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quinta-feira, 21 de março de 2019

Distopia

"O jardim das delícias" (detalhe), Bosch
Ó tempora! Ó mores!...

Era para falar de Bosch, Hieronymus Bosch... O pintor holandês do século XV que acabou profetizando estes dias terríveis em que vivemos. Tragédias, violência, fascismo, intolerância. De um lado. Do outro, depressão, solidão, competição.

Então sim, estarei falando de Bosch. Mas através de suas imagens, como verão.

O texto é um desabafo neste começo de outono... 

Tempo de imediatismos, tempo de frustração. Tempo em que se busca as aparências, as meias-verdades, a perigosa "pós-verdade". Tempo de dar opinião egoisticamente desenfreada. Tempo repleto de palavras, imagens, coisas, objetos. Tempo de guerras híbridas...

Tempo de distopia. Tempo fúnebre, tempo cinza. Tempo em que serpentes depositam ovos recheados de mais distopias.

E o Vazio por todo lado…

Contraditoriamente, prega-se - e vende-se - a felicidade em estado de euforia. A euforia leva o indivíduo para fora de si, este mesmo que se entope de antidepressivos (nunca se ingeriu tantos). Também leva outros tantos a frequentar as lojas que o consumismo aponta. Tem valido a pena entupir de gente shopping centers e igrejas neopentecostais. Nos primeiros, vitrines brilhantes buscam iluminar as aparências e tentam levar brilho onde ele não existe. E não ilumina, porque é falso. Nas igrejas, massas de cordeiros manipulados são dirigidos para fora da realidade, para dar à realidade de suas vidas um certo ar de potência. 

E a violência cresce.

Nestes tempos, a solidão reflexiva é abominada; o silêncio contemplativo é visto quase como uma doença. Não se pode sentir tristeza, solidão, cansaço. Não se poder simplesmente ser "humano"...

"A nau dos insensatos
(ou A barca dos loucos)" - Bosch
Os smartphones tornaram-se parte dos corpos e são a companhia principal de muitos. Estar permanentemente conectado é uma obsessão que se generalizou. Informações - verdadeiras ou falsas - inundam as cabeças; as mentes repletas delas, parecem entes obtusos. Os cérebros se tornam opacos.

Mas o importante é não ficar só, momento algum! Pois este sujeito abomina a solidão e estar consigo mesmo.

Nas redes sociais, vive-se relações virtuais, descartando o velho costume de estar sem fazer nada, ou conversando, ou em silêncio ao lado do outro. Mas ao lado, não "sequestrado" pelo aparelho. Todos fugindo de si mesmos e apontando outros. 

Lá, nessas redes, também se mostra a imagem que se quer que os demais vejam; se fala dentro de bolhas que ecoam as palavras ditas, e todos repetem o que todos querem dizer. Ouvir é para poucos. 

As redes sociais são feitas para escamotear o vazio que se sente e impedir o instante reflexivo e solitário. 

Melhor a gritaria do que o silêncio da presença incômoda de si mesmo.

O fato é que, nessas instâncias, cria-se um ser humano fraco e estupidificado, que não suporta qualquer conturbação à sua tentativa de viver em felicidade eufórica. A auto-imagem que se cria torna-se mais real que a real. Mas para manter em suspensão esse estado de euforia, há que se recorrer aos ansiolíticos, aos antidepressivos, aos anestesismos. E ao consumismo.

Os mais fracos, que existem de fato, se escondem para se proteger. Dessa onda.

O consumismo dita cada vez mais regras de "ser feliz". Este sistema vende a ideia de que cada um é dono de si mesmo e sua vida só depende de si mesmo. Meritocracia! Gritam os apaniguados do sistema. O que importa é seguir a regra de viver de um forma tal que se produza a maior quantidade de bem-estar possível. Tudo vira relação de custo-benefício: o que vou GANHAR se for/fizer tal coisa? Ah, porque temos que sempre sair ganhando! Porque "Deus é fiel"...

Desse mundo, tenho pena. 

