiados por universidades –, ela gerou um circuito milionário. Entender essa relação estreita e amigável entre arte e mercado é essencial para compreender a produção atual. Daí a razão do primeiro mandamento." 


"Escultura" de Jeff Koons,
mas você pode achar algo
assim numa lojinha de
souvenirs...
1 - AMARÁS O MERCADO SOBRE TODAS AS COISAS - o norte-americano Jeff Koons, entre 1991 e 1992, foi casado com a atriz de filme pornô italiana Cicciolina, e fez uma série de pinturas, com cenas do casal tendo relações sexuais. Depois, resolveu ir para o mundo da escultura, quando sua peça ("isso" aí ao lado) foi vendida por 23,5 milhões de dólares na casa de leilões Sotheby’s de Nova York, tornando-o o artista mais valorizado do mundo. Em julho de 2008, outra obra dele foi vendida na casa de leilão Christie’s de Londres por 25,7 milhões de dólares.


Na arte contemporânea, o mercado é uma poderosa fonte de validação artística de um trabalho. Calcula-se que no Brasil o montante de dinheiro que circula no mundo da arte seja da ordem de 300 milhões de reais por ano." Mas no mundo, segundo "levantamento da Tefaf (The European Fine Art Foundation), só em 2008, o total de vendas no mercado internacional atingiu 68,5 bilhões de dólares, sendo que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha são responsáveis por dois terços desse montante."


O inglês Damien Hirst, em 2008, por exemplo, colocou à venda na Sotheby’s, em Londres, 223 trabalhos recém-saídos do ateliê. Vendeu 97% (!) para, em sua maioria, investidores particulares, um total de 198 milhões de dólares. Dois anos mais tarde, o valor das peças vendidas despencou para 10% do total. "É óbvio que Damien Hirst criou uma bolha com a própria produção, usando um procedimento clássico do mercado de ações: vender o máximo possível na alta – e provocar uma baixa logo depois por causa da inundação do mercado com um mesmo tipo de produto. É como se Hirst dissesse que, num ambiente cada vez mais dominado pelo mercado, entender seu funcionamento é essencial para um artista. É como se sua bolha fosse, por si só, uma performance."


Serre um boi no meio e isso é arte,
como fez Damien Hirst, um dos
alunos da escola de Duchamp
2 - NÃO PRECISARÁS DOMINAR A TÉCNICA - Depois que o francês Marcel Duchamp (1887-1968) expôs um urinol como obra de arte, em 1917 (A Fonte), a concepção de que um artista precisa saber pintar, esculpir ou fotografar ficou definitivamente para trás." Muitos das "obras" desses artistas-para-o-mercado aí nem foram produzidas por eles. Mas o que importa é a "ideia". "Desde Duchamp, o que faz de alguém um artista são suas ideias, e não suas habilidades manuais", diz a revista Bravo.


E dá um exemplo local, como do artista paulistano Nelson Leirner, que foi tema de um documentário deste ano (Assim É Se Lhe Parece). Ele nunca pintou um quadro na vida. O que faz é se apropriar de objetos existentes e dar-lhes novo significado".


3 - APRENDERÁS A FALAR SOBRE SEU TRABALHO - "num mundo em que a ideia é tão ou mais importante do que a execução, dominar a palavra é tudo. Tanto que os artistas aprendem isso desde a faculdade. No departamento de artes plásticas da Universidade de São Paulo, os alunos passam pelas aulas ministradas por Ana Maria Tavares e Mario Ramiro, em que são incentivados justamente a falar sobre o próprio trabalho." (grifo meu)


4 - PERTENCERÁS A UMA GALERIA - Absolutamente necessário. Como quase todos os artistas de renome hoje passaram por uma faculdade de Belas Artes (o que evidencia que vivemos o tempo da Nova Academia - ou seja, isso daí é arte acadêmica), "imediatamente passam a integrar o elenco de alguma galeria. Muitos deles assinam contratos com endereços comerciais antes mesmo da formatura". Continua o texto: "A carreira de artista tem atualmente etapas tão bem definidas, e encontra-se tão escorada por marchands, colecionadores, leilões e exposições, que até perdeu um pouco do caráter aventureiro e um tanto arriscado que sempre a acompanhou".


"O diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Tadeu Chiarelli, vê no entanto essa presença forte das galerias no circuito como algo incômodo: “Pertencer a uma galeria virou sinônimo de ser bem-sucedido”. Porém o número de endereços que abrem a cada ano e o volume de dinheiro que negociam é tanto que foi criada em 2007 no Brasil a Abact (Associação Brasileira de Arte Contemporânea), uma iniciativa das próprias galerias para mapear esse setor. A presidente da instituição é Alessandra d’Aloia, também sócia-diretora da prestigiada galeria Fortes Vilaça, em São Paulo."


