segunda-feira, 31 de março de 2014

Delacroix, o mais legítimo dos filhos de Shakespeare

Autorretrato de Eugène Delacroix como Hamlet.
Junto com a celebração de 450 anos do nascimento de William Shakespeare, o Museu Delacroix, em Paris, expõe obras de Eugène Delacroix, numa mostra intitulada “Delacroix, o mais legítimo dos filhos de Shakespeare”. A exposição vai do dia 26 de março até 31 de julho de 2014.
“Selvagem contemplador da natureza humana”, segundo as palavas de Delacroix, Shakespeare teve um lugar particular na criação do artista. Por isso, o Museu Delacroix está apresentando pela primeira vez um conjunto de litogravuras da série “Hamlet”, assim como as pedras onde Delacroix desenhou seus originais.
"Hamlet e Horacio diante dos coveiros",
litogravura de Delacroix
Pintor culto, grande leitor de literatura, Eugène Delacroix também era um assíduo frequentador do teatro. Entre os anos 1820-1830, quando houve um renascimento da cena teatral em Paris, Delacroix, além de frequentar as peças, também passou a estudar as novas teorias que surgiam em relação ao papel do ator. Novas peças de Diderot foram encenadas. Em seu jornal, Delacroix não deixa de comparar as habilidades do ator com aquelas do pintor: “A execução na pintura deve sempre considerar a improvisação, e aqui está um ponto de convergência com o que faz um ator no teatro”.
Em setembro de 1827, o jovem Delacroix assiste a uma das representações da peça “Hamlet” no teatro Odeon, onde a célebre atriz inglesa Harriet Smithson fez o papel de Ophelia, e deixou o público francês impressionado com sua representação. Ele tinha acabado de chegar de uma viagem de Londres junto em visita a seus amigos pintores Thales e Newton Fielding.
A morte de Polonius, Ato III, Cena IV,
litogravura de Delacroix
O fascínio de Delacroix pela figura de Hamlet, um príncipe sensível e atormentado, foi profunda. Desde o começo dos anos 1830 ele tinha tido a ideia de consagrar a este personagem da peça de Shakespeare uma série de litogravuras, como o fez para ilustrar a tradução francesa do “Fausto” de Goethe em 1827.
Então o Museu Delacroix está trazendo ao público a oportunidade de ver de perto o conjunto de pedras litográficas desenhadas pelo artista, assim como as pranchas impressas por ele. Neste ano de 2014 se completam 450 anos do nascimento de William Shakespeare e esse museu celebra, desta forma, esta efeméride tão importante para o mundo do teatro e da literatura. As obras de Delacroix expostas desta vez raramente têm sido expostas.
"Romeu e Julieta no túmulo dos Capuleto", pintura de Delacroix

terça-feira, 25 de março de 2014

El Greco de Toledo

"Vista de Toledo", 1596-1600, Metropolitan Museum of Art, Nova York

Neste ano de 2014, a arte espanhola rememora os 400 anos da morte de um de seus artistas mais importantes, dentre os muitos pintores espanhois: El Greco. Será feita na cidade de Toledo, Espanha, a maior exposição de sua obra em todos os tempos, com mais de 100 trabalhos de El Greco provenientes de mais de 29 cidades do mundo.

Um provável autorretrato de 1503
Domenikos Theotokopoulos, que ficou conhecido para o mundo da arte como El Greco, nasceu na cidade grega de Creta em 1541 onde viveu até os 26 anos de idade. Nesta ilha grega ele era um pintor de ícones pós-binzantinos. Após esse período, viajou à Itália onde viveu por 10 anos, primeiro em Veneza e depois em Roma. A partir de 1577, mudou-se difinitivamente para a cidade espanhola de Toledo, perto de Madrid.

Sua formação pictórica foi bastante ampla. Desde as primeiras lições sobre a arte bizantina até a passagem dele por Veneza, onde conheceu a obra dos maiores mestres do Renascimento, em especial a de Tiziano. Em Veneza ele aprendeu a dominar a técnica da pintura a óleo e sua gama de cores. Depois, em Roma, conheceu a obra de Michelangelo. Sua obra, pode-se dizer assim, é o resumo da influência recebida nesses lugares, e que traz uma característica bastante pessoal, com suas figuras alongadas e suas cores densas.