Vivo nele, aos trancos e barrancos, tentando ser eu, o mais humana que posso, uma pequena célula do todo humano. Buscando ser, mais do que ter. Buscando criar meu próprio estado de estar no mundo. Buscando pintar para estar neste mundo. E buscando sonhar, com outros sonhadores, o sonho de um mundo antípoda disso tudo aí.

Contra todas as distopias, o grande sonho nos salvará!

"O jardim das delícias", Bosch, tríptico, óleo sobre tela, 220 × 389 cm,
Museu Nacional do Prado, Madrid
"Juízo final", Bosch,  óleo sobre tela,
164 × 127 cm, Academia de Belas Artes de Viena, Áustria
 

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A poeira do Tempo - final

Máscaras da Commedia dell'Arte
Enquanto François Villon (1431-1463) (ver final do post anterior) escrevia seus poemas de morte ("Balada dos Tempos Perdidos", "Balada dos Enforcados" e outros) no final da Idade Média, na Itália foram se gestando as sementes dos futuros teatros populares e de improvisação, como a Commedia dell'Arte (leia mais aqui). Atores populares iam encenando textos numa linguagem mais próxima do povo, como reação à comédia erudita literária, que o povo não compreendia, de autores como Maquiavel, Ariosto, etc.

O personagem Polichinelo
  • Este teatro popular nascido no século XVI na Itália, especialmente em Veneza, retomava os conceitos do Carnaval, a festa onde se permitia comer carne e aproveitar os prazeres da vida, antes que chegasse a Quaresma, os 40 dias onde se lembra a morte de Cristo; enquanto seus personagens se escondiam atrás de máscaras, iam passando e repassando as intrigas reais e inventadas da sociedade local, arrancando risadas ou choro do populacho que se reunia em torno destes atores, os primeiros improvisadores, que podemos ver também como os antecessores dos nossos cantadores nordestinos e de nosso MC’s… 
  • Naqueles tempos também havia as rinhas de atores, as disputas e querelas, como ocorre com os repentistas do nordeste e com as atuais rinhas de MC's nas periferias de São Paulo...
  • Os personagens da Commedia dell'Arte usavam máscaras, ou tinham seu rosto pintado de branco, como Pedrolino, que na França ficou conhecido como Pierrot. Este era o mais triste dos personagens, com uma lágrima desenhada sob um dos olhos. Arlequim, que disputava com Pierrot o amor de Colombina, tem em seu nome uma origem que vem de duas culturas: ou deriva de Hellequin (chefe dos diabos no teatro medieval francês) ou de Eln Köining (chefe dos gnomos da cultura escandinava). Já Polichinelo, teria tido um nascimento um tanto estranho, pois teria aparecido num berço ao lado de um gato preto e uma ave de agouro, como se também descendesse do diabo... 
Tudo isso recolhido do rico imaginário popular que vinha desde a Alta Idade Média... E atravessou os tempos, como podemos ver a seguir.

"Inferno", pintura de
Hieronymus Bosch, cerca de 1490
  • Mas, ainda no século XVI, exatamente em 1517, é encenada pela primeira vez a peça “Auto da Barca do Inferno”, do português Gil Vicente. Os personagens discutem com o Diabo, comandante de uma das três barcas, e com o Anjo, comandante de outra, em qual delas vão entrar. No final, a maioria entra mesmo é na Barca do Inferno. Nesta peça, Gil Vicente tece duras críticas à sociedade da época.
Enquanto isso, na pintura abundavam registros de reflexão ascética de santos, eremitas, mártires ou monges contemplativos, como São Jerônimo, Maria Madalena, São Francisco de Assis, Santo Antão, etc. Vi inúmeros quadros pintados com cenas envolvendo estes santos, em minha viagem à Espanha deste ano.