5 - PARTICIPARÁS DE FEIRAS DE ARTE - São umas 30 feiras internacionais de arte contemporânea no mundo, mais de duas por mês. Negócios muito rentáveis rolam por lá.


6 - CONHECERÁS CURADORES - ah.... os curadores! Não é possível viver sem eles! Enquanto o tradicional papel da crítica teve seu papel diminuído, "os curadores são os novos críticos". Continua Bravo: "São eles que selecionam artistas e suas obras para exposições que pretendem oferecer um panorama da produção atual e, dessa forma, atribuem leituras para esses conjuntos. Os curadores apresentam temas, sugerem relações entre criadores e apontam também revelações da área. Inclusive para galeristas e colecionadores. “Hoje até as feiras de arte têm curadores. O que antes era Igreja e Estado agora se mistura. Bienais e feiras têm muitas vezes conceitos tão próximos que ficam muito parecidas”, diz um deles, Cauê Alves.


7 - VIVERÁS COMO UMA CELEBRIDADE - Como já dizia o pop Andy Wahrol,cada um deve buscar seus 15 minutos de fama. Os "artistas deixaram de ser figuras por trás de suas obras e estão cada vez mais à frente delas. O público quer saber como se vestem, com quem circulam, o que bebem, como bebem".

Então junte-se uma boa faculdade que ensine a nova forma de fazer arte, renda-se às regras do mercado, tenha-se uma boa ideia ("boa" no sentido disso daí), circule-se por esses circuitos sociais onde impera a futilidade (e muita grana!), dê-se um jeito de ser celebridade (mesmo que por 5 minutos), e pronto! Seu reino individual está garantido!


Cemitério Père Lahaise, Paris, outubro de 2011

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Meia noite em Paris


Neste domingo tive um encontro inusitado, mas bastante satisfatório. Estava passeando entre os corredores de um lugar arborizado, quando resolvi aproveitar a oportunidade das presenças importantes ao meu redor e convocar certas pessoas para uma importante reunião.

Camille Corot, auto-retrato
O primeiro que chamei foi Camille Corot e ele me ajudou a chamar todos os outros: Jacques Louis David, Georges Seurat, Jean-Auguste Dominique Ingres e Eugène Delacroix. Marx Ernst estava ali por perto, mas como não tenho interesse nas ideias dele, deixei de fora. Estávamos todos no cemitério Père Lachaise, com mais dezenas de outras figuras importantes da história francesa.

O encontro foi no Jardim do Crematório, um lugar tranquilo, cheio de flores coloridas bem arrumadas nos canteiros. Achei que era um bom lugar para esse encontro, um lugar fértil, adubado com as cinzas de milhares que já foram incinerados neste forno, cuja chaminé escura paira poderosa ao lado da abóboda do prédio.

Ingres, auto-retrato
Tive muito trabalho, no começo, para acalmar a verdadeira balbúrdia que se instalou entre meus convidados. Ingres queria partir para cima de Delacroix, macambúzio, no seu canto, enquanto Corot queria entender porque David nunca teve coragem de abandonar o atelier e ir pintar ao ar livre, ao que David respondeu que preferia as sombras projetadas dentro de um quarto fechado do que a luz chapada do sol nos campos. "Para isso você bem podia ter sido Barroco, mas faltava arrojo e você preferiu ser o queridinho dos salões!" Deixamos os dois e encontramos Pissarro que, por sua vez, tentava convencer Modigliani de que as figuras não precisavam ser tão esguias assim, nem tão chapadas. Modigliani berrava e gesticulava em italiano, sem ouvir uma palavra do pintor francês.

Georges Seurat tentava estudar os pequenos pontos luminosos que atravessavam as folhas das árvores, dizendo a Corot que ele não precisava ter sido tão literal assim, que bastava olhar para a luz, como ela se comportava em pequenos pontos, mas Seurat, indignado, gritou com ele que esse negócio de pontilhismo é para quem não sabe nem a sombra de como se usa um pincel!

Delacroix, auto-retrato
Enquanto Ingres se inflamava cada vez mais com Delacroix, David também se achou no direito de cobrar deste uma posição política mais definida. "Como assim?", perguntou Delacroix. "Você não viu que eu pintei a maior obra prima da Revolução, A Liberdade guiando o povo?" - Sim, respondeu David, mas eu falo de ação, camarada, de ação! Ao que Delacroix respondeu: você foi tão bonapartista quanto eu! Voilà!

