quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Burton Silverman: em busca do humano - I

Silverman em seu ateliê em New York
Burton Silverman é um pintor norte-americano, nascido em 1928, em New York. Seu trabalho tem se concentrado na “paisagem do rosto humano”, como ele mesmo diz. Este artista vive e trabalha em seu ateliê em New York, mantendo-se fiel ao caminho que escolheu seguir na arte: a pintura realista.

Seu pensamento sobre pintura e sobre arte é muito importante nos dias atuais em que a arte realista retoma seu lugar, em especial nos EUA, mas também aqui no Brasil. Hoje, em São Paulo, contamos com cerca de dez ateliês realistas. Neste e no próximo post, trarei algumas destas ideias de Silverman. Foram recolhidas em diversas entrevistas que ele deu nos EUA e em seus livros, vídeos e site.

Biografia

Burton Silverman começou suas primeiras lições de desenho na famosa Liga dos Estudantes de Arte de New York, quando tinha 12 anos de idade. Desde o início, seu talento chamou a atenção dos professores, em especial de Anne Goldthwaite, sua primeira mestra. Com apenas 4 meses de formação, já pode ir participar das aulas com modelo vivo.


Ele diz que começou a se interessar por arte ainda criança, como leitor de livros infantis ilustrados por N.C. Wyeth, nascido em 1882. Mas o grande momento para ele foi ter ido a uma exposição, em 1939, intitulada “500 Anos de Grande Pintura”, montada a partir de obras de coleções europeias e norte-americanas. O menino que cresceu no bairro do Brooklin sofreu um grande impacto com o que pode ver nos três grandes pavilhões desta exposição. Até então ele nunca tinha visto uma pintura de perto, somente reproduções em preto e branco. “Me veio então a ideia de que um artista possui algo de grandioso”, disse ele.

Um outro momento importante foi quando ganhou de um primo dez anos mais velho um livro sobre pintura flamenga. Esse primo “foi lendo e comentando as pinturas e dizendo coisas interessantes sobre arte. Era quase como se ele estivesse me apresentando um projeto de vida”. Foi insinuando que a arte era um caminho que Burton poderia seguir. Já sabia do talento do menino que gostava de desenhar. Em seguida, uma tia também lhe presenteou com o primeiro estojo de tinta a óleo. Silverman tinha 9 anos de idade. “Eu estava destinado a fazer isso, observou ele. Isso afetou minha forma de sentir as coisas. Minha imaginação floresceu.”

Claro que seus pais se preocupavam em como ele iria sobreviver com isto, mas ao mesmo tempo procuravam escolas onde ele pudesse se desenvolver. Foi parar na Escola Superior de Música e Arte, no ensino médio, já em sua adolescência. Lá, Silverman teve contato com outros jovens artistas, todos comprometidos com desenho realista em uma época em que Cézanne (mais modernista) dominava. Lá conheceu seu grande amigo e colega Harvey Dinnerstein. Eram tempos de guerra e nos cadernos de desenhos eles faziam aviões de guerra.


Pintura de Silverman
Após sua formação no ensino médio, Silverman voltou à Liga dos Estudantes de Arte para continuar seu curso de desenho. Ele percebia que necessitava de mais treinamento. Também cursou arte na Universidade de Colúmbia. Disse, numa entrevista feita a Ira Goldberg e publicada no site da Liga dos Estudantes, que teve péssimos professores na faculdade. Era um tipo de treinamento em desenho mais gráfico, e o professor queria que os alunos o seguissem à risca, o que não lhe  agradou muito. 

“Você estuda com alguém que você admira, - disse ele nesta entrevista de 2010 - pelo que ele faz. Eu passo o mesmo agora, que sou professor, mas tento dissuadir as pessoas de querer me imitar. Primeiro de tudo, eu não tenho um estilo. Não há nada que um aluno possa imitar. A única coisa importante que eu posso fazer é levar o aluno a identificar exatamente o que ele quer com a pintura e perguntar: por que você escolheu pintar esta imagem? Posso sugerir certos tipos de correções técnicas como composição, proporção e forma tridimensional. Não é um grande segredo, este método já dura 500 anos”.

Ideias

Com o tempo, Silverman se tornou ilustrador profissional, “num momento em que a ilustração ainda estava florescendo”, diz ele. Neste ofício, ele acabou participando dos projetos de propaganda do Pentágono, durante a Guerra da Coreia (entre 1950-53). Não chegou a ser convocado para a guerra, por ser mais útil como ilustrador. Mas ele se opunha a esta guerra, por motivos políticos. “Eu odiava saber que era parte de alguma máquina de propaganda”, acrescenta, “mas era como eu podia sobreviver”.

Burton Silverman sempre teve simpatia pelo socialismo. “Meu pai era um socialista em sua juventude”, complementa. Se dizendo um idealista, Silverman diz que prefere valores de cooperação aos de competição. E que acredita que o ser humano pode ser mais do que sua luta pela sobrevivência e que pode viver em harmonia. 