É deste período também o surgimento deste ícone universal que é a imagem da Morte com um manto negro, portando uma foice com a qual vai ceifando vidas. É esta imagem que surge no baralho de Tarôt sob o número 13, o número do azar. Que, acrescenta Luís Calheiros, propõe como reflexão ao consultante um questionamento sobre “vícios e defeitos, propõe o arrependimento, o desprendimento, o aperfeiçoamento e a transformação radical e superação de tudo o que está ultrapassado, obsoleto e decadente”.

Enquanto o mundo se expandia, no começo do século XVI também nascia o Brasil.

Valeria a pena uma profunda pesquisa, Brasil a dentro, de como essas ideias nos atingiram em cheio desde os primeiros movimentos de construção do nosso país. Devagar, estou iniciando uma pesquisa em direção a isto, o que levará muito tempo, anos talvez. Mas a título de elucubrações iniciais, fico pensando na construção da nossa cultura baseada nestas três fontes distintas: aqueles europeus, os nossos indígenas e os africanos (sobre o assunto, Darcy Ribeiro escreveu o livro "O povo brasileiro"). Cada qual com sua cosmologia, sua visão de mundo, de vida e de morte.

Xilogravura do artista popular
pernambucano J. Borges,
"A briga da onça com a serpente"
De vida e de morte foi feita a nossa história. Nossos índios foram sendo dizimados ao longo dos séculos. Nossos afro-descendentes, para usar um termo atual, ainda não saíram de todo da Senzala porque a Casa Grande teima em não permitir… As tentativas de resistência, em nossa história, foram abatidas à bala, como aconteceu com a Canudos de Antonio Conselheiro, com Zumbi dos Palmares…

Estamos revivendo os períodos de maior violência da história da cultura brasileira, nestes tempos de 2015. De um lado, a perene vida difícil dos pobres nas periferias do Brasil - são “quase todos pretos”, como canta Caetano Veloso. São eles as maiores vítimas das redes de tráfico de drogas, pois por séculos de descaso de políticas públicas tornam-se reféns, e mesmo colaboradores dos verdadeiros bandidos. A expectativa de vida nas favelas e nas periferias das grandes cidades só diminui, por conta da violência policial e do tráfico de drogas. Em 2014, as pesquisas apontam que a violência da Polícia Militar cresceu 111%. Em 2015 deve ser muito maior, pois de uma vez só a PM de São Paulo matou 19 pessoas recentemente em Osasco. Segundo dados do mapa da violência no Brasil, um jovem negro tem 139% a mais de chance de ser morto na rua do que um jovem branco. 

A morte impera na vida dos moradores de periferia no Brasil. Passa a ser até “natural”, faz “parte da vida”, como podemos ler - ou ouvir - nas canções de rappers e MC’s como Emicida, Criolo, Sabotage…

“No pé que as coisas vão, Jão
Doidera, daqui a pouco,
resta madeira nem pros caixão.
Era neblina, hoje é poluição
Asfalto quente queima os pés no chão
Carros em profusão, confusão
Água em escassez, bem na nossa vez!
Assim não resta nem as barata...
Injustos fazem leis, e o que resta procês?
Escolher qual veneno te mata!

Pois somos tipo passarinhos
Soltos a voar dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro” 

(do rapper Emicida, "Passarinhos")

Cena do filme "Que horas ela volta?"
A morte ronda cada vez mais de perto as nossas vidas, sejamos ou não moradores das periferias. Todos somos vítimas da violência, é certo! Mas a Casa Grande não se incomoda se a Foice da Morte se restringir às favelas, aos pretos, aos pobres. A Casa Grande tem gerado campanhas de ódio, tem treinado aprendizes de fascistas como "justiceiros", tem batido freneticamente suas panelas enquanto de suas bocas escorrem babas de ódio contra os aeroportos e aviões repletos de gente pobre viajando, contra os filhos da empregada e do porteiro do prédio se formando nas mesmas universidades que seus filhos (saudações ao belo filme "Que horas ela volta?" de Ana Muylaert!). Para a Casa Grande, a Senzala deve se ligar de que seu lugar é onde sempre foi desde que o Brasil é Brasil: na sua inferioridade de classe.