Bom, como vi que a coisa estava cada vez mais fora de controle, dei um berro muito alto, usando da minha autoridade de idealizadora da reunião:

- ARRÊTEZ-VOUS, S'IL VOUS PLAÎT!!! Parem já!

Assustados com meu grito feminino quase histérico, eles me olharam. Continuei:

- Chamei vocês aqui porque tenho coisas importantes a discutir, então esqueçam suas desavenças e gostos pessoais. Esta aqui é uma reunião de trabalho!

Pissarro, auto-retrato
Ingres resmungou, David que já estava mais animado por uma briga, parou estático. Os outros ficaram ali, me olhando; Pissarro com um sorriso debochado. Não liguei.

De longe, à esquerda, ouvia-se a voz de Edith Piaf cantando "Je ne regrette rien", enquanto no lado oposto, mais ao fundo, Mozart solfejava uma sinfonia... O corvo preto que tinha pousado no jardim à nossa frente, levantou vôo, pousou num galho e deu um grito. Os communards (combatentes da Comuna de Paris), aglomerados no canto direito, próximo ao muro, faziam alguma algazarra, enquanto se ouvia a Marselhesa. Também dava para se ouvir berros violentos que vinham do lado onde estava Balzac. Ele gritava à queima roupa no ouvido de Marcel Proust: - Vai conhecer a vida lá fora, irmão! Você não sabe de nada! Rien de rien!

David, auto-retrato
Paul Éluard, abraçado a Apollinaire, cambaleava, bêbado, recitando um poema.

Voltei aos meus amigos e falei:

- É o seguinte, amigos! Estamos vivendo tempos sórdidos, tempos estranhos. Eu sei que o tempo em que cada um de vocês viveram não era lá grande coisa, mas mesmo com as desavenças que havia entre os seus pares não chegava nem aos pés do isolamento em que uma grande parte dos artistas vive hoje.

David, para você ter uma ideia, desde que o conterrâneo de vocês, Marcel Duchamp, decretou que tudo é arte ("- que você tá falando?" berrou ele) Isso que você ouviu. Duchamp, que nunca ia a museu algum e que dizia que detestava pintura, acreditem, é hoje a musa principal que inspira a nova academia: a que cria dezenas de alunos que não precisam aprender a desenhar, mas vão aprendendo que uma boa ideia vale mais do que mil palavras! (- "Não estou entendendo nada", resmunga Ingres).  Pois é, amigo, nem você, nem eu, nem ninguém. E para eles quanto menos gente entender melhor. ( - "Mas como não se aprende a desenhar se o desenho é a base de tudo?", insistiu Ingres) Simplesmente porque hoje em dia se você tiver uma formação conceitual dessa academia aí, não precisa mais desenhar. Desenhar o que? Desenhar pra que, se não é preciso criar nada daí? Hoje, artista e designer é tudo a mesma coisa. Se duvidarem de mim, podemos ir agora ao Museu George Pompidou e ver as salas separadas para apresentar a arte dos anos atuais: cadeiras, móveis, enfeites, badulaques de todo tipo, penduricalhos espalhados, mais parece um grande parque de diversões! E na tal da FIAC, então? (- "Que diabo é FIAC?", perguntou Pissarro) A tal da Feira Internacional de Arte Contemporânea. Vocês vão e lá e verão: penduricalhos, badulaques, trastes, trecos pendurados... É isso, hoje a arte é para ser divertida, tocada, brincada, manipulada, ultrapassada... (- "Principalmente ultrapassada", disse Seurat) Voilà, Seurat, isso mesmo!

Túmulo de Ingres, no Père Lachaise
Agora, não para por aí não. Os quadros que vocês fizeram e que nem venderam tanto enquanto vocês estavam vivos, hoje em dia não valem nada, quase nada perto de um tubarão envidraçado ou uma caveira de diamantes! (-"Que conversa é essa?" perguntou Delacroix. "Uma pintura de um tubarão e de uma caveira, o que isso tem de valor?") Não, meu caro Delacroix. Muito pior do que você pensa: o cara pegou um tubarão morto, jogou dentro de litros de formol, fechou num aquário de vidro e vendeu por milhões de dólares! (Os pobres coitados pintores me olhavam abismados) Porque hoje sabe quem manda no que se chama de arte contemporânea? O mercado. No tempo de vocês a igreja, a nobreza ou o Estado eram grandes compradores de arte. Hoje os grandes compradores são uns caras que ganham bilhões na Bolsa de Valores e, se compram alguma pintura de valor, é para ela ficar bem guardada esperando que valorize mais... Corot, ainda bem que seu amigo Gustave Courbet não está aqui hoje. Ele ia querer fazer outra revolução!