“Eu tenho valores muito arraigados. Tenho sido um forte observador do mundo, do comportamento humano, de como as coisas são, e a arte também traz mais insights sobre isso. Eu sempre me senti assim. A arte é algo que nos leva para fora de nós mesmos. Eu acho que é a característica comum de artistas que fizeram a grande arte, a arte que é duradoura. Eu acredito que é uma mistura tanto de sua vida emocional e sua vida cognitiva. Caravaggio, para citar um exemplo, humanizou a narrativa católica sobre Deus pintando pessoas reais do cotidiano. Ele mesmo pintou a Madonna com os pés sujos! Com ele, o ser humano tornou-se central para a história tanto quanto a divindade. Isso aconteceu por que era Caravaggio? Por que ele tinha adquirido de Leonardo e, antes disso, de Giotto? Foi uma matriz de outros artistas fazendo a mesma coisa? Certamente sua arte parecia vir de seu amor pela pintura da vida real, ao invés de desenhar caricaturas da vida, e foi isso que atraiu a admiração dos seus contemporâneos”.

Neste ponto, Silverman diz que lembrou de um episódio de sua vida como artista, quando ele e seus amigos organizaram na década de 1950 o movimento “Visão Realista”, com uma exposição de suas pinturas:

“Víamos a necessidade de reconstruir um ambiente humanista similar. Sonhávamos com um reavivamento da pintura realista na década de 1950, no auge do expressionismo abstrato, da grande explosão modernista. Foi a era de aquário para a arte modernista, derrubando os restos de arte figurativa que ainda sobreviveram no remanso do provincianismo americano”.

Ele e seus amigos se viam como “os únicos presumivelmente realistas ao redor”. Mas - ele observa hoje - deixaram de lado muitos outros artistas que, na época, em seu “egocentrismo” eles julgavam não estar “à altura dos critérios estéticos” dele e de seu grupo. “Nós estávamos tentando criar um novo ambiente, uma nova matriz, nos atrevendo a criar um reavivamento realista”. Mas como este movimento excluía muita gente, acabou não tendo muito efeito.
“Sessenta anos depois, vemos um fenômeno que talvez deva algo aos nossos esforços daquele tempo, observa. Muitas pessoas têm explorado a habilidade recém-descoberta, permissível agora, talvez em parte por causa disso que fizemos com o Visão Realista.” 


Há alguns anos se vê um reavivamento da pintura figurativa e realista. Mas ele fala também da pintura hiper-realista, que também tem atraído muita gente nos EUA. Mas realismo e hiper-realismo têm diferenças enormes. “A arte não é guiada pela mesma construção estética”. Esta nova arte realista - o hiper-realismo - imita a fotografia. Para Silverman, é como se os artistas agora quisessem criar uma arte mais “socialmente válida” e “disponível para o espectador comum” do que os artistas modernistas, cuja arte tem sido indecifrável e desinteressante para a maioria. “Mas com isso um monte dessas pinturas parecem ignorar o amor tradicional ao traçado do pincel”. 

“Eu acredito na veracidade, na verdade inerente à grande arte muito mais porque, embora você possa fotografar tudo tão facilmente, uma fotografia raramente lhe causa uma experiência contemplativa. Não menosprezando as grandes fotografias, mas de alguma forma elas têm uma vida útil mais curta para mim do que pinturas”.

“A fidelidade da fotografia afetou a pintura do retrato terrivelmente. As pessoas agora esperam que os retratos pareçam uma fotografia. A pintura, no entanto, é de outro caráter cultural: ela satisfaz a um senso de tradição chamado de arte. Outras qualidades, que mostram um retrato como a sensação de algo vivo - que a pintura cria magicamente e faz sobreviver o retrato muito além da vida do retratado - podem ter sido perdidas”.

“Mas a fotografia também chamou a atenção de um monte de artistas dos finais do século XIX, artistas academicamente treinados como Jean Dagnanon-Bouveret, que foi, provavelmente, um praticante do uso da fotografia. Mas olhe para suas obras. São claramente pinturas! Esta ideia se espalhou pela Europa e tornou-se o movimento que tem sido chamado de Naturalismo. No entanto, antes de Naturalismo e Realismo serem arrastados pela arte do século XX, eles produziram algumas obras poderosas”.

Courbet utilizadas fotografias. Meissonier fez a grande debandada de cavalos napoleônicos usando fotografias. “Mas o resultado parece uma pintura”, diz Silverman. E acrescenta que também usa a câmera: 

“Mas uso com a ideia de que ela me oferece informações, mas não determina minha visão”. 