Vanitas, vanitatum et omnia vanitas...

No nordeste - no meu - meu conterrâneo João Cabral de Melo Neto já impingira na cara do Brasil o poema onde conta o que acontecia naquele agreste ardente com as vidas ceifadas pela seca, pela fome, pelas injustiças sociais, da qual são vítimas todos os severinos do nordeste, “Morte e vida severina”:

“Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta”.

Severinos migraram para São Paulo ao longo de décadas. E moram, em sua maioria, nas mesmas favelas mortíferas de hoje. A saga do poema de João Cabral, que se passa em Pernambuco, pode muito bem ser replicada nas ruelas estreitas e tortas das Quebradas de São Paulo:

“— E foi morrida essa morte, irmão das almas,
essa foi morte morrida ou foi matada?

— Até que não foi morrida, irmão das almas,
esta foi morte matada, numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada, irmão das almas,
e com que foi que o mataram, com faca ou bala?

— Este foi morto de bala, irmão das almas,
mais garantido de bala, mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou, irmãos das almas,
quem contra ele soltou essa ave-bala?

— Ali é difícil dizer, irmão das almas,
sempre há uma bala voando, desocupada”.

Belo-triste encontro semiótico entre a ave-bala de João Cabral e as balas-passarinhos de Emicida...

"Os retirantes", pintura de Candido Portinari
E em ressonância com João Cabral, Candido Portinari pinta um dos mais representativos quadros desta tragédia, “Os Retirantes”. Tintas carregadas no escuro, corpos deformados, verdadeiros espectros humanos, mal se sustentam em seus próprios pés, enquanto aves de rapina fazem seus vôos rasantes aguardando o trabalho da Morte…

E Ariano Suassuna escreve seu “Auto da Compadecida”, onde narra o drama do nordeste, misturando elementos da cultura popular, como a literatura de cordel, com o catolicismo barroco do nosso povo. A peça já começa com o enterro de um cachorro. O que nos leva, por livre associação, à Baleia, a cadela do conto de Graciliano Ramos que trata exatamente de… vida e morte: “Vidas secas”.

Mas em Suassuna ainda, lembramos que o último ato da peça traz o julgamento dos que foram mortos pelo capanga Severino de Aracaju, que também foi morto por uma facada de João Grilo. No alto de tudo, a Compadecida, Nossa Senhora - aquela que também habitava os altares e o imaginário medieval como a Alentadora, a Mãe que se compadece dos pecadores e os leva à salvação. Depois que a morte fez seu trabalho...

Ainda em nossa literatura, o grande romance nacional “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa, nada mais é do que a confissão do começo ao fim do capanga Riobaldo que viveu e viu a morte de perto, assim como pressentia o “Tinhoso” com quem fez um pacto, mas não impediu que fosse morta a sua amada Diadorim. Neste romance, Guimarães Rosa mostra como era a vida nos sertões brasileiros, a luta de vida e morte dos caboclos em suas taperas, ameaçados por jagunços armados por fazendeiros. 

"A Roda da Fortuna", Edward Burne Jones
“Viver é muito perigoso”, repete Riobaldo o tempo inteiro… “Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... “

Finalizando, porque é preciso por um fim a um assunto sem fim…

Há poucos anos atrás, o poeta Afonso Romano de Sant’Anna disse, sobre nossos tempos e nossa arte atual: desde a obra mítica do urinol de Marcel Duchamp, vem se falando na morte da arte. Na década de 1980, Francis Fukuyama, pensador norte-americano neoliberal, apregoou a morte da História. 

“Falou-se muito de morte no século XX, sem esquecer o banho de sangue provocado pelas duas guerras mundiais mortíferas”, reflete ele. Pensemos na bomba de Hiroshima e Nagasaki que deixaram rastros de “crianças mudas, telepáticas”, como disse outro poeta, Vinícius de Moraes. 

Neste sentido, complementa Afonso Romano habitamos um cemitério onde a teoria perambulou como um zumbi entre o sentido e o não sentido, e teorizar sobre a morte de certas categorias, e mesmo de ideias, parece que explica um pouco o caos contemporâneo”.