El Greco compôs desde grandes quadros para os altares de igrejas, assim como pinturas para conventos e mosteiros, e também retratos, que são considerados como de alto nível. Na primeira fase de sua vida na Espanha, na pequenina cidade de Toledo, nota-se bastante a influência dos mestres italianos. Mas aos poucos, El Greco foi evoluindo para um estilo pessoal muito próprio: figuras delgadas e afinadas, uma iluminação intensa, figuras de grande expressão. Durante muito tempo sua obra foi esquecida e tratada como de “menor” qualidade, e ele mesmo tratado como um excêntrico, quase marginal na história da arte. Até que foi redescoberto no século XIX e ser hoje considerado como um dos grandes pintores do mundo.

Detalhe de "Cristo abraçado à cruz", 1580-85
Apesar de El Greco ter vivido a maior parte de sua vida em Toledo, nunca foi feita uma mostra de sua obra nesta cidade. Em 1902 foi feita uma primeira exposição sobre sua obra no Museu do Prado, em Madrid, sendo seguida depois por inúmeras exposições feitas em vários lugares do mundo. Mas em Toledo, esta é a primeira vez.

A mostra, intitulada “El Greco de Toledo” terá como sede principal o Museu de Santa Cruz, mas se espalhará por vários lugares da cidadezinha, conhecidos como “Espaços Greco”: a sacristia da Catedral de Toledo, a Capela São José, o convento Santo Domingo el Antiguo, a Igreja de São Tomé e o Hospital Tavera. Todos esses lugares conservam as telas originais do pintor, permitindo que esta exposição tenha um caráter singular e irrepetível fora de Toledo.

A mostra vai percorrer a atividade de El Greco desde Candia, em Creta, passando por Roma e Veneza. Na parte que concerne à influência recebida dos pintores italianos, em especial Tiziano e Tintoretto, será dada ênfase ao tratamento dado à luz e à sombra.

Também mostrará seu trabalho como retratista, o único que lhe deu reconhecimento e fama daqueles que viveram em seu próprio tempo, mesmo que já se diferenciasse do tipo de retratos que eram pintados na Espanha dos tempos do rei Felipe II.
Mas a exposição também traz de diversos países e museus, as obras de El Greco que foram sendo adquiridas e levadas para fora da Espanha: Entre elas: Vista de Toledo (Nova York, EUA  - The Metropolitan Museum of Art), São Martin e o mendigo (Washington, EUA - The National Gallery), Cristo na Cruz com dois ladrões (Paris, França - Museu do Louvre), São Lucas pintando a Virgem (Atenas, Grécia - Benaki Museum), A Adoração dos pastores (Roma, Itália - Galleria Nazionale d´Arte antica Palazzo Barberini), São Pedro e São Paulo (São Petersburgo, Rússia - The State Hermitage Museum) e o Retrato de um escultor (Genebra, Suiça - Coleção particular), entre outros.

"Cavalheiro com a mão no peito", cerca de 1580
El Greco se instalou em Toledo a partir de 1585. No mesmo ano, um teórico da arte italiano , Federico Zuccaro, vai visitar o pintor e leva para ele de presente uma cópia do livro de Giorgio Vasari “Vida dos pintores”. Neste livro, El Greco fez diversas anotações de seu próprio punho e vê-se que foi objeto de muitas de suas reflexões sobre a pintura.

El Greco morava numa casa que tinha sido emprestada a ele pelo Marquês de Villema. Na verdade, uma mansão enorme, que lhe dava muitos gastos na manutenção. Seu ateliê mantinha uma produção contínua e ele sempre recebia muitas encomendas, especialmente para decorar igrejas, conventos e palácios. Muitos retratos foram encomendados a ele. Seu filho, Jorge Manuel, era seu assistente e também pintor. Na mesma mansão moravam, além do pai e do filho, a mãe dele - Jerônima de las Cuevas - assim como diversos ajudantes de seus ateliê. A casa era frequentada por um grupo mais restrito de seus amigos e de eruditos e humanistas da cidade, professores da universidade de Toledo, muitos deles retratados por El Greco. Poucos deles eram ligados à nobreza.