Mas meus amigos foram murchando, se movimentando lentos, cabisbaixos. Olharam para mim com pena. Corot ainda me perguntou se valia mesmo a pena ser pintora hoje. Vale, mesmo que seja por mim, respondi. Mas eles foram voltando quietos cada um pro seu canto. Minha reunião acabou sem ter acabado.

Gritei para eles:

- Mas há os que ainda resistem!

Delacroix fez um gesto amigo com as mãos. Ingres me desejou "bonnes chances, allez-y!", boa sorte, vá em frente.

Fui embora pra Bastilha.

Praça da Bastilha, Paris

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Os novos Maneiristas – arte-espetáculo

Uma grande leiloeira de obras de arte, a Christie’s nova-iorquina, realizou entre 26 e 27 de maio, um grande leilão com obras de 150 artistas latino-americanos, porque a bola da vez do restritíssimo mercado de arte agora é a América Latina. Um empreendimento altamente lucrativo para investidores em obras de arte, que deve movimentar em torno de 25 milhões de dólares, segundo os organizadores. E muito lucrativo também para os artistas que o mercado escolheu, entre os quais as brasileiras Beatriz Milhazes e Adriana Varejão.


Estou preparando uma pesquisa sobre o assunto Arte e Mercado, que devo publicar em breve neste blog. Mas desde já adianto algumas indagações, que considero importantes, com vistas a provocar uma reflexão maior sobre os termos atuais que gestam o que nestes tempos se chamam de “artes visuais”.


A Fonte, de Duchamp
Antes de mais nada, vale sempre lembrar de uma historinha que sempre funciona como pano de fundo para as coisas esquisitas que teimam em acontecer hoje, na chamada “arte contemporânea”. Em 1917 – há 94 anos, portanto! – o francês Marcel Duchamp mandou para uma exposição que acontecia em Nova Iorque, um urinol de parede, que ele intitulou “A Fonte”. Inaugurou, na História da Arte, o período da chamada “arte conceitual”, a arte da boa ideia ou, como diz Ferreira Gullar, a “arte da caninha 51”.


Hoje (um hoje que já dura muito, e dura porque existe um sistema muito organizado por trás dele), os Neo-Maneiristas se revezam em imitar artistas do passado. Houve um tempo em que os pintores imitavam outros pintores, que eles consideravam grandes Mestres, ou seja, pintavam “à maneira de” Da Vinci, de Ticiano, de Rafael... Eram os Maneiristas. Viviam na Europa no mesmo período em que o Brasil começava a se formar, lá pelos idos de 1520-1600. Eles tinham muito orgulho de fazerem cópias perfeitas dos seus mestres, pois dominavam a técnica do desenho e da pintura da época, de forma excelente (veja abaixo).


Os maneiristas de hoje também se satisfazem em repetir ideias de artistas passados, dos tempos de Duchamp (antes de Marcel Duchamp, devem pensar eles, será que o mundo existia???)


O artista e sua obra: Damien Hirst
e seu cadáver de tubarão,
conservado em formol
 
Não parece que hoje o que importa é causar frisson estético, e chamar a atenção do mercado para que o artista – o neo-maneirista – ganhe lá também os seus dólares e abocanhe a sua fração vantajosa financeiramente? Mesmo que seja como autor de um espetáculo que beire a crueldade, para dizer o mínimo? “Isto vai desde obras\espetáculos onde, por exemplo, se incendeia uma galinha, fatia-se um boi, tortura-se um inseto, até a utilização do corpo humano em cenas de mutilação”, diz Affonso Romano de Sant’Anna, em O Enigma Vazio.


Já se fez de tudo na “Arte Conceitual”, depois do penico de Duchamp... Já foram usados todos os meios e todos os líquidos humanos para serem apresentados como obras de arte em galerias e museus da moda: sangue, esperma, saliva, suor, menstruação e... merda! 


O artista e sua obra: a merda
enlatada de Piero Manzoni
Literalmente. Em maio de 1961, Piero Manzoni transformou suas próprias fezes em uma obra, que ele vendeu muito bem: mais 1 milhão de libras por latinhas com a merda do artista, etiquetadas com o título “Merda d’artista”. Em 2004, o britânico Damien Hirst vendeu – como obra de arte – um tubarão mergulhado em formol, por 12 milhões de dólares, ao administrador de fundos norteamericano Steve Cohen.