Enquanto isso as madames e suas panelas areadas, plenas de vaidade, se agarram às suas marcas carésimas, a seus mitos consumistas, a seus sonhos ilusórios, a seu vazio de classe. Se vendo ameaçadas, blindam seus carros, suas casas, seus filhos, suas vidas…

E nos agarramos - todos - ao consumismo frenético de bens necessários e desnecessários vendidos pela propaganda, que diariamente gesta novas formas de vender coisas cada vez mais e em mais larga escala... “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade…” soam em “lúgubres responsos” os sinos do Eclesiastes, ainda mais atual em 2015.

Mas a Roda da Fortuna continua seu giro “separando implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada têm de seu, morrendo igualmente todos, e tudo deixando”, diz o professor português. Quem tem muito, muito deixa; nada, os que nada possuem.

"Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no sexto dia e sim no sétimo", diz o poema "Dia da criação" de Vinícius de Moraes...

E pra finalizar e por via das dúvidas: Senhor, livrai-nos de todo o mal, amém!

"Fast food", vanitas, fotografia de Laurent Meynier, 2014

sexta-feira, 7 de março de 2014

Uma trilha sonora para o inferno?

Jardim das Delícias, Hieronymus Bosch, 1503-1504, Museu do Prado, Madrid, Espanha


Retrato de Hieronymus Bosch,
anônimo, pintado por volta de 1575
Hieronymus Bosch, célebre pintor do Renascimento, tem sido citado diversas vezes nos últimos dias depois que uma estudante da Universidade Cristã de Oklahoma, EUA, resolveu decifrar as notas musicais que o pintor inscreveu na bunda de uma de suas figuras contidas no célebre quadro “Jardim das Delícias”.

Amelia Hamrick (nome da estudante) resolveu analisar o tríptico pintado por Bosch e viu que em uma das figuras dispostas no local onde seria o “inferno” havia uma inscrição de notas musicais. Ela resolveu transcrever essas notas e tocá-las para ver o resultado, que pode ser ouvido num vídeo divulgado no Youtube (veja abaixo).


Detalhe do "Jardim das Delícias"
Curiosidades e brincadeiras à parte, o pintor que teria pensado numa música para o reino de Hades, era muito sério. Este quadro - “Jardim das Delícias” - se encontra no acervo do Museu do Prado em Madrid. Foi pintado em 1504 e descreve a história da criação e os reinos dos céus e dos infernos. Mas essa pintura também representa simbolicamente as angústias e superstições das pessoas que viviam na mesma época do pintor holandês. Ele é o maior dos quadros pintados por Bosch e o mais intrigante. É composto de três partes, por isso chamado de tríptico.


Ampliação do detalhe
A primeira parte representa o Paraíso, expresso em cores claras em tons de verde, azul, amarelo e ocre. Tudo parece tranquilo, harmonioso. A parte central é uma verdadeira explosão de cores vivas e de figuras nuas, parecendo mostrar um paraíso um pouco mais voluptuoso. Na terceira parte do tríptico, as cores são mais escuras como preto, azul escuro e cinza, e diversos instrumentos musicais surgem como se fossem instrumentos de tortura, em meio a cenas de crimes, de guerras e de incêndio, a própria imagem do caos. Numa das figurinhas que se encontram embaixo de uma espécie de violoncelo e de uma harpa, Bosch tatuou em sua bunda uma anotação musical.

Vamos ver quem foi esse pintor que há 600 anos apresentava uma pintura tão intrigante.

Seu nome verdadeiro era Jeroen Anthonissen van Aeken e nasceu em 1450 na Holanda, num lugar chamado Hertogenbosch, numa família modesta, cujo pai e avô foram também pintores. Quase todos os membros de sua família foram pintores, incluindo seu irmão mais velho Goessen. Por isso acredita-se que ele tenha recebido sua formação no próprio estúdio do pai ou do avô.