"A fábula", cerca de 1600
Atualmente, uma das grandes especialistas na obra de El Greco é Maria Leticia Ruiz Gómez, chefe do Departamento de Pintura Espanhola Anterior a 1700 do Museu do Prado. Ela está à frente de todo esse trabalho de mostrar ao mundo a importância deste pintor, sendo uma dos curadores da maioria da exposições que acontecerão este ano na Espanha. Em um dos textos de divulgação de uma das mostras, intitulada “El Greco: Arte e Ofício”, Leticia Ruiz Gómez diz:

“El Greco é, sem dúvida, um caso único de personalidade artística em contínua evolução, um imenso criador cuja profunda originalidade está presente em sua capacidade para absorver fórmulas e modelos de outros até convertê-los em ícones únicos e inesquecíveis.

Porém, além de conceber a Arte com letra maiúscula, a essência mesma da criação artística, Domenikos Theotokopoulos foi mestre de um ateliê complexo que precisava dar saída comercial a boa parte das encomendas de uma numerosa e heterogênea clientela, para fazer sua arte rentável.

A abertura de um ateliê estável na própria casa do pintor o obrigou a uma dinâmica criação pictórica complexa, da qual El Greco se ocupou pessoalmente das obras mais importantes, assim como fazer estudos para as composições mais solicitadas, intervendo na elaboração de réplicas e de cópias, participando em diversos graus do trabalho em seu ateliê.

Alem disso, teve que lutar para conseguir a autonomia que gozavam os artistas em Creta e na Itália, numa Espanha onde as práticas artísticas ainda estavam ligadas ao mundo artesanal, com restrições que sempre lhe chocavam.

Refletir e mostrar esse complexo sistema de criação artística, englobando as obras mais importantes de toda a produção do ateliê de El Greco, é o propósito desta mostra”.

Domenikos Theotokopoulos - El Greco - morreu em Toledo em 1614.

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Site com toda a programação de exposições na Espanha para 2014:

http://www.elgreco2014.com/

"A morte de Laocoonte", interpretação de El Greco com Toledo ao fundo, 1614

quinta-feira, 20 de março de 2014

Ateliê e Galeria Contraponto

Uma parte da obra de Maurício Takiguthi, exposta na Galeria Contraponto
Ontem, 19 de março, foi uma noite memorável! Inauguração oficial do Ateliê e Galeria Contraponto, do qual faço parte. Cerca de 150 pessoas estiveram presentes, testemunhando o nascimento de mais um importante espaço da arte em São Paulo.


Raulex João e Maurício Takiguthi
Juntamente com a inauguração da casa teve o vernissage de pinturas de Maurício Takiguthi, pintor realista de grande qualidade e considerado um dos maiores da pintura do momento no Brasil. Sua pintura se concentra em torno da figura humana, que é, segundo ele, uma escolha, por ser “muito mais desafiadora, pelo duplo desafio de representá-la no mais alto nível de exigência e de conseguir colocar na tela o meu olhar sobre ela. Gosto desse lugar de observador da condição humana e evidenciar o meu estranhamento diante das coisas. É seguramente o tema mais difícil. É o que me atrai”.


A exposição com as obras de Takiguthi fica aberta à visitação até o dia 25 de abril.


O ilustrador Eduardo Nunes observando
uma das pinturas de Maurício Takiguthi
Além de poderem ver de perto a obra de Maurício, que foi muito elogiada, as pessoas presentes também puderam conhecer de perto o espaço onde funciona o Ateliê Contraponto que oferecerá aulas de desenho, pintura e aquarela com os professores Mazé Leite, Marcia Agostini, Luiz Vilarinho e Alexandre Greghi.


As conversas, muito animadas, giraram em torno dos inúmeros aspectos da arte. Como música de fundo, o músico Tatá di Tao apresentou músicas da MPB como pano de fundo para os encontros felizes que aconteceram ontem.


Entre os inúmeros amigos presentes, destacamos os seguintes: o grande aquarelista chileno-brasileiro Gonzalo Cárcamo; o coordenador dos Urban Sketchers Brasil Eduardo Bajzec; os ilustradores Eduardo Nunes, João Pinheiro, Marcelo Dutra, Suzanne Cascardi e Diego Machuca; o coordenador da escola de arte Mundo Kinoene de São José dos Campos, Raulex João; o professor da Unicamp João Quartim de Moraes; o fotógrafo Carlos Moreira; a escultora e atriz Renata Andrade, entre outros.