Seria uma ideia fazer aqui uma lista das coisas que já foram expostas como obras de arte, mas em respeito a quem acompanha este blog, vou dispensá-los do mal-estar físico - além de intelectual - que essa lista causaria...


Mas não posso deixar de falar sobre uma exposição que está acontecendo neste momento no Rio de Janeiro, na Casa França-Brasil, um espaço que pertence ao governo do Estado do Rio: A exposição “2892”, inaugurada em 14 de maio último, de Daniel Senise.


Os lençois expostos na Casa França-Brasil. Mais vale
olhar para o teto do prédio!
Consta que em 1993, esse artista doou lençóis brancos ao Instituto Nacional do Câncer e a um Motel do Rio de Janeiro. Obra de caridade? - Não, Arte Conceitual, amigo! 


À maneira de Duchamp (e tantos d’outros) Senise iria recolher esses lençois mais de 15 anos depois para apresentá-los numa exposição assinada por ele, esta que está ocorrendo neste momento. O título dessa exposição é o número das pessoas que se enrolaram nesses... lençóis(?). Agora fico sem saber se chamo de lençois algo que foi elevado à condição de obra de arte. De um lado, os lençóis que passaram pelos clientes do Motel. Do outro, os que enrolaram os doentes com câncer... No meio, um corredor macabro, onde o visitante desavisado pode ser surpreendido por sua imaginação que irá visualizar ali todas as “marcas de amor” naqueles lençois e, do outro lado, marcas de doentes de câncer... Sangue, esperma, líquidos humanos... 


E “isso” é Arte? 


Que mundo é este, onde a arte que fazemos é ESSE tipo de arte? Será que não há uma tremenda coerência com essa produção de arte contemporânea atual e essa sociedade neoliberal que acha cada vez mais legal ser de direita, como disse Marcelo Rubens Paiva recentemente? Uma sociedade que aplaude o preconceito, a discriminação, a elitização, o jogo midiático manipulador e o consumismo, teria que tipo de artistas para ilustrar seu pensamento? Uma sociedade dominada pela caretice evangélica, por falsos mas milionários profetas, por pensadores medíocres mas ilustres que usam meia dúzia de palavras para arrancar risadinhas nervosas da classe média, teria outro tipo de artista, que não os escolhidos do mercado e do sistema?


Como diz o poeta e crítico de arte Affonso Romano de Sant’Anna, a arte contemporânea já não é mais assunto para quem é especialista em Artes, mas em Psicanálise...


OS MANEIRISTAS JÁ FORAM BONS NO PASSADO!

Retrato de Maximilien II e sua família,
atribuída a Giuseppe Arcimboldo, por volta de 1563

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Ferreira Gullar falando de arte

ENTREVISTA COM FERREIRA GULLAR

Ferreira Gullar
Ferreira Gullar, um dos mais importantes críticos de arte da atualidade, além de poeta, concedeu esta entrevista abaixo em 2007 ao Jornal de Brasília, que transcrevo, pela sua atualidade e importantes observações sobre o mundo das artes plásticas hoje. Uma pena que, à medida em que envelhece, este poeta vai ficando cada vez mais retrógrado em sua visão de mundo...

É importante lembrar que Ferreira Gullar e Hélio Oiticica, artista plástico brasileiro, participaram juntos da criação do Neoconcretismo, no final dos anos 50. Em 1959, Gullar escreveu o Manifesto Neoconcreto, que influenciou decisivamente o desenvolvimento da obra de Oiticica. Em seguida, Gullar formulou sua Teoria do Não-objeto, a partir da observação do processo criativo de Lygia Clark. Depois, ele fez autocrítica dessas posições anteriores.

Jornal de Brasília - No que consiste e o que induziu a esta situação de mistificação no território das artes?

Ferreira Gullar - A questão é que as tendências mais radicais da arte contemporânea levaram a uma destruição das linguagens artísticas. Por falta de coragem, não se faz a crítica deste processo, no momento em que as propostas radicais da vanguarda chegaram a um ponto de exaustão, chegaram a um ponto onde não tem mais nada a ver com a arte.

J.B. - Como isto se torna possível?