"Julgamento", 1476-1516
Mas Bosch se casou com uma moça da rica aristocracia em 1478, e por causa disso foi aceito como “membro notável” da Confraria de Nossa Senhora, uma sociedade religiosa fundada em 1318, que era dedicada ao culto da Virgem Maria. Bosch vivia então uma vida tranquila, entre sua casa, seu ateliê e a Confraria. Logo seu nome passou a ser conhecido longe de sua terra natal.

Desde 1490 ele passou a assinar seus quadros como “Hieronymus Bosch”, sendo que o “Bosch” seria uma referência à sua terra de nascimento, Hertogenbosch.

A partir de suas leituras da Bíblia e dentro da atmosfera de misticismo que reinava em toda a Idade Média, Bosch abandonou a iconografia tradicional desde o começo de sua pintura para buscar representar coisas que seriam “sacrílegas” e pecaminosas. A danação infernal era um tema de grande inspiração para ele. Mas tudo se misturava, céus e infernos, e ele também não deixou de satirizar a moral da época. Bosch parecia se preocupar com a ideia da condenação eterna para a humanidade que vivia em pecado. Além do “Jardim das Delícias”, onde ele pintou o inferno, fez também o “Os sete pecados capitais” entre 1475-1480.


"Dois monstros", desenho feito por Bosch
com pena e tinta marrona sobre papel
No começo do século XVI, Hieronymus Bosch fez uma viagem à cidade italiana de Veneza, que lhe influencia no sentido de passar a pintar quadros com mais espaços e paisagens, que ele inseriu em suas telas representando a vida de santos. Por volta de 1510 havia surgido uma nova forma de pintar figuras nos quadros: aquelas que apareciam com somente a metade dos corpos, inclusive em primeiro plano.

O estilo de Bosch é basicamente caracterizado por apresentar personagens caricaturizados e figuras que pertenciam ao repertório imaginativo da Idade Média. Seu estilo foi imitado depois por vários artistas, incluindo Pieter Brueghel, o Velho, além de ter influenciado até mesmo a pintura expressionista do começo do século XX, assim como os surrealistas.

Por outro lado, pintores alemães como Martin Schongauer, Matthias Grünewald e Albrecht Dürer influenciaram a obra de Bosch.

Além de sua religiosidade voltada ao culto de Maria, especula-se também que ele teria participado de seitas que se dedicavam à prática do ocultismo. Mas não se tem prova disso porque pouco se conhece sobre sua vida. Mas em alguns de seus quadros se encontram símbolos ligados à alquimia, assim como cenas que parecem ter sido retiradas de seus sonhos ou pesadelos. Vale lembrar também que o ano de 1500 representava para as pessoas do século XV o ano do fim do mundo, quando a besta do Apocalipse seria solta sobre a terra e Deus iria julgar os bons e os maus, enviando estes últimos para queimar eternamente nas chamas do inferno.

O Museu do Prado possui a maior coleção das pinturas de Bosch, pelo fato do rei Filipe II da Espanha ter sido um ávido admirador e colecionador de obras do pintor holandês. Isso é muito curioso, pois parece combinar muito com a cultura e o espírito espanhol que gerou um Miguel de Cervantes e artistas como Francisco Goya, El Greco e mesmo Salvador Dali. No Prado podem ser encontradas obras como “O carro de feno”, “O jardim das Delícias”, “Os sete pecados capitais”. Em nosso Masp - Museu de Arte de São Paulo - podemos ver um suposto estudo seu para o quadro “As tentações de Santo Antão”, cujo original se encontra em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga. Na Espanha, Bosch é também conhecido como “El Bosco”.

Bosch entrou para a história como “criador de demônios” e pintor satírico. Mas sua importância é particularmente importante por ter inovado a pintura de seu tempo, criando novas composições.

Hieronymus Bosch morreu em agosto de 1516.


"As tentações de Santo Antão", Bosch, óleo sobre madeira, entre 1495-1515


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Ouça a música "copiada" por Amelia Hamrick: