domingo, 10 de junho de 2012

Arte para quê?

"Êxtase de Ludovica Albertoni", escultura do italiano Gian Lorenzo Bernini, cerca de 1671
                Desde muito cedo em minha vida, uma atração muito grande para o desenho foi se gestando em mim. Não me lembro dos meus primeiros traços, apagados em minha memória, mas lembro de, com 6 ou 7 anos de idade, eu via se juntar em volta de mim na escola (Colégio do Sagrado Coração, de Caruaru, minha terra natal), uns 3 ou 4 colegas que ficavam me pedindo para desenhar coisas para eles. Talvez tenha sido esse o momento em que eu tenha tomado consciência da arte em mim: quando outras crianças, pequenas como eu, encontravam algum prazer comum em ver traços se trans-formando, tomando formas conhecidas, pelas minhas mãos. E enquanto crescia, na escola, desenhava para mim e para eles mapas, letras, Tiradentes, Jesus cristos, Dom Pedro I e II, paisagens, para aulas de história, religião, artes, geografia. Eu mesma me surpreendia com minha facilidade, mas mais feliz ficava por ter algo em mim que atraía as pessoas e que lhes encantava. Assim como encantava meu pai, que ia me orientando a desenhar as máquinas que ele inventava para a sua serraria. Ou que me contava estórias de caçadas e florestas, que depois eu desenhava; e ele ria, satisfeito.

"O Geógrafo", Jan Vermeer, 1669
A arte satisfaz o homem. Como o alimento e a água que nutrem o corpo, a arte vem nutrindo a alma humana desde os tempos mais remotos. Ainda hoje se questiona sobre o que exatamente a arte possui que cativa as pessoas de todos os tempos, culturas, tradições. O que é Arte?
Muitos autores já escreveram respostas para essa pergunta. Muitos debates, conversas, seminários, interlocuções vêm acontecendo desde os mais antigos tempos para se chegar a alguma aproximação sobre o que é Arte, qual o caráter essencial da Arte, essa capacidade humana que molda o mundo como a casa de todos, num fazer para onde confluem nossas alegrias e nossas tristezas mais profundas. E que nos atrai mais do que pensamos ou prevemos. E que irradia significado para a nossa vida do cotidiano, nos permite seguir em frente nas tarefas da existência, nos dando força para recriar nossas próprias vidas, enquanto vamos moldando o mundo.
A arte nos faz mais humanos, nos faz grupo e nos faz indivíduos.
Cantamos juntos a mesma música; ouvimos em bando silencioso um maestro regendo uma orquestra sinfônica; em grupo estamos no teatro, enquanto Antígona implora justiça para seu irmão morto; no cinema, damos estrondosas gargalhadas diante de Charles Chaplin ou choramos miúdo e quieto diante da morte da mãe do menino de “Roma, cidade aberta”; vamos aos milhões para as ruas das cidades em viradas culturais; mas também nos quedamos solitários, contemplativos diante de uma pintura que nos toca; ou admirados diante dos desenhos de Escher; ou esputefatos, se nos deparamos com as maravilhas criadas por gênios como Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Vermeer, Velazquez, Rafael, Courbet, Delacroix, Ingres, Sargent, Sorolla...
Pintar e desenhar é um exercício de aprender a ver o mundo. Porque normalmente nós não vemos o mundo. Vemos o trivial, o corriqueiro, o passageiro, o superficial. Quando pintamos e desenhamos, nosso olhar vai penetrando camadas do real que escapa ao olhar comum. E na medida em que vamos penetrando nas coisas, mais informações vão surgindo, mais há o que ver, num exercício de percepção que se aprofunda cada vez mais e que tende ao infinito... O Real é infinito... Nunca olhamos do mesmo jeito para a mesma coisa. Assim como a mesma coisa nunca aparece da mesma forma a cada olhada. A cada olhada, a coisa é outra, o mundo é diferente. Há algo na percepção do mundo que é uma via de dupla mão, e a relação não é nem predominantemente ativa e nem passiva. A coisa observada de alguma forma nos observa, como relatam as experiências da física quântica. O mundo está aí, desde seus primórdios, para ser descoberto. E jamais deixa de ser descoberto, porque infinito.
O autor inglês Laurence Olivier interpretando "Hamlet"
na famosa cena: "to be or not to be, that is the question!"
Mas pintar e desenhar também é uma forma de linguagem para descrever isso que vemos. A Retórica tem seus limites; a gramática é finita. Nenhuma língua humana é capaz de alcançar certos estados da realidade e nossa relação com ela, para descrever, para contar a experiência. Um por de sol maravilhoso, singular, vivenciado em um momento de êxtase, jamais poderá ser contado fielmente, se quisermos narrá-lo a outra pessoa. Há músicas, filmes, peças de teatro – obras de arte – que nos calam, sobre os quais não achamos palavras, todas são pobres, todas rebaixam as experiências, ou, como diria o poeta francês Mallarmé, se coisificam, se mercantilizam. Empobrecem a experiência do Real. Há estados de alma inenarráveis, sobre os quais não há o que se falar, não dá para descrever. Como uma mãe em profundo estado de choque pela perda do filho é capaz de falar da sua dor de uma forma que ela se torne no outro do mesmo tamanho que é para ela? Ou como ser capaz de por em palavras a emoção de um abraço na pessoa amada, depois de tempos sem vê-la? Ou como contar da alegria imensa que sentimos num momento qualquer de realização pessoal?
Cena do filme "Roma, cidade aberta", do diretor italiano Roberto Rosselini,
filmado no período da segunda guerra mundial
Mas pode-se fazer música, poesia, pintura, escultura, dança... com essas vivências para as quais a gramática é pobre. A Arte cria essa ponte entre o Real essencial e a vida cotidiana, numa linguagem inteligível por qualquer ser humano, de qualquer língua, porque a linguagem da Arte é a linguagem mais profunda que vem da alma humana e que une todos os seres humanos.
Mas como vivemos em um mundo desigual, uns se beneficiam da possibilidade da aproximação com obras de arte... O mundo capitalista é mal para a maioria, que corre atrás do cotidiano, sem direito a momentos de fruição dessas possibilidades de REAL-IZAÇÃO do Real em si mesmos. Do Real, essa potencialidade de beleza e de harmonia que nos chama e nos inflama, quando uma janela se abre para ele...
Mas um passarinho canta nesta manhã fria de São Paulo. Da gaiola do apartamento vizinho, ele entoa sons que nada custam, que não tem valor de mercado, que não servem para nada (no sentido utilitário das coisas do mundo atual). Mas que chama a um momento de silêncio, mínimo que seja, para que seu canto nos encante.
Sabiá laranjeira de nossas matas brasileiras

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