Gullar - Por um lado existe uma crítica omissa, conivente e conveniente, por outro lado existem instituições que, de alguma maneira, dependem desta situação para sobreviver. Você tem o exemplo de uma exposição de renome internacional como a Bienal de Kassel, que teve como curador um sujeito que declarou que não sabia mais o que era a arte. Ele selecionou os nomes dos artistas. Claro que não é possível definir cientificamente o que é arte. Mas se uma pessoa não sabe o que é arte não tem condições de organizar uma Bienal.
J.B. - Qual o alcance da crítica que dirige a Marcel Duchamp? Até que ponto nega Duchamp? Ele não ampliou o repertório, os materiais e os limites da arte?

Gullar - É preciso colocar as coisas em seu devido lugar. Eu não nego a importância de Marcel Duchamp. Mas ele é apenas um dos que ampliaram o campo da arte para as novas formas como objeto. O caminho de ruptura com as formas tradicionais já havia sido aberto pelos dadaístas. E o próprio caminho que Duchamp
segue é uma conseqüência de papier collé cubista. A utilização da estopa, areia e prego nos quadros cubistas já prenuncia o abandono da tela e a incorporação do objeto como matéria da arte. Duchamp não nasceu do nada. A diferença está entre o que Duchamp fez no tempo dele e no que se quer fazer hoje.

J.B. - Em que sentido?

Urinol, de Duchamp
Gullar -  Quando Duchamp enviou um urinol a um salão estava realizando um gesto de alto inconformismo e denunciando uma série de imposições que envolviam a arte naquele momento. O urinol não é obra de arte. Quando ele fez isto o seu gesto era rebeldia, mas hoje seria puro conformismo. As instituições já assimilaram este gesto. Esta atitude de denúncia e de arte sem linguagem já se exauriu. Em Duchamp esta atitude era significativa de uma postura ética. Mas por outro lado contribui para a destruição da obra de arte. Duchamp sacrificou a sua obra em razão desta atitude ética. A obra de Duchamp é datada.

J.B. - Em entrevista, você afirmou que Lygia Clark e Hélio Oiticica eram excessivamente cerebrais. Mas a busca dos dois não era precisamente do sensorial?

Gullar -  O Hélio era um cara de um indiscutível talento e que levou ao ponto extremo as experiências do neo-concretismo do qual eu era o teórico. E digo mesmo que houve uma influência recíproca dos artistas plásticos sobre a minha poesia e da minha poesia sobre os artistas plásticos. O meu Poema Enterrado influenciou os trabalhos de Hélio. Então eu não estou falando de fora. Nós pegamos a linguagem concreta e altamente intelectualizada e colocamos uma nova substância nela. A Lygia tem uma trajetória de uma enorme coerência, desde o momento em que os quadros delas incorporaram a moldura como espaço de expressão até a série Bichos, inovadora e verdadeira.
Mas, ao invés de aprofundar o desenvolvimento desta linguagem, ela resolveu seguir adiante, destruindo a própria linguagem. Quando coloca sacos de papel na parede ou fios de nylon na boca, reduz a experiência estética a algo meramente sensorial. Acaba com a dimensão reflexiva e espiritual da obra de arte. E consequentemente o homem se torna um bicho.
E agora respondo a sua pergunta: o excesso de intelectualismo levou ao puro sensorial.

J.B. - Mas você faria esta mesma avaliação do trabalho de Hélio Oiticica?

Gullar - O último trabalho que vi do Hélio era uma instalação no Hotel Meridien. Era um espaço com água e pedrinhas. Você tinha de retirar o sapato para sentir a água e as pedra. Olha só aonde leva este cerebralismo: a idéia de recriar a natureza dentro de um hotel. Francamente, se é para sentir a natureza acho melhor ir para Mauá.
E, ao invés de colocar as implicações deste tipo de atitude, a crítica fica louvando. Quem criticar isto é careta ou reacionário. Outro dia eu tive uma discussão com uma amiga minha e ela citou Andy Warhol que dizia que uma atitude podia ser uma obra de arte. Mas quem é Andy Warhol? É o papa? É deus? Ele era um artista interessante que se rendeu ao comercialismo. Como teórico para mim era um babaca.

J.B. - Não haveria, por exemplo, sintonia entre os parangolés de Hélio Oiticica e os mantos de Arthur Bispo do Rosário?

Obra de Bispo do Rosário
Gullar -  Não tem nada a ver. Os parangolés surgiram a partir do momento em que Hélio Oiticica passou a freqüentar a escola de samba da Mangueira. É algo muito pobre se você comparar com a roupa de uma porta-bandeira, colorida, barroca, popular. É uma arte que remonta ao século 17. Aí o Hélio botava a roupa em um passista e pedia para o cara rodar e falava que isto ele estabelecia uma relação da forma com o espaço e a luz. É pura teoria. Qualquer objeto rodando mantém uma relação com o espaço e a luz.