E dá um exemplo: 


Pintura de Silverman
“David Hockney escreveu um livro inteiro alegando mostrar a influência do uso das lentes nos últimos 300 anos na pintura. Eu não me importo se Caravaggio usou algum tipo de lente para pintar o menino com o alaúde. Esta pintura é muito mais do que uma fotografia! Hockney também argumentou que Van Eyck não poderia ter pintado o lustre em seu retrato do Casal Arnolfini a partir do mesmo ponto de vista que o próprio casal. Tinha que ser a partir de uma lente de algum tipo. Hockney mesmo recorreu a um matemático para provar isso. Ele despreza o ponto crucial da pintura completamente: o porque ela sobrevive. Hockney despreza, com dolorosa inveja, a ideia de artesanato. Cada uma dessas pessoas sabia desenhar, e o desenho era muito mais importante para eles do que qualquer lente, se é que usaram alguma. Caravaggio foi admirado por seus  contemporâneos, e de fato causava inveja, porque ele pintou diretamente da vida. Sua estética cresceu além do desenho. Eu sou um grande defensor da ideia do valor do artesanato. Ele permite que você seja realmente livre. Eu acredito que a fotografia deve ser submetida a meu desenho. Repito: a câmera é parte do meu equipamento de trabalho, mas não a minha visão”.

Burton Silverman, sempre crítico em relação à arte praticada nos tempos atuais, diz que não é só uma questão de gosto. Para ele, dois fatos que ocorreram no século XX influenciam em muito a arte atual. O primeiro, a I Guerra Mundial, quando a sociedade em geral começou a desmoronar. “A I Guerra causou um devastador acidente nas mentes das pessoas que acreditavam nos valores do velho mundo”. O segundo, continua ele, “a pintura acadêmica tradicional tornou-se apenas uma maldita bobagem. Não pintava sobre a vida das pessoas mais”. Em parte, os Pré-Rafaelitas, mas também Bouguereau, com suas figuras idealizadas com “pinturas de pessoas em túnicas brancas que celebravam festivais reminiscentes da Grécia clássica, o que era imaterial e distante da vida da maioria das pessoas”. Para ele, estes dois eventos contribuíram juntos de uma forma muito dinâmica, para a arte que veio a seguir.


“Esta quebra também foi alimentada por alguns dos impressionistas, que romperam com noções convencionais de modelagem. Ao invés de contínuas pinceladas, suaves e sem intercorrências, eles tinham que dividi-las, alegando que replicavam a forma como a luz é transmitida”. 

“As alardeadas habilidades de Picasso foram superestimadas: suas primeiras pinturas eram ainda bastante comuns e repetitivas de artistas espanhóis contemporâneos. Ele sistematicamente imitava Lautrec e Edvard Munch, antes de virar tudo de ponta-cabeça com Les Demoiselles d'Avignon. Estas são coisas arrogantes para se dizer, mas eu não sou considerado um crítico muito importante. Mas penso isso: há apenas um par de críticas negativas sérias em meio às toneladas de livros escritos sobre Picasso, desde que ele se tornou famoso. Um está em um livro, “Success and Failure of Picasso” por John Berger, um historiador de arte brilhante. O outro, um ensaio de Roger Kimball, por ocasião de uma exposição de Picasso em 1998. Isso é extraordinário”.

“O que estou querendo dizer é que muito da arte modernista realmente não me interessa. Ela não me diz nada sobre o meu mundo, minha experiência, ou o que esse artista sente sobre isso. Há tantos tipos de formas interessantes para pintar; eu não olho na forma como a pintura é feita, se é alla-prima ou em camadas, etc. O que exijo é uma pintura que transforme o meu entendimento do que é ser humano, para se sentir como um ser humano”.


(continua no próximo post)


















6 comentários:

  1. Belíssimo!
    Obrigado, Mazé, pela postagem.
    Garoeiro

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  2. Cara Mazé , você poderia me informar em qual fonte bibliográfica você localizou essa frase do pintor Cézanne onde ele diz que " a pintura moderna nasceu em Veneza com Tiziano", você citou essa feres numa resenha sobre a exposição Mestres do Renascimento ocorrida no CCBB de S.P. Estou trabalhando numa monografia sobre Tiziano e preciso muito dessa informação. Por favor, me dê alguma resposta ou se puder uma indicação para o tema. Desde já, muito obrigada. Meu email é Marciavio@hotmail.com.

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    1. Olá Marcia, obrigada por visitar este blog! Sobre a fonte que você pediu, não sei te dizer ao certo hoje, pois já faz 3 anos que escrevi este artigo, mas pelo que me lembro pode ser que a tenha encontrado em algum destes livros: Heinrich Wöllflin "Conceitos fundamentais de história da arte" ou em "História da Arte" de E. Gombrich. Infelizmente não tenho tempo, agora, de ir buscar esta informação, mas estes dois livros são muito bons, em especial o de Wöllflin. Abraços

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  3. Boa tarde, Mazé,
    Acompanho o seu blog. Suas postagens são sempre interessantes. Parabéns!
    Não sou do ramo das artes plásticas, mas o aprecio muito. Tenho profissão comum, mas me dedico bastante à escrita. Lancei livro de contos e crônicas, etc.
    Comecei a frequentar o seu blog em função da matéria sobre Mário de Andrade, há algum tempo.
    Hoje, li com interesse o post sobre Silverman, e gostei bastante. A obra dele é espetacular!
    Continue trazendo coisas de qualidade para nós. Abraço, Alfredo Domingos.

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    1. Olá Alfredo, muito obrigada por acompanhar este blog! Muita sorte com sua vida de escritor! Abraços, Mazé

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