O Ateliê Contraponto nasce com esta alegria e como um espaço aberto a todos os que queiram estudar arte, conversar sobre arte, traçar caminhos artísticos comuns, debater, conversar, crescer juntos.

Vídeo realizado por Cézar Xavier, da Fundação Maurício Grabois:


Abaixo, fotos de alguns momentos da inauguração do Contraponto em São Paulo:

Amigos presentes


André Bezerra, Mazé Leite, João Quartim de Moraes e Donizete Cunha

Estudantes de arte e ilustradores de São José dos Campos, junto com Maurício Takiguthi e Luiz Vilarinho: da esquerda para a direita: Kiira Owen, Diego Machuca, Maurício Takiguthi,
Luiz Vilarinho, Suzanne Cascardi e Raulex João.

Dilermando Toni apreciando a música de Tatá di Tao
Vista noturna da vila onde fica o Ateliê Contraponto


sexta-feira, 14 de março de 2014

A dignidade do ser humano

Há alguns dias me veio a vontade de fazer uma cópia da pintura “O tocador de pífano” do artista francês Édouard Manet. Comecei a procurar a imagem em alta resolução e, após baixá-la em meu computador, comecei um processo inicial de estudo da obra. Esta obra esteve exposta aqui em São Paulo no começo do ano passado, na exposição do CCBB sobre os impressionistas (leia sobre isso aqui).


"O tocador de pífano", Édouard Manet, 1866,
óleo sobre tela, 161 x 97 cm, Museu d'Orsay, Paris
Observei, entre outras coisas, que o menino que toca a flauta está disposto em um espaço que não descreve nada, além do próprio menino. Não há objetos, nem um ambiente, ou mesmo uma paisagem onde ele pudesse estar. O espaço é neutro. O foco é o menino com sua flauta.

Esta tela foi recusada no Salão de Outono de Paris de 1867, que ainda vivia sob o domínio da estética acadêmica. Manet apresenta um menino humilde, que parece ser um pouco manco, vestido com o mesmo uniforme usado pelos filhos dos oficiais da Guarda Imperial de Napoelão III, que também usavam calças vermelhas com listras laterais pretas, jaquetas pretas com botões dourados, uma faixa branca na cintura, além do boné. Não bastasse isso, Manet o pintou em tamanho grande, o que gerou escândalos numa época em que as pinturas em formato grande era restrita às pinturas históricas ou de personalidades influentes.

Mas a minha pesquisa me levou ainda para mais longe! Fui procurar entender porque Manet fez esta pintura e descobri que ele havia passado por Madrid um ano antes e tinha ficado absolutamente fascinado por uma tela de Diego Velázquez, no Museu do Prado, intitulada “Pablo de Valladolid”. Esta obra tem 2,10 m de altura por 1,23m. Foi pintada em 1633 e seu modelo era um bobo da corte, desses personagens cômicos cuja profissão era fazer rir aos reis e seus séquitos nos palácios europeus.

Pablo de Valladolid

Diego Velázquez era o pintor oficial da corte do rei Felipe IV, desde os 24 anos de idade. Sua obrigação era retratar não só reis e rainhas, mas também a aristocracia com seus filhos e criados. Como trabalhador da corte, Velázquez convivia com os outros criados do palácio, que incluía anões, palhaços, bobos e toda sorte de homens e mulheres que deveriam servir ao rei e sua família.

Muitos destes eram seres com alguma deformidade física, o que também servia para fazer rir à corte. Isto devia tocar Velázquez muito profundamente, pois pintou vários destes criados do palácio demonstrando uma delicadeza especial no tratamento àqueles que eram deformados fisicamente, dando-lhes sempre um ar de dignidade, mostrando-os em sua humanidade mais terna, de forma bem diferente de outros pintores que também tiveram que pintar esses seres mais humildes, mas simplesmente os retrataram com aparente indiferença.


"Pablo de Valladolid", Diego Velázquez, 1632-1637,
óleo sobre tela, 213,5 cm × 125 cm,
Museu do Prado, Madrid
Pablo de Valladolid se apresenta na tela de Velázquez não como um bobo da corte exatamente, mas mais parece um poeta em pleno ato declamatório. A tela é grande, eu a vi de perto em abril do ano passado em Madrid. Ali há um homem em toda sua dignidade e até pode ter alguma deformidade física, pode ser manco, corcunda… mas isso não chama a atenção na tela pintada por Velázquez. Fiquei muito emocionada frente a esta tela! É uma verdadeira ode ao ser humano, à dignidade humana, à justiça e à igualdade de posição e de tratamento que todos deveriam ter.

Mas isto ainda não é tudo!

“Pablo de Valladolid” é simplesmente a primeira tela pintada no Ocidente cujo fundo não mostra nada a não ser espaço. Diz-se que ela é uma das mais assombrosas realizações da perspectiva aérea velazqueana. Pablo se encontra solidamente apoiado sobre uma superfície criada só com luz e sombra. Velázquez parece querer ter dito: aqui o que importa é este homem e nada deve retirar o foco de atenção em sua figura!

O Espaço

Esta pesquisa, que começou com o menino flautista de Manet e me levou a Pablo de Valladolid, também me encaminhou para uma outra temática: a do tratamento do espaço por esses grandes mestres.

A ideia de “espaço” é um dos grandes conceitos filosóficos e mesmo científicos que nos tem feito pensar desde a Grécia antiga. Platão - filósofo idealista - expõe em seu livro “Timeu” suas ideias sobre o espaço e relaciona o mundo dos corpos (objetos) físicos com formas geométricas. Segundo ele, o universo seria formado por 4 elementos essenciais: água, terra, fogo e ar. Mas já se apoiava na ideia de que o átomo dava forma a tudo o que existe. E criou aquela ideia dos cinco “corpos” (que ficaram depois conhecidos como “corpos platônicos”): a pirâmide, o cubo, o octógono, o dodecaedro e o icosaedro. Ou seja, ele tentava elaborar as primeiras ideias sobre a “ideia” do espaço.

Já Aristóteles ligava a ideia de espaço à ideia de movimento. O espaço é apreendido a partir da noção de “lugar”. Para ele não há o “vazio” e o espaço seria a soma de todos os lugares ocupados por todos os corpos. Mas não vamos entrar muito mais aí no reino da Filosofia, porque isso nos levará a complicações maiores.

Porém, continuemos ainda um pouco falando de “espaço”. Podemos dizer que a característica principal do espaço é aquela de algo que contém as coisas. Temos nossos espaços pessoais, como nossa casa, e nossos espaços coletivos, como templos, museus, escolas… Pronto! Ficamos mais tranquilos quando damos um “nome” a uma ideia tão abstrata quanto é esta do espaço. E por isso este tema tem tido um peso tão grande dentro do pensamento ocidental.

E da Arquitetura, que é a forma criada pelo homem para organizar os espaços, de criar lugares de acolhimento, de proteção da vida.

Que trouxe para a pintura um complexo problema: o da perspectiva. Como representar um espaço tridimensional no espaço bidimensional formado pela tela? Foi somente depois do século XV que as primeiras tentativas foram feitas, começando por desenhar menor aquilo que estava mais longe e maior o que estava mais perto do observador. Foi quando um tal Filippo Brunelleschi (1377-1446) criou o Ponto de Fuga, ou seja, descobriu que todas as linhas podem convergir para um mesmo ponto.

Esses estudos passaram por Leonardo da Vinci, por físicos e filósofos, e no século XVII teve novas contribuições teóricas a partir dos estudos de Isaac Newton e René Descartes. Mas mesmo que tenham sido ideias que fizeram evoluir ainda mais o conceito de espaço, elas ainda ligavam a ideia de espaço à de Natureza e continuam interpretando o Real como ele é percebido pelos nossos sentidos. Hoje as pesquisas científicas avançaram e dentro da ideia de espaço surgiram teses como a Teoria da Relatividade do Espaço e do Tempo, a tese do Big Bang, a Teoria do Caos, a teoria dos Multiversos, etc. Hoje convivemos diariamente com um espaço “virtual” que amplia enormemente nossos espaços pessoais dentro do sistema chamado Web.

Mas vamos voltar para Pablo de Valladolid e tentar fazer com que tudo isto faça algum sentido.

O fundo do quadro de Velázquez fascina, não só por ter sido o primeiro, mas por representar a ideia de espaço em toda a sua abstração, “com a concepção matemática da época”, na observação do matemático espanhol Francisco Martín Casalderrey, um estudioso das relações entre a matemática e a pintura. E acrescenta:

“É o espaço de Descartes e Newton, plasmado genialmente em sua mínima expressão, apenas um pouco de cor, apenas sobras de sua palheta, sem arestas, contínuo, infinito, imóvel, sem relação a nada externo, com a única intenção de ressaltar a figura de Pablo de Valladolid”.

Por isso, quando olhamos para este quadro não vemos somente um homem humilde em sua profissão de fazer rir seus patrões: vemos um homem gigante em sua dignidade, cheio de vida. E vemos pela primeira vez retratado na pintura o Espaço cartesiano que contém esse homem que Velázquez fez grande.

Por isso agora compreendemos toda o fascínio causado em Édouard Manet quando este foi a Madrid e viu esta tela. E na mesma fonte do mestre espanhol, o mestre francês bebeu. Pintou seu pequeno tocador de flauta da mesma forma, dando-lhe dignidade, roupas honradas, porte de grande artista, não só de um simples saltimbanco ou “musicien ambulant”, como os que existiam nas ruas naquela época em Paris.

São duas telas pintadas por dois grandes mestres, nas quais o recado é o mesmo, e que serve para os dias de hoje: todos os seres humanos são iguais e dignos de toda a consideração!

sexta-feira, 7 de março de 2014

Uma trilha sonora para o inferno?

Jardim das Delícias, Hieronymus Bosch, 1503-1504, Museu do Prado, Madrid, Espanha


Retrato de Hieronymus Bosch,
anônimo, pintado por volta de 1575
Hieronymus Bosch, célebre pintor do Renascimento, tem sido citado diversas vezes nos últimos dias depois que uma estudante da Universidade Cristã de Oklahoma, EUA, resolveu decifrar as notas musicais que o pintor inscreveu na bunda de uma de suas figuras contidas no célebre quadro “Jardim das Delícias”.

Amelia Hamrick (nome da estudante) resolveu analisar o tríptico pintado por Bosch e viu que em uma das figuras dispostas no local onde seria o “inferno” havia uma inscrição de notas musicais. Ela resolveu transcrever essas notas e tocá-las para ver o resultado, que pode ser ouvido num vídeo divulgado no Youtube (veja abaixo).


Detalhe do "Jardim das Delícias"
Curiosidades e brincadeiras à parte, o pintor que teria pensado numa música para o reino de Hades, era muito sério. Este quadro - “Jardim das Delícias” - se encontra no acervo do Museu do Prado em Madrid. Foi pintado em 1504 e descreve a história da criação e os reinos dos céus e dos infernos. Mas essa pintura também representa simbolicamente as angústias e superstições das pessoas que viviam na mesma época do pintor holandês. Ele é o maior dos quadros pintados por Bosch e o mais intrigante. É composto de três partes, por isso chamado de tríptico.


Ampliação do detalhe
A primeira parte representa o Paraíso, expresso em cores claras em tons de verde, azul, amarelo e ocre. Tudo parece tranquilo, harmonioso. A parte central é uma verdadeira explosão de cores vivas e de figuras nuas, parecendo mostrar um paraíso um pouco mais voluptuoso. Na terceira parte do tríptico, as cores são mais escuras como preto, azul escuro e cinza, e diversos instrumentos musicais surgem como se fossem instrumentos de tortura, em meio a cenas de crimes, de guerras e de incêndio, a própria imagem do caos. Numa das figurinhas que se encontram embaixo de uma espécie de violoncelo e de uma harpa, Bosch tatuou em sua bunda uma anotação musical.

Vamos ver quem foi esse pintor que há 600 anos apresentava uma pintura tão intrigante.