J.B. - Mas a incorporação que o Bispo faz dos objetos não evoca a procedimentos da arte moderna?

Gullar -  O Bispo é exatamente o contrário da arte moderna. Em seu delírio, ele quer salvar os objetos do mundo. Ele começou a desfiar o próprio uniforme de interno para bordar um manto sagrado. A sua busca é busca do sagrado. Não tem nada a ver com a sofisticação vazia da arte moderna. Só um louco se entrega totalmente a esta missão de salvar os objetos do mundo. É uma loucura que imprime esta força interior aos objetos do Bispo.
A arte moderna é de decadência, de cerebralismo, de sofisticação exaurida. O que a arte precisa é de paixão e não de cerebralismo. No contexto pretensioso desta arte moderna todos se acham gênios.
O Leonardo da Vinci, quando pediram a ele uma escultura, realizou um estudo reunindo todos os escultores que admirava no passado. Hoje o sujeito enrola três tijolos com arame, manda para a Bienal e diz que é arte. Na Bienal de Veneza, eles aceitaram um açougueiro que tinha cortado uns pedaços de tubarão. Agora não é mais necessário aprendizagem artística. Nas bienais nós temos açougueiros, marceneiros, eletricistas, cineastas. Li que Almodóvar expôs na Bienal de Veneza. Eu queria perguntar a ele se para ser cineasta não é preciso aprender a linguagem do cinema.

J.B. - E, agora, que perspectivas vê para a arte diante do mundo?

Gullar -  Acho que o que a arte tem de fazer é parar de falar sobre ela mesma e começar a falar do mundo. Nós temos 40 mil anos de arte falando do mundo e dos problemas do  homem no mundo. A arte deve voltar a falar da vida.

Arte pré-histórica

sexta-feira, 16 de abril de 2010

À imagem e semelhança do... Homem!



“Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.” Este é o segundo mandamento da Lei de Moisés do Velho Testamento da Bíblia, que virou o primeiro mandamento das artes plásticas contemporâneas.

A comparação não é minha, mas do poeta mineiro e estudioso de artes, Afonso Romano de Sant'Anna, em seu livro “Desconstruir Duchamp”, onde o autor tece inúmeras reflexões sobre o estado atual das artes plásticas no mundo, dominadas pela arte conceitual.

Qualquer pessoa que tenha atualmente um mínimo interesse em acompanhar como andam as coisas no mundo das artes plásticas – que a nova academia prefere chamar e incluir no termo “artes visuais” – se verá diante de um quadro bem difícil de assimilar. Num mundo onde reinam “conceitos” abstratíssimos e onde “tudo” – literalmente qualquer merda (Manzoni, artista italiano enlatou suas próprias fezes que foram vendidas a preço de ouro) – pode ser considerado arte, quem ganha é o sistema: mercado de ações, curadores, negociantes de arte, instituições e, claro, o artista digerido por esse sistema.

Mas perde o ser humano. Nesse sentido, a crise atual das artes plásticas está nos dizendo alguma coisa, e precisamos ouvi-la.

Um primeiro fato que chama a atenção é a absurda elitização daquilo que pode ser chamado de alta cultura, como livros, teatro, concertos musicais, cinema, museus. Recentemente, o Ministério da Cultura fez uma pesquisa cujos dados são alarmantes. Para não entrar em outras áreas, apenas em relação a um dos dados avaliados pelo índice que mediu o consumo cultural do povo, verificou-se que 70% dos brasileiros jamais colocou os pés em um museu!

Há muitos anos, exatamente em 1959, Ernst Fischer já chamava a atenção, em seu livro “A Necessidade da Arte”, para a falta de interesse e de empenho, por parte do sistema capitalista, de que a imensa maioria do povo tenha acesso à cultura. Diz ele: “... massa de seres humanos para os quais mesmo a velha arte é algo de inteiramente novo, seres cujo gosto artístico ainda está por se formar, cuja capacidade de apreciar as qualidades artísticas precisa ser desenvolvida”, necessitam de que a arte se liberte do fato de ser bem de uma “elite educada” a que se chama “público”. E essa “elite educada” nunca foi tão elite quanto atualmente em que a arte conceitual se assume como obra DE e PARA iniciados. Mas faz sentido! Se um tubarão congelado em formol ou uma cama desarrumada após uma relação sexual podem ser expostos como “obras de arte”, realmente para se enxergar nisso o que “eles” dizem que existe – arte – realmente há que ser um iniciado de uma de suas herméticas escolas!

Pinturas da caverna de Lascaux, França
Mas o sentido da arte, segundo acredito, é o da arte que vem da História, desde as primeiras inscrições nas cavernas descobertas na Espanha e França. Criaturas criadoras que somos, desde milênios, a arte sempre serviu para nos comunicar uns com os outros, para nos unir, para nos inspirar, para nos colocar “em estado de equilíbrio com o meio circundante”, como diz também Ernst Fischer. A história da arte é a história da humanidade, uma vez que o foco – e o objetivo – da arte é o ser humano.

Humanismo percebido por Marcelo Gleiser, físico teórico brasileiro, que acaba de lançar no Brasil o seu novo livro “Criação Imperfeita”. O livro fala de ciência, de Física e Astronomia. O que isso tem a ver com Arte? O seguinte: Marcelo Gleiser propõe uma mudança de foco num paradigma tão antigo quanto a ciência: “é necessário deixar para trás a expectativa de que devemos achar explicações finais sobre o mundo, sejam elas científicas ou religiosas”, diz ele e acrescenta que essa maneira de fazer ciência nos fez evoluir e aprender muito como funciona o universo e do que somos feitos. “Por muito tempo, talvez por tempo demais, buscamos harmonias que não existem; buscamos, também, por companhia nos céus – divina ou extraterrestre, que aliviasse os temores de nossa existência.” Mas esse tempo já passou, diz ele, ao propor o que ele chama de Humanocentrismo, ou seja, a necessidade de recolocar o ser humano no centro da atenções, das ciências à artes.

Nas artes hoje vivemos sob o pensamento único que impera sob o nome de “arte contemporânea”. Mas o que exatamente significa o termo “arte contemporânea”? Para o mercado – e para o sistema atual das artes, na expressão do jornalista Luciano Trigo – significa simplesmente commodities. Arte é negócio – e negócio é arte, inclusive para alguns artistas.

Arte não é mais aquela obra de criação de um ser humano apresentada à outro com o sentido de refusão desse homem, como diz Antonio Callado, num sentido de coletividade “que completa uns homens nos outros”, que “torna novos” os homens, que incita-os “à permanente escalada de si mesmos” e da sociedade. Hoje Arte é mercadoria, no sentido capitalista definido por Marx como mais-valia. Na Idade Média, uma pintura valia um preço, mas o preço real do gasto com material e do trabalho do artista. Hoje, na busca alucinante (e alucinógena) pelo lucro a todo custo, um tubarão imerso em formol do artista plástico Damien Hirst é vendido como obra de arte por 12 milhões de dólares. O mundo deve estar louco... Mas, pensando bem, esse mundo é uma minoria, que da maioria quer mesmo é distância. Melhor – para eles – que ainda hoje 70% de brasileiros não possam ir a um museu contemplar as Belas Artes...

Essa arte hoje também é tudo, menos pluralismo. Não há espaço para pintores figurativos, por exemplo. Milhares de artistas figurativos, que teimam em representar a realidade em seus quadros, sobrevivem à margem do sistema, esquecidos, resistentes. Afonso Romano de Sant'Anna, também em seu livro “Desconstruir Duchamp” pergunta: “Quantos artistas ainda não estão traumatizados, paralisados, congelados de medo diante do desejo de pintar figuras, como se os talibãs os fossem pegar em flagrante?”

Voltando à frase bíblica inicial, podemos pensar que realmente hoje há um medo da imagem no mundo das artes plásticas – grande paradoxo gerado pela sociedade pós-moderna que multiplica-se em milhões de imagens. Mas esse medo é o mesmo medo de se voltar ao ser humano, de recolocá-lo no centro, como propõe Marcelo Gleiser. É o mesmo medo das elites de que esses 70% de brasileiros possam ir aos museus, às galerias, às livrarias, aos cinemas, aos teatros, aos concertos musicais, porque no dia em que isso começar a acontecer o homem mais uma vez estará dando um salto em sua humanidade.

Para terminar, em prol dessa re-humanização das artes, Ernst Fischer:

“O homem, que se tornou homem pelo trabalho, que superou os limites da animalidade transformando o natural em artificial, o homem, que se tornou um mágico, o criador da realidade social (…) será sempre Prometeu trazendo o fogo do céu para a terra, será sempre Orfeu enfeitiçando a natureza com a sua música. Enquanto a própria humanidade não morrer, a arte não morrerá.”