quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Pequena história do autorretrato - parte III

Autorretrato de Adam Kraft
Os primeiros retratos realistas e claramente identificáveis foram executados em três dimensões, ou seja, esculpidos. Os escultores do final da Idade Média eram tanto pintores como escultores, e até mesmo arquitetos, como o alemão Peter Parler (1330-1399) a quem foi confiada a construção da catedral Saint-Guy em Praga, em 1353. Seu atelier fez 21 retratos para a decoração da igreja, entre eles um autorretrato.

Autorretrato de Nikolaus Gerhaert
O gênero do autorretrato onde o artista se integra a uma cena, religiosa ou profana, será uma prática de numerosos pintores da Renascença, como Andrea di Cione Arcângelo (1320-1368), conhecido como Orcagna, também arquiteto e escultor. Junto com seus irmãos Jacopo, Matteo e Nardo, mantinha seu ateliê em Florença, e era bastante requisitado. Sua obra foi marcada pela influência do também pintor italiano Giotto e seu realismo. Ele esculpe em mármore uma representação da “Morte e Assunção da Virgem” para a capela de Orsanmichele em Florença, no ano de 1355, em cuja cena ele esculpe seu autorretrato.

Nikolaus Gerhaert de Leyde, escultor holandês que viveu ente 1420 e 1473, também se autorretrata na escultura “Busto de homem debruçado”, ele aparece em “melancólica meditação”, com seu corpo colocado em elegante movimento, voltado sobre seu eixo vertical e tendo o queixo apoiado sobre a mão direita (foto ao lado).

Adam Kraft (1460-1532), virtuoso escultor alemão nascido em Nuremberg, se representou de joelhos, ferramentas à mão, ao pé do imenso tabernáculo de pedra de mais de 18 metros de altura que ele esculpiu para a igreja São Lourenço de sua cidade (foto acima deste post).

Autorretrato de Van Eyck
Os poderosos daqueles tempos antigos, colocaram a seu serviço inúmeros artistas. Um deles foi o artista flamengo Jan van Eyck (1395-1441). Ele teve o título (que na época era honroso) de “Criado de quarto” ("valet de chambre") do Duque de Borgonha, Felipe o Bom, de quem era homem de confiança. Van Eyck deu uma grande contribuição ao desenvolvimento do retrato na pintura. É bem conhecida sua obra “O casal Arnolfini”.

Mas a grande novidade introduzida por Jan van Eyck ao retrato é o olhar. A partir dele, os olhos do retratado fixam o expectador. Seu autorretrato com o turbante vermelho é considerado, segundo Yves Calméjane diz em seu livro, o primeiro verdadeiro autorretrato da era moderna. Van Eyck assinou este quadro e escreveu a frase “Als ikh kan” ("como eu posso"). Calméjane acrescenta: “... Van Eyck não deixa de jogar com duplos sentidos e essa fórmula assinala de qualquer maneira uma falsa modéstia, aquela do artista demiurgo que se surpreende com seu próprio poder."

Na pintura mundialmente conhecida “O casal Arnolfini”, há um verdadeiro jogo de perspectivas e modos de ver a obra. No espelho convexo do fundo do quadro ele se pinta a si mesmo e escreve: “Jan van Eyck estava lá”. Ele espia o expectador do fundo do espelho, assim como acontece em outros de seus quadros. Diz Calméjane que nenhum detalhe de suas pinturas era sem importância para Van Eyck, cujos quadros são repletos de símbolos. O pesquisador de arte Pierre-Michel Bertrand diz ver no “O casal Arnolfini” uma quantidade grande de possibilidades de investigação, onde ele tenta provar que na verdade este homem seria o próprio pintor em companhia de sua esposa Margarita. Em 1934, o historiador da arte Erwin Panofsky lembra que antes do Concílio de Trento (1545) era possível se casar de forma mais simples e sem a presença de um padre, apenas através de um juramento onde a noiva colocava sua mão direita sobre a mão do noivo. Então “trata-se de um casamento ao qual assistimos”, observa Calméjane… 

"O casal Arnolfini", Jan van Eycke

Na Itália, aprofunda-se o estudo da perspectiva (do latim “perspicere”, que significa “ver através” ou “ver claramente”). A perspectiva enriquece a pintura.

Autorretrato de Alberti
E é na Itália que vamos encontrar Leone Batista Alberti (1404-1472), o autor do tratado sobre pintura “De Pictura”, que dedica a um dos primeiros estudiosos da perspectiva, Brunelleschi.  Alberti observa que Brunelleschi desenvolvia o método para representar os objetos em relevo sobre uma superfície plana utilizando um ponto de fuga. Alberti possuía muitos talentos em domínios variados: Pintura, Desenho, Escultura, Arquitetura, Matemática, Estética. Muito atraído pelo conceito da "Regra Áurea" e pelos filósofos antigos como Pitágoras, Alberti desenvolve sua própria teoria da Beleza exprimível através da harmonia regida pelas regras matemáticas. Para ele, a "Regra Áurea", ou a "proporção divina", seriam os fundamentos da Beleza. É nesse espírito que ele trabalha em seu autorretrato em bronze, inspirado na arte romana, por volta de 1435. Feito apenas dois anos após o autorretrato de Van Eyck, “ele testemunha a consciência individual do artista nos albores da Renascença”, observa Yves Calméjane. 

Van Eyck, com seu autorretrato, nos presenteia com o olhar, enquanto Alberti com sua paixão pela perspectiva.

Autorretrato de Jean Fouquet
Na França, surge Jean Fouquet (1420-1478), considerado um dos grandes renovadores da pintura francesa no século XV. Fouquet também realiza seu autorretrato por volta de 1451. Para ele também, a geometria estava presente em tudo. Ele adorava - diz Calméjane - traçar linhas e situar nelas alguma figura da natureza. Ele se colocava na confluência entre a arte flamenga e a italiana, herdando dos primeiros a força de seu realismo, a ciência dos detalhes, o gosto pelos materiais; dos italianos ele herdou a construção rigorosa de sua arte, o gosto pelas formas puras e a maestria da perspectiva.

Fouquet se especializou em fazer retratos e, com isso, sua fama se espalhou, chegando até o Papa Eugênio IV, que lhe encomendou um retrato. Mas também se dedicou às iluminuras, aos vitrais, à tapeçaria, à miniatura. “Em seus quadros como em suas mais finas miniaturas, seus tecidos brilham, as folhas das árvores se mexem, os reflexos da chuva e do sol se mostram”, observa Calméjane. 

Fouquet resumiu, então, sua arte em seu próprio autorretrato, feito em couro, com esmalte negro e dourado. Apesar do pequeno formato de 6 cm, ele é monumental, diz o autor do livro. O olhar se dirige ao espectador, o de uma figura localizada na sombra, centralizada no quadro e modelada com cuidado. “A expressão do artista, tão intensa quanto aquela de Van Eyck, lança uma reflexão um pouco mais humana e profunda, de forma direta” (Calméjane). Esta pequena obra de arte testemunha que, naqueles tempos, o artista tinha plena consciência de sua presença e seu papel no mundo.

On dirait que l’art sort de la nuit”... A arte se iluminava com os novos tempos que chegavam.


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continua no próximo post
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Referência bibliográfica:

Histoire de moi - histoire des autoportraits, Yves Calméjane, Thalia Editions, Paris, 2006

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