Seu nome verdadeiro era Jeroen Anthonissen van Aeken e nasceu em 1450 na Holanda, num lugar chamado Hertogenbosch, numa família modesta, cujo pai e avô foram também pintores. Quase todos os membros de sua família foram pintores, incluindo seu irmão mais velho Goessen. Por isso acredita-se que ele tenha recebido sua formação no próprio estúdio do pai ou do avô.


"Julgamento", 1476-1516
Mas Bosch se casou com uma moça da rica aristocracia em 1478, e por causa disso foi aceito como “membro notável” da Confraria de Nossa Senhora, uma sociedade religiosa fundada em 1318, que era dedicada ao culto da Virgem Maria. Bosch vivia então uma vida tranquila, entre sua casa, seu ateliê e a Confraria. Logo seu nome passou a ser conhecido longe de sua terra natal.

Desde 1490 ele passou a assinar seus quadros como “Hieronymus Bosch”, sendo que o “Bosch” seria uma referência à sua terra de nascimento, Hertogenbosch.

A partir de suas leituras da Bíblia e dentro da atmosfera de misticismo que reinava em toda a Idade Média, Bosch abandonou a iconografia tradicional desde o começo de sua pintura para buscar representar coisas que seriam “sacrílegas” e pecaminosas. A danação infernal era um tema de grande inspiração para ele. Mas tudo se misturava, céus e infernos, e ele também não deixou de satirizar a moral da época. Bosch parecia se preocupar com a ideia da condenação eterna para a humanidade que vivia em pecado. Além do “Jardim das Delícias”, onde ele pintou o inferno, fez também o “Os sete pecados capitais” entre 1475-1480.


"Dois monstros", desenho feito por Bosch
com pena e tinta marrona sobre papel
No começo do século XVI, Hieronymus Bosch fez uma viagem à cidade italiana de Veneza, que lhe influencia no sentido de passar a pintar quadros com mais espaços e paisagens, que ele inseriu em suas telas representando a vida de santos. Por volta de 1510 havia surgido uma nova forma de pintar figuras nos quadros: aquelas que apareciam com somente a metade dos corpos, inclusive em primeiro plano.

O estilo de Bosch é basicamente caracterizado por apresentar personagens caricaturizados e figuras que pertenciam ao repertório imaginativo da Idade Média. Seu estilo foi imitado depois por vários artistas, incluindo Pieter Brueghel, o Velho, além de ter influenciado até mesmo a pintura expressionista do começo do século XX, assim como os surrealistas.

Por outro lado, pintores alemães como Martin Schongauer, Matthias Grünewald e Albrecht Dürer influenciaram a obra de Bosch.

Além de sua religiosidade voltada ao culto de Maria, especula-se também que ele teria participado de seitas que se dedicavam à prática do ocultismo. Mas não se tem prova disso porque pouco se conhece sobre sua vida. Mas em alguns de seus quadros se encontram símbolos ligados à alquimia, assim como cenas que parecem ter sido retiradas de seus sonhos ou pesadelos. Vale lembrar também que o ano de 1500 representava para as pessoas do século XV o ano do fim do mundo, quando a besta do Apocalipse seria solta sobre a terra e Deus iria julgar os bons e os maus, enviando estes últimos para queimar eternamente nas chamas do inferno.

O Museu do Prado possui a maior coleção das pinturas de Bosch, pelo fato do rei Filipe II da Espanha ter sido um ávido admirador e colecionador de obras do pintor holandês. Isso é muito curioso, pois parece combinar muito com a cultura e o espírito espanhol que gerou um Miguel de Cervantes e artistas como Francisco Goya, El Greco e mesmo Salvador Dali. No Prado podem ser encontradas obras como “O carro de feno”, “O jardim das Delícias”, “Os sete pecados capitais”. Em nosso Masp - Museu de Arte de São Paulo - podemos ver um suposto estudo seu para o quadro “As tentações de Santo Antão”, cujo original se encontra em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga. Na Espanha, Bosch é também conhecido como “El Bosco”.

Bosch entrou para a história como “criador de demônios” e pintor satírico. Mas sua importância é particularmente importante por ter inovado a pintura de seu tempo, criando novas composições.

Hieronymus Bosch morreu em agosto de 1516.


"As tentações de Santo Antão", Bosch, óleo sobre madeira, entre 1495-1515


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Ouça a música "copiada" por Amelia Hamrick: